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segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Magazine BD Independente - Análise a 10 BDs Independentes Nacionais


Hoje trago-vos um especial sobre as últimas bandas desenhadas de cariz mais independente que andei a ler nos últimos tempos.

Desde fanzines, a edições de autor e a edições que, mesmo apoiadas por dinheiros públicos ou pertencentes a "editoras", têm uma distribuição independente.

São BDs que, por isso, nem sempre são muito fáceis de encontrar à venda, embora, claro, hoje em dia, com o advento da internet e das redes sociais, quem estiver interessado em adquirir uma destas bandas desenhadas, apenas tem de contactar os responsáveis por estas publicações. Em alternativa, é frequente que esta BD mais independente seja encontrada à venda em eventos e festivais de banda desenhada.

Bem sei que poderia fazer um artigo para cada uma das propostas de leitura que hoje vos trago, mas diz-me a experiência - e também as estatísticas de visitas do blog - que cada uma destas bandas desenhadas independentes conseguirá chegar a mais gente se o artigo em que falo delas for mais global, com os leitores do blog a poderem, através de um estilo mais sintético de análise, em género de "magazine", tomar conhecimento das várias propostas que vos trago.

Sem mais demoras vos deixo, portanto, com as minhas breves análise a 10 Bandas Desenhadas independentes que li recentemente.

Ora vejam:




Quaresma, O Decifrador #2 - Crime e 
Quaresma, O Decifrador #3 - A Morte de Dom João, de Mário André

Comecemos, então, pelo projeto dedicado a Quaresma, O Decifrador, que Mário André tem vindo a desenvolver no último par de anos e que já conta com três volumes publicados. As histórias são baseadas nas novelas policiais escritas por Fernando Pessoa e a primeira delas, O Caso do Quarto Fechado, até chegou a receber uma análise aqui no Vinheta 2020. De lá para cá, Mário André brindou-nos com os volumes 2 e 3, Crime e A Morte de Dom João, respetivamente. E foram especificamente essas duas histórias que pude ler recentemente. Cada uma delas apresenta sempre um crime num caso de aparente explicação complexa, um enigma, que, depois, com uma igualmente aparente facilidade, a personagem de Quaresma acaba por resolver com toda a sua astúcia e sentido crítico. São adaptações a preto e branco, com um desenho algo tosco e a acusar várias fraquezas a nível de expressividade, anatomia e linguagem corporal das personagens. No entanto, e tomando especialmente em conta este terceiro volume da série, há que dizer que Mário André tem evoluído, de volume para volume, ao nível das ilustrações. Ainda há espaço para mais evolução, sim, mas é sempre positivo verificar que o volume 3 de uma série, supera bastante o volume 1 e 2. O que aprecio especialmente nesta série é que, por um lado, é sempre uma boa forma de conhecer mais uma (!) faceta do grande génio que foi Fernando Pessoa. Por outro lado, e além disso, os enigmas criados por Pessoa são bastante interessantes, desafiando o leitor a pensar. Portanto, considero que esta série de Mário André tem esse duplo mérito.

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A Foz do Esquecimento, de Miguel Peres e Majory Yokomizo

