quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Análise: Lydie

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre

Lydie é um álbum da autoria dos autores Zidrou e Jordi Lafebre – dupla criadora da fantástica série Verões Felizes, publicada em Portugal pela Arte de Autor - e que foi originalmente lançado em 2010. Mais tarde, em 2016, a editora espanhola Norma Editorial lançou uma nova edição com alguns extras. 

E foi esse a edição que tive a oportunidade de ler. E que fantástica sensação foi essa de ler mais um excelente livro por parte destes autores! Que merece, sem qualquer dúvida, uma edição em português. Olhando, aliás, para o catálogo da Arte de Autor, que para além de Verões Felizes também já publicou o fantástico e maravilhoso álbum a solo de Jordi Lafebre, Apesar de Tudo, diria que Lydie há-de agradar a todos os fãs – que não são poucos - dessas duas apostas da editora portuguesa.

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Lydie
foi a primeira colaboração de Zidrou e Jordi Lafebre. E, diga-se, começaram logo muito bem. Afinal de contas, esta é uma história terna, com múltiplas mensagens agridoces sobre a perda e como colmatar essas ausências indesejadas na nossa vida. Um conto fabuloso onde Zidrou prova porque é que tem conquistado, cada vez mais, um lugar de primazia e de respeito entre os melhores argumentistas de banda desenhada devido aos originais argumentos que, plenos de emotividade, nos tocam no âmago do nosso ser.

Camille é a personagem central desta história, que se passa numa pequena localidade a que, divertidamente, os habitantes batizaram como que “Beco Sem Saída do Bigode”, devido a uma estranha publicidade, que mostrava um bebé a usar bigode e que ali tinha sido exposta há vários anos. E o nome pegou. Camille é uma daquelas pessoas a que, jocosamente, a sociedade costuma dizer “não bate bem da cachola” ou “tem um parafuso a menos”. Gosto mais do termo “diferente” pois apresenta comportamentos que se afastam da norma e daquilo que consideramos mais expectável. E, talvez por isso, quando Camille dá à luz um bebé sem vida e o seu mundo (naturalmente) desaba, esta sente a vontade - voluntária ou involuntária - de fazer com que Lydie – seria esse o seu nome – continue a viver. Mesmo não estando fisicamente presente.

Ao princípio, esta atitude que demonstra uma Camille em negação, causa algum espanto e risos na pequena localidade onde vive. Mas, gradualmente, a população do “Beco Sem Saída do Bigode” começa a perceber que talvez não custe assim tanto entrar no jogo e fazer a vontade a Camille, passando a reagir como que Lydie existisse mesmo. Porque mesmo sendo uma mentira, é uma mentira piedosa que não custa nada fazer para deixar feliz esta mãe desesperada. 

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Este ambiente de camaradagem “de aldeia” e da aceitação do outro, remeteu-me, em muito, para Armazém Central, de Loisel e Tripp, que, curiosamente, também é editado em Portugal pela Arte de Autor, o que me faz sublinhar, mais uma vez, o quão certeira e lógica seria a adição deste Lydie ao catálogo da editora portuguesa. Esta reminiscência com Armazém Central, especialmente ao nível de como se cria uma familiaridade quotidiana entre indivíduos de uma pequena localidade é, pois, uma coisa que, para mim, é de logo muito positiva, tendo em conta o carinho e admiração que tenho por Armazém Central. Mas, claro, Lydie tem a sua própria personalidade.

Do ponto de vista narrativo, destaque ainda para a forma singular como a história nos é contada. Quem narra a história é uma santa padroeira do local, uma pequena estatueta de Nossa Senhora colocada num dos prédios da rua. Isto permite ao autor um conjunto de boas reflexões e tiradas. Sempre de forma muito inspirada. E, como se não bastasse, o autor ainda eleva a história a um outro patamar que nos coloca a refletir muitas vezes: será esta apenas uma história em que um conjunto de pessoas aceita viver e alimentar uma mentira piedosa para acalentar a dor de uma mãe que perdeu a filha? Ou estará Zidrou a apimentar o argumento com considerações metafísicas do foro da existência? Será possível uma existência real ainda que em espírito apenas? Quando as colegas de escola fazem um desenho de Lydie as características desta são muito semelhantes. Como é, então, isso possível? A construção teórica que fazemos de algo é suficiente para lançar as bases de um mito de algo que passa a ser percepcionado como tal, ainda que não tenha existência física? E que dizer da forma como o livro termina que não vou revelar para não estragar o prazer da leitura a ninguém?

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Temos, portanto, um Zidrou extremamente inspirado e que nos oferece um fantástico argumento neste Lydie. Que nos deixa a fazer várias considerações. E uma delas é mesmo esta: que implicações poderá ter uma mentira piedosa quando essa mesma mentira é tida como verdade? Onde entra essa barreira entre o real e o irreal? Numa história de pouco mais de sessenta páginas Zidrou levanta muitas e interessantíssimas questões.

Na parte da arte ilustrativa, temos um Jordi Lafebre que, não estando, a meu ver, com um traço ainda tão cativante, detalhado e confiante como, por exemplo, em Verões Felizes ou em Apesar de Tudo, ainda assim nos dá um conjunto de desenhos muito bem conseguidos e completamente à sua imagem de desenhador. Ou seja, também aqui temos um fantástico conjunto de expressões das personagens, bem como uma maravilhosa capacidade para ilustrar momentos de ternura ou de intensa dor. Porque é essa a principal valência do autor – e bem que Zidrou o parece saber. 

Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Sendo certo que, em termos de cenários, também temos alguns exemplos da excelência técnica do autor, considero que, pelo menos nesta obra, não será nesse ponto que Lafebre mais brilha. Ao invés disso, é especificamente na construção e desenvolvimento das personagens que o autor é sublime. Aí, Lafebre é mesmo dos melhores da atualidade. Um traço muito franco-belga, a remeter para a escola Spirou e que eu, pessoalmente, tanto admiro. Em termos de cores, e tendo em conta que a história é ambientada nos anos 30, o autor optou por uma paleta com tons acinzentados e de sépia que incrementam o ambiente algo triste e melancólico que paira no ar enquanto se lê esta obra. Embora eu seja mais fã da luminosidade característica dos seus desenhos em Apesar de Tudo ou Verões Felizes, reconheço que Lafebre também brilha quando usa esta luz e cor mais monocromáticas.

A edição da Norma Editorial é muito boa, com capa dura, bom papel brilhante e boa encadernação. Confesso que gosto mais da ilustração da capa original, mas, em contrapartida, esta edição oferece-nos um bom dossier de extras que inclui um bonito texto de Lucie-Anne Quenon e muitas ilustrações e esboços de Jordi Lafebre.

Em suma, Lydie é uma obra fantástica e plena de significados e emoções. Dificilmente não tocará o leitor mesmo que a premissa possa parecer um pouco rebuscada à primeira vista. Porque, na verdade, não há nada de rebuscado ou de clichet neste livro. É de uma sensibilidade extrema, oferecendo-nos um conto inolvidável que nos demonstra o poder do amor, da amizade, da fé e da compaixão para com o próximo e que deve, tão depressa quanto possível, receber uma edição em português.


NOTA FINAL (1/10):
9.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre - Norma Editorial

Ficha técnica
Lydie
Autores: Zidrou e Jordi Lafebre
Editora: Norma Editorial
Idioma: Espanhol
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Janeiro de 2016

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