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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Análise: Pocahontas

Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros

Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros
Pocahontas, de Patrick Prugne

A Ala dos Livros lançou recentemente o livro Pocahontas, que procura dar-nos, em banda desenhada, a história da célebre jovem índia que se tornou uma lenda popular. Se a publicação desta história pela Ala dos Livros pode parecer surpreendente para alguns, se tivermos em conta o autor da mesma, Patrick Prugne, um autêntico mestre e garantia de um desenho de topo, talvez esta aposta da editora portuguesa não seja tão surpreendente assim.

Lançada originalmente em 2022, a abordagem à lenda de Pocahontas com que Prugne nos brinda será algures um "meio-termo" entre a célebre versão romantizada da história pelo filme de animação da Disney e a versão de John Davis, no seu livro lançado no século XIX, com o nome de The First Settlers of Virginia: An Historical Novel. Enfim, mais do que um romance, Pocahontas é uma lenda que tem vindo a ser contada e recontada ao longo da história. Daqueles casos em que quem conta, acrescenta sempre um ponto.

Como tal, caberá depois ao leitor fazer a sua preferência, com case nos seus próprios gostos pessoais, já que não há uma base objetiva muito clara em Pocahontas, além, claro, de alguma documentação histórica que é, acima de tudo, unilateralmente baseada nos diários e cartas de John Smith. 

Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros
Mas, voltando ao que dizia, Prugne optou por uma abordagem entre o romance mais meloso e o texto mais histórico, fazendo com que este livro seja, por um lado, histórico e mais factual, mas, por outro lado, algo romantizado, ainda assim. Mais que não seja pela brandura quase infantil demonstrada por John Smith.

Pocahontas foi uma jovem índia que, pela sua rebeldia e diplomacia, se tornou num caso de estudo. O ano era 1607, quando três navios ingleses chegaram à Virgínia para aí construírem Jamestown, o primeiro forte inglês na América do Norte. Esse era o preciso local onde vivia a tribo dos índios Powhatan que, vendo-se ameaçada pela chegada dos ingleses, se foi afastando gradualmente dos mesmos, procurando outras terras que não aquelas que, outrora, considerava como suas. Mas o processo não foi fácil e pressupôs muita guerra. De parte a parte.

Os ingleses, por seu turno, estavam focados não só em expandir o Império Britânico, como no achamento de ouro que assegurava riqueza à coroa inglesa e àqueles que lhe deitassem a mão. É então neste contexto que a figura de Pocahontas se torna proeminente. Contrariando as ordens expressas do seu pai, chefe da tribo, para que não se aproximasse dos "homens brancos", a jovem princesa não resiste à curiosidade e acaba por travar contacto com vários ingleses, com especial destaque para John Smith.

Este contacto não é nunca, ao contrário do filme da Disney, do foro romântico. Assenta, isso sim, numa relação de amizade e camaradagem diplomática que passa a existir entre Pocahontas e John Smith. Pode haver ali uma certa tensão sexual entre ambos, mas mais não é do que isso. Ambos funcionam como catalizadores de aproximação entre os dois grupos. Pocahontas procura demonstrar que os "homens brancos" talvez não sejam tão perigosos (como disso creem os seus pares) e que não se lhes deve declarar guerra; e John Smith tem um olhar humanizante perante os índios que, para si, não são os "selvagens" que alguns dos ingleses parecem fazer crer, mas antes pessoas "iguais", que estão assustadas com a sua presença. Ou mais ou menos "iguais", vá, se tivermos em conta que há aqui uma usurpação do território de alguém, quer adornemos mais ou menos o relato.

Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros
A história é-nos contada através de uma conversa entre Pamouic, irmão de Pocahontas, e Pitt, o companheiro próximo de John Smith, que nos revelam os eventos da trama através de flashbacks, como já tendo acontecido. Uma escolha algo original, diria, mas que acaba por funcionar bem no sentido de tentar dotar o relato de alguma isenção.

Um dos temas centrais em qualquer narrativa sobre Pocahontas é o choque entre a cultura nativa americana e os colonizadores europeus. O encontro entre a tribo Powhatan e os ingleses não foi pacífico e, em muitos aspetos, ilustra a tensão que caracterizou as interações entre os nativos e os colonizadores na América do Norte. O livro explora como Pocahontas é uma figura central nesse choque cultural, mediando as diferenças e tentando encontrar um meio-termo, um consenso.