Da autoria do português Miguel Peres e da brasileira Majory Yokomizo, os mesmos autores que nos deram o muito interessante livro, O Pescador de Memórias - que acabaria mesmo por, em 2021, ser o vencedor do prémio VINHETA D'OURO para melhor argumento nacional - chegou-nos recentemente, em edição de autor, a curta história A Foz do Esquecimento. Este é um livro que nos narra a história de como o casal Literacidades - um casal especialmente famoso por ter uma interessante página de Instagram onde fala sobre livros - lida - ou lidará, visto que os eventos aqui explorados parecem ser um exercício hipotético - com o luto causado pela perda dos seus cães, considerados como membros da família por Álvaro e Ludgero. O tema foi-me especialmente marcante por duas razões: bem, em primeiro lugar porque o meu cão, o Quixote, com 13 anos de vida, já não vai para novo, o que me faz temer que chegue esse dia triste em que terei que me despedir dele pela última vez. Por outro lado, li recentemente o belíssimo livro Jim, de François Schuiten que, à sua maneira, também toca neste tema delicado do luto causado por um animal de estimação. E delicadeza é aquilo que Miguel Peres e Majory Yokomizo nos dão neste pequeno, mas bonito livro. Sempre gostei bastante da forma como Miguel Peres trata as palavras e, mais uma vez, fá-lo com mestria, sensibilidade e maturidade neste A Foz do Esquecimento. Por seu lado, Majory Yokomizo, dá-nos um trabalho bastante belo, que se coaduna bem com a história traçada por Miguel Peres, e que tem uma bonita paleta de cores que embeleza o seu desenho. A minha única "queixa" para com este livro é que me soube demasiado a pouco. Parecia-me que a história de Álvaro, Ludgero e os seus cães poderia ter sido mais explanada. No final, a sensação acabou ser semelhante a um "cartão de visita". Ou a um speed dating.

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Manuel Fernandes Tomás - Um Homem do Outro Mundo, de José A. Matos e Paulo Diogo

Lançado como apoio da Câmara Municipal da Figueira da Foz, esta é uma banda desenhada da autoria de José A. Matos e Paulo Diogo, que procura ser uma biografia e homenagem a Manuel Fernandes Tomás, uma das personalidades mais importantes do munícipio, embora algo esquecida pela generalidade dos portugueses, diria. Manuel Fernandes Tomás foi um opositor à monarquia portuguesa e foi com base nos seus escritos e estudos que assentou a própria Constituição portuguesa. Foi, portanto, uma figura eminente do século XVIII e que merece ser (re)conhecida pelo maior número de portugueses. E a banda desenhada é apenas uma forma possível de o fazer. Se os intentos desta obra são, portanto, nobres e bem-vindos, devo dizer que a feitura da mesma apresenta algumas deformações que condicionam a boa fruição da mesma. Tanto o argumento como as ilustrações são bastante pobres. O argumento, mesmo tendo a audácia de nos apresentar figuras extraterrestres no início da história(!), acaba por se basear apenas na mera exposição de factos, não criando entre eles um fio condutor narrativo adequado. E também ao nível das ilustrações, o trabalho de Paulo Diogo se apresenta manifestamente fraco. Com um registo a preto e branco, em lápis de carvão, as primeiras páginas até começam bem e parecem ser promissoras, mas rapidamente somos brindados com um desenho que apresenta várias debilidades ao nível do desenho anatómico das personagens e das suas posturas, parecendo ter sido feito por crianças da escola primária, mas sem que - e isto é o importante a reter - isso pareça ter sido feito de propósito, por opção narrativo-visual. Na verdade, os desenhos revelam uma ausência de técnica e domínio da mesma. E isto já para não falar da ilustração da capa que me parece, com todo o respeito, terrível. Há muito tempo que eu não via uma capa de BD tão mal executada a nível de desenho e de grafismo. Compreende-se que o Município da Figueira da Foz tenha escolhido homenagear uma personalidade local com o recurso de dois autores do mesmo município. Não obstante, fica no ar a sensação de que os níveis de qualidade mínima não foram, com muita pena minha, atingidos.


