Os Maias é um dos meus romances preferidos de sempre! E, na verdade, nem compreendo o porquê de ser uma obra que tantos portugueses desprezam. Será por ser um livro que nos foi pedido para ler nos tempos de escola? Será pela descrição (ridiculamente) extensa do Ramalhete nos primeiros dois capítulos da obra, que acaba por dissuadir muitos leitores? Talvez seja tudo isso junto. Mesmo assim, reitero que este é, sem pestanejar, o melhor romance da literatura portuguesa e, até mesmo – porque não? – um dos melhores da história da literatura mundial. É claro que, bem sei, estamos nos doces terrenos da subjetividade dos gostos de cada um. No entanto, goste-se ou não d’Os Maias, a verdade é que este romance é comummente aceite como um dos mais representativos de toda a literatura portuguesa e isso há-de simbolizar algo mais do que uma mera questão de gostos.
Olhando agora para uma potencial adaptação para bd desta obra-prima, considero que era uma tarefa bastante hercúlea passar uma história tão grande em dimensão para pouco mais de 40 pranchas. Mas devo dizer que o trabalho dos autores foi bem-sucedido. José de Freitas, um dos editores de bd mais relevantes em Portugal, é o autor responsável pela adaptação da obra, enquanto que o autor espanhol Canizales, não só também fez a adaptação do texto original, como também é o ilustrador de serviço.
Antes de avançar, uma primeira nota sobre esta questão. Vi muitos comentários a lamentar que o ilustrador desta obra emblemática fosse espanhol e não português, porque há um bom número de ilustradores portugueses que poderiam ter sido escolhidos. Não nego que há muitos ilustradores portugueses que são ótimos e que certamente teriam capacidades para ilustrar esta obra. No entanto, a opção por um autor espanhol, por parte da Levoir, não me parece um capricho da editora ou uma desconsideração em relação aos autores portugueses. Parece-me mais que Canizales foi a escolha devido a questões relacionadas com timings e disponibilidades, bem como a uma possível relação que a editora já teria(?) com o autor. Aceita-se a escolha e não é sequer polémica, a meu ver.
Avançando agora para a obra, devo dizer que o trabalho de adaptação até pode não estar perfeito mas é bastante bem conseguido. É lógico que faltarão muitos eventos e peripécias que acontecem às personagens ao longo da obra original, mas creio que os acontecimentos mais relevantes estão cá todos. E, quiçá mais importante que isso, acho que a narrativa aparece bem encadeada, contando com a quantidade de texto adequada a uma boa narração da história. Quem nunca leu Os Maias e lê esta bd pode não conseguir retirar (todas) as nuances e sátiras do texto original de Eça, mas este livro capta, na essência, a história divertida, intensa e romântica que tornou Os Maias uma obra de culto. Bem sei que a última vez que li a obra original já foi há uns bons anos, mas, mesmo assim, senti que nesta adaptação as personagens estavam bem tratadas e que o enredo central se mantinha intacto.
Falando na história da obra, esta conta-nos o percurso de Carlos da Maia - e das duas gerações que o precederam. Carlos é um nobre herdeiro de uma família rica e encontra em Maria Eduarda a paixão da sua vida. Mas eles mal podem esperar que o seu amor seja proibido. Para além deste enredo central, no texto original Eça de Queiroz faz aquilo a que eu chamo de "crítica subentendida" à sociedade portuguesa do século XIX. Subentendida porque não a critica diretamente. Ao invés, utiliza "personagens tipo" que demonstram quais os valores vigentes em Portugal à época. E o resultado é um humor com classe, com subtileza e digno de um verdadeiro mestre. Admito que nesta bd, esta crítica aparece menos vincada. É óbvio que João da Ega ou Dâmaso, por exemplo, são perfeitos exemplos destas críticas de Eça de Queiroz e aparecem bem representados nesta adaptação. Mas claro, esta vertente de crítica social da obra é aqui feita de forma mais superficial, como não poderia deixar de ser.
Depois, há uma outra coisa nesta obra que tem originado muitos comentários negativos por toda a web. A arte ilustrativa de Canizales. Têm sido vários os comentários depreciativos sobre as ilustrações do autor. Sobre isso, e voltando a dizer que estaremos sempre a falar de algo subjetivo, até posso admitir que o estilo de ilustração de Canizales não vai muito ao encontro dos meus gostos pessoais. Não obstante o que acabei de dizer, acho que o seu trabalho até é bastante interessante. E lá por não ser necessariamente o género que mais aprecio, isso não quer dizer, de forma redutora, que o trabalho do autor não é de qualidade.
Acho que, acima de tudo, Canizales parece vir mais da escola do livro ilustrado do que, propriamente, do livro de banda desenhada. Isso traz algumas fragilidades à sua arte, mas também traz coisas positivas, nomeadamente a nível de uma certa frescura na forma como planifica as páginas que é, sem dúvida, muito interessante.
