Foi lançado há poucos dias o segundo volume da antologia de banda desenhada Ditirambos, que reúne um conjunto eclético de autores nacionais em 8 histórias, e cujo tema subjacente é o "Abismo". Nesse sentido, convém dizer que há, desde logo, um elemento que diferencia esta de outras antologias de banda desenhada que é o tal requisito único de que cada história não deverá exceder as 4 páginas por autor.
Isso traz consigo uma certa dinâmica interessante pois permite-nos, por cada história, um brevíssimo vislumbre a um novo e diferente universo extraído diretamente da criatividade do autor. O tema é comum, mas as abordagens ao nível do argumento e de arte visual diferem muito entre si. Neste segundo livro deste projeto, a âncora narrativa é, como já disse, o "Abismo", mas, e tendo em conta que é um conceito que é – ou pode ser- lato, as liberdades criativas são mais que muitas e, portanto, acima de tudo, julgo ser justo dizer que este livro resulta como que uma pequena amostra do quão bons são os autores portugueses. Quanto potencial há disponível para explorar.
Isto, claro, se acontecerem duas coisas: por um lado, que as editoras possam dar a ajuda (leia-se "aposta") necessária para que estes autores possam publicar histórias mais longas e com boa distribuição/promoção e, mais importante que isso ainda, que nós, público, saibamos apoiar e glorificar estes autores, fazendo apenas uma coisa muito simples: comprar bd de autores portugueses. Não podemos chorar que em Portugal, em termos de modalidades desportivas, só se aposta no futebol se, em casa, quando vemos televisão, não damos audiência a outros desportos ou se não compramos bilhete para assistir a essas outras modalidades desportivas. Não podemos queixar-nos que em Portugal só se ouve a mesma música comercial sem alma se não compramos discos ou bilhetes para os concertos de bandas alternativas ou emergentes. Da mesma forma, não podemos queixar-nos que a produção nacional de banda desenhada não é boa, se não comprarmos livros de bd de autores portugueses. E podemos começar por fazê-lo, comprando este Ditirambos Vol. 2.
O rol de autores aqui presente é bastante vasto: Joana Afonso, André Caetano, Ricardo Baptista, Raquel Costa, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Francisco Ferreira, Carlos Drave, Sónia Mota e Sofia Neto. Alguns já acompanho há alguns anos. Outros eram desconhecidos pela minha pessoa. Mas, concluídas duas leituras deste livro, posso dizer que todas as histórias me cativaram. Por uma ou outra razão. Umas mais que outras, naturalmente, mas há em todas elas algum apontamento positivo a retirar.
Fazendo, então, um pequeno comentário a cada um dos 8 contos que compõem esta antologia, optarei por falar muito pouco sobre cada uma das histórias desses contos, sob pena de tirar o prazer da leitura e da descoberta àqueles que forem ler o livro. Como são histórias muito pequenas em dimensão, parece-me mais avisado falar, de forma genérica, sobre aquilo que cada uma delas me fez sentir e qual a impressão geral da mesma com que fiquei.
Assim, e começando por falar da primeira história Origma, de Joana Afonso, posso, desde já, ser muito claro e muito sintético: sou um confesso fã da autora e acho-a um dos maiores talentos da banda desenhada nacional! Já escrevi aqui no Vinheta 2020 várias vezes isto, mas vou ter que me repetir: o signature style da autora é de uma originalidade e personalidade que são raros de encontrar. E eu sou fã desse estilo próprio da autora, ao desenhar belas histórias. A conceção visual das suas personagens, entre o grotesco caricatural e o que há de mais belo na expressividade humana, é algo que sempre me cativa. E esta história não é exceção. Obviamente a adição desta autora ao projeto Ditirambos foi uma excelente escolha.
Depois, passamos para a história Abismo Criativo, de Ricardo Baptista, que apresenta um tom divertido e com uma boa dose de metacomunicação, se tivermos em conta que ele, o autor, e André Caetano, o outro autor que se lhe segue, são personagens de uma história onde é feita a ponte entre a dificuldade da criação de uma banda desenhada e, ao mesmo tempo, a forma livre e sem regras que essa mesma banda desenhada pode tomar. Assim queiram os seus autores. Um exercício criativo que tem continuação na história seguinte, onde André Caetano passa a assumir os comandos do argumento e da ilustração, continuando-a exatamente a partir do momento em que a mesma terminou. No fundo, há aqui uma certa “batotice” no conceito Ditirambos porque, basicamente, a história Abismo Criativo acaba por ter 8 páginas, em vez de quatro. No entanto, não é tanta “batotice” assim, já que cada autor ilustra e cria o argumento da sua parte que contém 4 páginas. Não sendo uma história tão memorável assim, é, sem dúvida, um exercício audaz e inteligente que apreciei e onde a paleta de cores garridas de Ricardo Baptista torna a primeira parte da história apelativa, bem como o traço grosso e caricatural, a preto e branco, de André Caetano funciona igualmente muito bem, sabendo ilustrar com humor a segunda parte da história.