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Fanzine de BD - António Arroio Nº 4, de Vários Autores

Eis um fanzine que é fanzine na essência, mas que, na forma, aparenta ser algo mais, devido à qualidade física deste lançamento. O objeto-físico, em capa dura, e com bom papel baço no miolo, apresenta um aspeto cuidado e bastante apelativo. Marcando o regresso desta nobre iniciativa que procura reunir trabalhos de alunos da Escola Artística António Arroio, o projeto avançou para a sua quarta edição - agora sob a batuta do autor e professor Vasco Parracho que coordena o projeto. Para além de reunir várias histórias curtas feitas pelos alunos da instituição - histórias essas cuja maioria fica inacabada com a legenda "continua", o que pressupõe que essas histórias serão terminadas em edição futura - o fanzine conta ainda com a participação de dois nomes relevantes da banda desenhada nacional (e internacional): Ricardo Cabral e Nuno Plati, que criaram histórias originais para este lançamento. Convém dizer que esta iniciativa conseguiu ser selecionada para um projeto do Plano Nacional de Leitura que procura promover os trabalhos de jovens autores entre os 14 e os 20 anos. Ora, promover a banda desenhada junto destas camadas etárias continua a ser preponderante para que haja continuidade na produção nacional de banda desenhada e, portanto, é com bons olhos que vejo este projeto a manter-se à tona da água. Os contributos dos autores Vasco Parracho, Ricardo Cabral e Nuno Plati são, expectavelmente, os mais interessantes, mas devo dizer que também me deparei com algumas histórias de alunos que, pese embora, se revelem subdesenvolvidas, apresentavam, ainda assim, boas ideias ao nível do argumento e/ou desenho. O que constituiu uma agradável surpresa. Os temas das histórias são vários, mas é especialmente frequente a temática da ecologia e das preocupações ambientais. Para além disso, ainda há um artigo dedicado ao Le Petit Vingtième e entrevistas com Ricardo Cabral e Nuno Plati que permitem que a publicação seja mais uma revista de BD do que, propriamente, uma mera antologia de BD. Que venha o número 5 desta bela iniciativa!


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50 x 25 - Fanzine de BD, de Vários Autores

Ainda da Escola Artística António Arroio, e com coordenação de Vasco Parracho, também li recentemente o fanzine 50 x 25, com histórias dedicadas às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Aqui já temos um formato e um registo mais em linha com a noção clássica de "fanzine", com as folhas A4 dobradas e agrafadas, de modo a criarem uma "revista" em A5. Algumas das 10 histórias são a cores e foram desenvolvidas por alunos do 11º ano da António Arroio. A maioria das histórias baseia-se em poemas e em músicas revolucionárias do 25 de Abril, como as de Zeca Afonso. Como habitual neste tipo de publicações, umas histórias são melhores do que as outras, o que é normal, constituindo algumas boas surpresas.






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Peyroteo, de Vasco Parracho
Foi já no ano passado que Peyroteo, de Vasco Parracho, foi lançado, mas só mais recentemente pude tomar verdadeiro contacto com a obra, através de leitura atenta. Este é um livro que procura dar-nos uma biografia de Peyroteo, uma das principais figuras do Sporting Clube de Portugal e do futebol português. Sendo eu benfiquista, conhecia o nome e a relevância da personalidade, mas não conhecia com tanto detalhe a figura de Peyroteo. Como tal, fiquei muito bem impressionado com todos os feitos que Peyroteo alcançou, não só a título individual, como, também, em conjunto com os outros 4 futebolistas do Sporting que, juntos, formaram os célebres "5 Violinos". Peyroteo conseguiu alguns dados e estatísticas - como uma média incrível de 1,68 golos por jogo (!) - que chegam mesmo a superar grandes nomes do futebol internacional. Gostei bastante desta biografia, onde os desenhos e as bonitas paletas de cores se apresentam muito belos em vários momentos. Como ponto menos positivo, considerei apenas que, por vezes, há algum excesso de texto e alguma redundância no mesmo. No entanto, é um livro bastante interessante que recomendo especialmente para amantes do Desporto Rei e do Sporting em particular. Mas não é obrigatório ser-se do Sporting, atenção, para se apreciar este livro. Eu sou do Benfica e não foi isso que me impediu de ter prazer e interesse em ler esta biografia do grande Peyroteo.