Canizales apresenta assim ilustrações que têm a característica de não terem os traços a preto, como é comum, e que nos dão personagens bastante bidimensionais. Por vezes, até parece que as personagens são introduzidas nas páginas com o recurso a colagens. O resultado são ilustrações que aparentam ser infantis no tratamento, com os movimentos e a linguagem corporal das personagens algo estáticos, mas que, ainda assim, cumprem a sua função.
Quanto à planificação das pranchas, o autor espanhol permite-se algumas soluções arrojadas, especialmente entre as páginas 18 e 21, e entre as páginas 38 e 45, onde utiliza vinhetas de formas pouco convencionais que trazem uma certa beleza ao conjunto, formando algo semelhante a um painel de azulejos. E excetuando um caso onde me parece que a ordem e sequência da leitura não ficaram muito óbvias, acho que em todos os outros casos funcionou muito bem, permitindo ao conjunto uma certa classe e beleza estética.
A paleta de cores é na base dos castanhos, remetendo-nos para o efeito de sépia ao longo da história, o que até se coaduna bem com o facto de ser um conto de época. Disso gostei. Do que não gostei foi dos flashbacks a preto e branco. São, sem dúvida, as piores páginas dos livros. Isto porque são pouco legíveis – aquela técnica de layers, a fazer lembrar as colagens, fica pouco percetível. E, além disso, fica no ar a ideia de que estas ilustrações a preto e branco parecem ter sido inicialmente feitas a cores e depois convertidas, de forma pouco natural, para preto em branco, em vez de terem sido pensadas para ser a preto e branco logo à partida. Se foram pensadas de raiz para serem a preto e branco, acho que o autor revela grandes debilidades na boa utilização de luz e sombra nestas páginas. Diria que é o principal defeito que aponto à sua arte. Porque o resto, se gostamos dos desenhos ou não, já será sempre algo subjetivo. Uns gostarão e outros não.
Portanto, fechando a questão das ilustrações, acho que, olhando para o conjunto da coleção Clássicos da Literatura em BD, onde as ilustrações não têm, por regra, sido nada espetaculares, acho mais refrescante e mais bem pensado apostar num estilo de ilustração diferente, mas que não é mau. E foi isso que foi feito neste Os Maias. Atentem neste exemplo gastronómico: vale mais optar-se por fazer um ovo mexido saboroso do que um ovo estrelado em que a gema está rebentada. Em algumas obras desta coleção – estou a lembrar-me de Oliver Twist ou de Odisseia, por exemplo – parece-me que as ilustrações foram ovos estrelados com a gema destruída. Tentaram um estilo de ilustração clássico e mais franco-belga, mas que foi manifestamente medíocre. Neste Os Maias, Canizales, foi inteligente o suficiente por optar por um ovo mexido em termos de ilustração. Podemos preferir o ovo estrelado ou de não gostar sequer de ovo mexido, mas lá que este Os Maias é um ovo mexido bem feito, lá isso é. Pela minha parte, mesmo gostando muito de ovo estrelado, prefiro um ovo mexido bem feito do que um ovo estrelado mal feito.
Finda a analogia gastronómica, devo dizer que a edição do livro não foge à regra das restantes obras da coleção: capa dura, bom papel e encadernação e um dossier sobre a obra original, o seu autor e o contexto histórico-político em que Eça de Queiroz viveu. E tudo isto por um preço incrível de 10,90€. É de aproveitar!
Tendo em conta que a coleção original francesa não tinha este Os Maias – nem Amor de Perdição, que sairá nos próximos meses – acho que merece ainda ser dado o devido louvor à Levoir e à RTP por apostarem em obras portuguesas para esta coleção. É importante que saibamos dignificar a literatura portuguesa.
Em suma, e pese embora o estilo de ilustração demasiado característico - que agradará muito a alguns leitores e a outros nem tanto - esta adaptação para bd do clássico de Eça de Queiroz, cumpre bem os pressupostos, conseguindo arrumar narrativamente a história de um livro com mais de 700 páginas numa bd com pouco mais de 40 pranchas. Não sendo perfeita, é uma agradável surpresa que se assume, até, como uma das melhores obras desta coleção Clássicos da Literatura em BD, da Levoir e da RTP.
NOTA FINAL (1/10):
7.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Os Maias
Autores: José de Freitas e Canizales
Adaptado a partir da obra original de: Eça de Queiroz
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Agosto de 2021
Permita-me discordar, mas acho a arte muito infantil, para não dizer que é feia, mesmo!
ResponderEliminarCaro Miguel. Compreendo a opinião. Não são desenhos muito fáceis de digerir.
Eliminar