Muitas vezes, as histórias de Pocahontas foram romantizadas para promover uma imagem idealizada de cooperação pacífica entre nativos e colonizadores, ignorando as brutalidades do colonialismo. Porém, Prugne tenta resgatar elementos mais autênticos e menos romantizados da história. E uma das contribuições significativas do autor, é a humanização de Pocahontas. Ao contrário de muitas versões que a colocam no centro de uma história de amor e heroísmo mítico, Prugne apresenta Pocahontas como uma jovem mulher dividida entre dois mundos em conflito, e que tenta encontrar o seu papel num contexto de tensões crescentes. 

Por isso, o enredo segue mais de perto os eventos que levaram à captura de Pocahontas e ao seu casamento com John Rolfe, em vez de se focar na narrativa mítica do salvamento de John Smith, possivelmente exagerada ou distorcida noutras adaptações da lenda. Esta revelação do casamento da jovem índia, acaba por ser diferente de outras versões que, presumivelmente para fins românticos, ignoram essa parte da história. O casamento não é, porém, com John Smith, mas com John Rolfe, mostrando como este laço matrimonial foi uma tentativa de estabelecer uma paz duradoura, ainda que dentro do contexto colonial.

Por outro lado, e se esta abordagem me parece pertinente, senti que talvez faltasse algo ao argumento que tornasse a história mais impactante. Talvez o problema seja eu que sou um "sentimentalão", não escondo, mas gostaria que o drama ou as reflexões da obra conseguissem ressoar mais. Acaba por ser uma história "morna", quanto a mim.

Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros
Já relativamente às ilustrações, o que dizer de um trabalho tão espetacular como aquele que Patrick Prugne aqui nos dá? A sua estética visual é extremamente impressionante. As suaves aguarelas do autor aproximam o livro de ser um objeto artístico de qualidade superior e dão um toque nostálgico e belo à narrativa, ao mesmo tempo que criam uma atmosfera melancólica e contemplativa. 

A natureza exuberante, as aldeias nativas e as paisagens americanas são retratadas com uma beleza detalhada, criando uma sensação de imersão no ambiente da época. As ilustrações fazem com que os leitores sintam a vastidão da natureza e a serenidade dos espaços que estão prestes a ser invadidos pelos colonizadores. As cores são, portanto, lindíssimas, fazendo com que a obra seja visualmente maravilhosa.

De resto, eu já era muito admirador do autor, depois de ter lido a série L'auberge du bout du monde, da qual já aqui falei no Vinheta 2020, e que adoraria ver publicada em Portugal.

Falando no trabalho de edição deste livro, estamos perante (mais) um belíssimo exemplo por parte da Ala dos Livros. O livro apresenta uma belíssima capa dura, com detalhes a verniz. As próprias guardas são um autêntico quadro de museu, tal não é a sua beleza. No miolo, o papel é brilhante, de boa qualidade, tal como de boa qualidade também é a encadernação e a impressão. No final, há ainda um generoso dossier de extras, onde nos são dadas notas do autor, esboços, estudos de cor e belíssimas ilustrações que dariam belas capas também. Quanto a mim, as anotações do autor nestes extras poderiam ter sido traduzidas, para melhor compreensão dos leitores portugueses, mas também compreendo que, da forma em que foram mantidas pela editora, nos aproximam mais de um caderno gráfico de Patrick Prugne.

Em suma, esta versão de Pocahontas de Patrick Prugne é uma obra notável que combina arte requintada com uma narrativa historicamente sensível e ponderada. Prugne consegue evitar a romantização excessiva que frequentemente acompanha a história de Pocahontas, ao mesmo tempo que oferece uma interpretação visualmente rica e emocionalmente envolvente. A sua abordagem mais fiel aos factos históricos torna esta versão uma contribuição significativa à maneira como a história de Pocahontas é contada e compreendida, mesmo que, a meu ver, talvez certos momentos pudessem ter tido uma maior carga dramática para maior impacto no leitor.


NOTA FINAL (1/10):
8.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Pocahontas, de Patrick Prugne - Ala dos Livros

Ficha técnica
Pocahontas
Autor: Patrick Prugne
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 254 x 338
Lançamento: Junho de 2024


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