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O Caso da Custódia Roubada, de Carlos Sêco
Eis outro dos livros que há muito tinha para ler, mas que só recentemente o pude fazer. Jonas, o Reguila, é o protagonista desta história que versa sobre uma custódia roubada e que, trazendo muita aventura, procura destinar-se a um público de banda desenhada mais jovem. Sendo eu um defensor da importância de fomentar a leitura de banda desenhada junto das crianças e dos jovens, considero que este O Caso da Custódia Roubada, é (mais) uma boa forma para o fazer. A história é simples, plena de reviravoltas, humor e ação, e procura revitalizar esse género de banda desenhada de aventuras para os mais novos, tentando homenagear os anos dourados da banda desenhada franco-belga. A par disso, aprecei também o esforço do autor, Carlos Sêco, de tentar chegar aos mais novos dotando o seu próprio livro de vários QR codes que procuram tornar dinâmica a leitura das crianças e fazer pontes - e, não oposição, como por vezes muita gente considera benéfico - ao mundo dos smart phones e dos tablets que, quer queiramos, quer não, já está bastante bem enraizado nas crianças e jovens da atualidade. Fica também no ar a ideia de que este O Caso da Custódia Roubada é a primeira de várias aventuras de Jonas, o Reguila. Faço votos para que assim seja, já que precisamos que a produção nacional de banda desenhada também se foque nas criações para os mais novos!


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Sweet Wind #2 e Eight Months Ago, de Daniel da Silva Lopes
Sem desprimor para as restantes obras que aqui mencionei anteriormente, quis deixar o melhor para o fim, no que ao lançamento de banda desenhada independente diz respeito. De facto, a caminhada que a editora independente Gorila Sentado tem vindo a traçar, é deveras impressionante. Com um estilo de lançamentos editoriais que, à data, mais ninguém faz, a Gorila Sentado vai lançando BD em formato de revista com as histórias a ficarem em continuação de um número para o outro. Já aqui analisei os primeiros números da editora, In The Dust of Our Planet e Sweet Wind, e também analisei, mais recentemente, o muito recomendável primeiro número de Last Call, do autor Gonçalo Fernandes. Há uns dias, pude ler os mais recentes lançamentos da editora. O segundo volume de Sweet Wind e Eight Months Ago que, embora sendo uma história indepedente, está inserida dentro do universo de Sweet Wind que, por sua vez, está inserido no universo de In The Dust of Our Planet. Parece confuso, mas não é assim tanto, garanto-vos. E o que tem de admirável esta iniciativa é que assim que mergulhamos num qualquer número do universo criado pela mente criativa de Daniel da Silva Lopes, logo queremos mergulhar nos restantes números. Em Sweet Wind #2 continuamos a cruzada solitária do protagonista da história num universo pós-apocalíptico. Em Eight Months Ago, embora continuemos a acompanhar a mesma personagem, há algumas coisas diferentes. Em primeiro lugar, o formato da BD é horizontal e, em segundo, é a primeira história totalmente feita a cores. Coisa que, quanto a mim, beneficia muito as ilustrações de Daniel da Silva Lopes, que ganham desta forma mais profundidade e apelo através das suas cores garridas. Muito bonito para a vista. São edições na língua inglesa com um bom texto que nos faz pensar e refletir, mesmo que, por vezes, possamos estar um pouco à deriva do experimento criativo do autor, já que não há grandes dicas ou "bengalas" interpretativas para esta aventura. É deixarmo-nos ir com a corrente. Seja como for, é de uma qualidade louvável o trabalho que a Gorila Sentado tem vindo a fazer!




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Em suma, como nota final desafio todos os leitores do Vinheta 2020 a tomarem o passo de conhecerem alguma da banda desenhada de cariz mais independente que é lançada por autores portugueses. Nenhum dos autores de renome internacional que hoje adoramos começou o seu trajeto sem passar pelo lançamento de BD mais independente. E se, nessa altura, ninguém lhes tivesse dado oportunidades, certamente eles não teriam conquistado o sucesso.
Fica a dica!

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