Diogo Carvalho apresenta-nos, no seu conto Fissuras, uma bela história que está entre as minhas preferidas deste livro. Num estilo slice of life, que nos coloca numa conversa mundana entre um casal de namorados, o autor cria, de forma inteligente, um mapeamento social de como começam as divergências entre dois seres. E como essas divergências ou diferenças, tão pequenas no início, quase irrelevantes, fazem nascer uma pequena fissura que cresce, de forma independente e gradual, até se tornar um abismo entre os tais dois seres. Conceito simples mas muito acertado, e que merece destaque ainda pela forma bem conseguida como o autor utilizou, de forma literal, as "fissuras" que vão nascendo e crescendo em cada uma das pranchas da sua história, até culminarem numa última página espetacular, onde a fissura já deu lugar a um abismo. Muito bom e muito inteligente na abordagem.
Depois, temos ainda as histórias de Carlos Drave, Titã; de Francisco Ferreira e Sónia Mota, Abimos; e Espontâneas, de Sofia Neto. Todas elas trazem abordagens interessantes. A primeira, de Carlos Drave, coloca-nos num universo sci-fi, apresentando-nos uma história que levanta algumas questões interessantes, mas que, a meu ver, poderiam ter sido mais bem exploradas, caso existissem mais páginas. Também Abismos nos coloca num ambiente de ficção científica, explorando os temas do sonho, da realidade vivida e sonhada, com um twist final interessante. Espontâneas traz consigo um conceito muito interessante das ervas daninhas e como as mesmas se formam. Não fiquei tão entusiasmado com o tratamento visual desta história (ou dos tons amarelados da mesma) mas devo dizer que a premissa deste conto está muito interessante. Quase ao nível das lendas do universo do folclore. Bem que poderia ser (isto se já não for?) uma lenda antiga.
Por último, para o fim, guardei a história que mais me marcou e que considero, sem grandes problemas, como uma das melhores histórias curtas em bd que li nos últimos anos! Trata-se de Mise en Abyme, de Nuno F. Cancelinha e de Raquel Costa. Mas antes, permitam-me confessar algo: eu não conhecia o trabalho destes autores. Já tinha esbarrado nos seus nomes pela internet, já tinha visto várias ilustrações de Raquel Costa, mas não me lembro de ter lido (com atenção) nenhuma das suas histórias. Creio que nunca o fiz. E por isso, e lamentavelmente, a primeira história que li desta dupla criativa foi mesmo esta Mise en Abyme. E posso dizer que fiquei abismado (é esta a palavra certa!) com a profundidade do argumento, o tratamento que é dado ao tema, a planificação das quatro pranchas e a forma majestosa, cheia de personalidade, de emotividade e de impacto, com que a ilustração de Raquel Costa consegue suster toda esta narrativa. Tudo feito de uma forma miraculosa, impressionante e marcante! Argumento fantástico, narração fantástica e arte visual fantástica! E tudo isto em 4 páginas! É tão bom que quase me irrita! Uma história linda! Eu quero um livro – uma história grande, vá! – feita por estes dois autores!!! A bd portuguesa precisa disso!
Em termos de edição, e tendo em conta que estamos perante uma edição de autor – limitada a 200 exemplares numerados - acho que o resultado é bastante agradável. O livro apresenta uma capa fantástica – da autoria de Joana Afonso – e um bom grafismo. Antecedendo cada uma das oito histórias, há sempre uma página em branco com o(s) nome(s) do(s) autor(es) e, no final de cada história, há uma pequena biografia de cada um deles. Tudo muito clean e bem arrumado. A qualidade do papel é bastante aceitável e a capa mole tem a robustez necessária. Mesmo não sendo má, acredito que a impressão poderia ter uma melhor qualidade.
Portanto, em suma, Ditirambos é um projeto de qualidade indubitável na banda desenhada portuguesa. E este Abismo, especificamente, está repleto de boas ideias narrativas, de bons ilustradores e de duas coisas que lhe são transversais: talento e paixão. Paixão por contar histórias em banda desenhada e talento na forma como as mesmas podem ser concebidas! Cabe agora, a cada um de nós, amantes de banda desenhada, desbravar e apoiar este projeto. Pessoalmente, mal posso esperar pelo próximo número!
A nota que dou é uma nota global em relação ao todo.
NOTA FINAL (1/10):
8.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Os Ditirambos Vol. 2 - Abismo
Autores: Joana Afonso, André Caetano, Ricardo Baptista, Raquel Costa, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Francisco Ferreira, Carlos Drave, Sónica Mota e Sofia Neto
Editora: Edição de Autor
Páginas: 52, a cores e a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Disponível para compra no site oficial do projeto.
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