sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Análise: Os Olhos do Gato

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius

Da parceria editorial entre A Seita e a Arte de Autor foi lançado em Portugal, pela primeira vez (!) Os Olhos do Gato, este clássico da banda desenhada internacional que, lamentavelmente, e mesmo tendo passado mais de 40 anos desde a sua publicação original, permanecia inédito no nosso país. Refira-se que esta obra tem, também, o condão de ter sido a primeira colaboração em bd entre Jodorowsky e Moebius - ainda nos tempos idos da revista Métal Hurlant – e de ter a capacidade (ou objetivo?) de nos oferecer uma proposta diferente em termos de experiência de banda desenhada. E quando digo "diferente", refiro-me a todos os níveis. Quer em termos de narrativa textual quer, também, e certamente de forma mais demarcada, a nível visual.

E avancemos por aí. Pela componente visual.

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Em termos de forma, de planificação de páginas, estamos perante algo singular e raro na banda desenhada. Em vez de termos as várias ilustrações dentro de vinhetas que, por sua vez, compõem as pranchas, e que é o apanágio habitual da banda desenhada na forma, temos uma abordagem completamente diferente em Os Olhos do Gato.

Existem dois tipos de páginas no livro: as do lado esquerdo e as do lado direito. Parecendo pouco relacionadas no início da história, depressa compreendemos que estão intimamente ligadas e que atuam em parceria para nos darem o relato da história. Assim, do lado esquerdo, vemos sempre a criança que protagoniza a história de costas para nós, leitores, e de frente para uma janela onde vai observando os eventos. Depois, do lado direito, vemos esses tais eventos através de ilustrações que ocupam a página inteira. No fundo, as páginas da direita servem como planos POV (point of view), isto é, imagens na primeira pessoa. Como se nestas tais ilustrações do lado direito do livro, pudéssemos nós mesmos ver o que a criança observa (?). Portanto, o livro é composto por 25 imagens do menino à janela (do lado esquerdo) e outras tantas, à direita, que revelam ao leitor o que se está a passar.

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Quanto ao texto, é pouco presente, aparecendo, sem o recurso a balonagem, apenas em algumas das páginas onde a criança está à janela e nos revelam o seu discurso para com Meduz, a ave de rapina que é comandada pelo rapaz com o intuito de caçar um gato. Em termos de história, tenho que me ficar por aqui para não estragar o prazer de leitura a todos aqueles que forem (e bem) ler este livro sui generis. Deixo apenas no ar a ideia de que o argumento traz consigo um plot twist, uma revelação, que é marcante e, a meu ver, o grande trunfo narrativo deste livro.

Mas outro dos trunfos da obra assenta claramente nos desenhos de Moebius, que são verdadeiramente maravilhosos, numa técnica rara que utiliza tramas mecânicas, que acabam por oferecer uma enorme força visual a este livro. Os desenhos do autor vão seguindo a ação da história como se fossem uma câmara drone – bastantes décadas antes dos drones se vulgarizarem, diga-se – que segue a ave Meduz. Cada desenho apresenta uma força visual e uma beleza hipnotizante que revelam um Moebius completamente inspirado e em grande forma.

Juntando, pois, a moral desta história, à arte ilustrativa fantástica de Moebius e à forma cinematográfica com poucas – mas preciosas- palavras de Jodorowsky, julgo que podemos estar a falar de "banda desenhada poética", pois parece tratar-se mais de um poema visual do que de outra coisa qualquer. Ao mesmo tempo que, audazmente, os autores se permitem (des)construir os cânones clássicos da banda desenhada a seu belo prazer.

Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Não quero entrar muito na discussão se este livro é de banda desenhada ou não. Como as vinhetas – os quadradinhos – não aprecem presentes, há um certo grupo de puristas que considera este livro como um livro ilustrado e não como uma bd. Mas, em contraponto, também posso dizer que se banda desenhada é, acima de tudo, arte sequencial, em que os desenhos contam uma história com sequência visual, então este Os Olhos do Gato não poderia ser mais banda desenhada porque, de facto, é justamente nessa sequência entre imagens – essa noção de movimento e de continuidade – em que a obra se destaca e transcende. Além de que, mais importante do que a minha opinião ou a do leitor que me lê, devemos não esquecer que para os autores Jodorowsky e Moebius Os Olhos do Gato é um livro de banda desenhada. E acho que isso deveria encerrar esta discussão.

A edição da Arte de Autor e d’A Seita é espetacular! Em formato maior do que o original, com bom papel (em tons de amarelo, a respeitar o original), um prefácio de Jodorowsky e um dossier final, muito bem elaborado, pelo editor João Miguel Lameiras. A (bonita) capa da obra é dura e com detalhes a verniz. Se o texto da contracapa estivesse justificado, era perfeito. Mesmo assim, esta será, possivelmente, a melhor edição do mundo desta obra que já conheceu tantas edições.

Finalizando, reitero que Os Olhos do Gato é uma banda desenhada atípica, que rasga formas e convenções associadas ao universo da 9ª arte, apresentando-nos uma proposta singular, bela e inspirada, que nos convida a vivenciar uma experiência sensorial acima de tudo. Mas não é uma viagem metafísica apenas pois há uma moral implícita à história que nos é dada. Podendo não ser “para todos” é uma obra fantástica que todos deveriam, pelo menos, conhecer.


NOTA FINAL (1/10):
8.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Os Olhos do Gato, de Jodorowsky e Moebius - A Seita e Arte de Autor

Ficha técnica
Os Olhos do Gato
Autores: Alexandro Jodorowsky e Moebius
Editoras: A Seita e Arte de Autor
Páginas: 64, a preto e amarelo
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Junho de 2021

2 comentários:

  1. Sendo uma boa obra, está é apenas uma nota de rodapé na gigantesca e brilhante produção de Jean “Moebius” Giraud - Venham os outros…

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    1. Caro Antõnio, não lhe chamaria um "nota de rodapé" mas sim, há muitas outras obras, resultantes da colaboração de ambos, que muito marcaram a banda desenhada.

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