A editora A Seita recuperou recentemente uma obra de culto da banda desenhada nacional que estava algures perdida na história. Falo de Concerto para Oito Infantes e Um Bastardo, que havia sido originalmente publicada no jornal Se7e. Para além dessa história, também NIuIoRk foi recuperada neste livro que, desta forma, reúne as duas aventuras do protagonista Jaca. Este livro acaba, pois, por funcionar como que um “integral” da personagem. Uma boa oportunidade que A Seita soube aproveitar.
Esta é uma história ambientada na Lisboa dos anos 70, com um teor bastante noir na forma e no conteúdo. Jaca, o protagonista, é um ribatejano (bastardo!) que aspira chegar à vida diplomática. Vê-se depois enredado entre mafiosos traficantes de droga, enquanto tenta fazer as suas próprias investigações perante personagens dúbias que não são o que aparentam ser.
Acredito que é sempre uma boa notícia que aquelas obras relevantes da banda desenhada nacional que, por uma razão ou outra, ficaram perdidas no passado, possam ser recuperadas, dando a oportunidade: 1) aos que procuravam há anos aquela bd de a voltar a ler ou, também, 2) aos mais novos de conhecer bds emblemáticas para a história da 9ª arte em Portugal.
Devo, porém, dizer que, por mais ternura e saudade que possamos ter pela obra – e ainda mais, pelo seu criador -, este é um livro que apresenta várias fraquezas. Ao nível do argumento, existe alguma pobreza por não ser muito claro para onde o autor pretende levar a personagem e a narrativa. Parece que vai fabricando a história à medida que os desenhos vão saindo. E isso torna ambas as histórias deste livro num exercício um tanto ou quanto oco. Sem ser do género slice of life, quase que diria que parece sê-lo pois, de facto, aquilo que Relvas nos dá, é um conjunto de momentos, de acontecimentos que rodeiam as personagens, mas que, depois, não são minimamente aproveitados ou mesmo correlacionados entre si.
Relembre-se, porém, que, sendo a história bastante confusa, isso não quer dizer que o texto de Fernando Relvas não seja bom. Porque o é. A forma como Relvas escreve – com várias frases marcantes e até com um bom recurso de vocabulário – dá profundidade àquilo que é dito pelas personagens, especialmente por Jaca, que faz algumas considerações muito interessantes, com uma boa dose de sarcasmo.
Diria também que a grande valência desta obra é a sua capacidade para nos pintar um fresco com certas idiossincrasias adjacentes à cultura portuguesa, em particular a lisboeta, a estarem bem presentes e a parecerem funcionar como que um souvenir desses tempos idos das décadas de 70 e 80 da noite lisboeta. As roupas, os penteados, a decoração do espaço, a forma de convivência. Tudo isso está presente nesta obra, o que lhe confere um certo valor histórico-cultural.
Mas é em termos de arte ilustrativa que este livro mais brilha. Parece trazer-nos um estilo que já não se usa em bd. Pelo menos, de forma muito comum. E quando digo isto, digo-o da forma mais lisonjeadora possível. Isto porque o estilo de desenho que Relvas nos dá nesta obra, a excelente utilização que faz do preto e do branco e a dinâmica que consegue imprimir à ação, fazem com que as suas ilustrações sejam agradáveis à vista, com influências que poderiam ser encontradas na escola franco-belga clássica ou nos fumetti italianos. O autor sabe ilustrar as expressões das personagens muito bem embora seja visível uma certa inconsistência nesta área. O próprio Jaca aparece, não raras vezes, com expressões e até traços de fisionomia díspares de vinheta para vinheta.
A planificação da obra é bastante dinâmica com as vinhetas a parecerem muitas vezes arrumadas algo “à pressão”. Se isso dá algumas pranchas muito boas, também gera outras que acabam por ficar um pouco confusas. Nota ainda para a legendagem onde a anarquia gráfica ainda mais impera. Temos legendas dactilografadas com a máquina de escrever que, por vezes, ocupam o tamanho inteiro de uma vinheta, mas também temos legendas escritas à mão, muitas vezes sem a envolvência de um balão.
A edição d’A Seita é bastante boa e dá à obra o requinte que a mesma merecia. Quase que em forma de homenagem. Capa dura, bom papel baço, bom design e ainda um prefácio que contextualiza a obra de Fernando Relvas, um texto do mesmo sobre este trabalho, uma bibliografia completa do autor e um conjunto de esboços inéditos. No fundo, um trabalho aprumado e carinhoso por parte dos editores. Quem já é admirador de Relvas vai admirar esta edição, estou certo!
Relativamente à ilustração e grafismo da capa, a fazer lembrar alguns desenhos de Hugo Pratt, acho que poderia ter sido mais bem conseguida. Compreendo que se tenha optado por utilizar duas ilustrações desenhadas por Relvas. Mas basta dizer que a primeira página do livro, com o fundo a preto e com Jaca a transportar, com maus modos, a rapariga no seu braço daria, quanto a mim, uma capa fantástica e bem melhor. Mas é uma questão de gostos, reconheço.
Em conclusão, quer Concerto para Oito Infantes e Um Bastardo, quer NIuIoRk, são obras que do ponto de vista do argumento, ficam bastantes furos abaixo daquilo que eu consideraria um bom argumento para bd. No entanto, reconheço que há um sentimento revivalista agradável em voltar a estas histórias. Quanto ao desenho de Relvas, sendo imperfeito por vezes, apresenta-nos, noutras ocasiões, vinhetas do melhor que já se fez na banda desenhada portuguesa. Acima de tudo, diria que Fernando Relvas e a sua obra, especialmente aquela que nos dá neste livro, pertencem a um outro tempo e a uma outra escola da banda desenhada. Por isso mesmo, este é um livro a recordar por aqueles que já conhecem a obra e um livro a conhecer por aqueles que (ainda) a desconhecem.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Concerto para Oito Infantes e Um Bastardo / NIuIoRk
Autor: Fernando Relvas
Editora: A Seita
Páginas: 64, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Julho de 2021
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