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quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Análise: Rever Paris




Rever Paris, de François Schuiten e Benoît Peeters

Rever Paris é o quarto volume da Coleção de Novelas Gráficas da Levoir e do jornal Público, da autoria de François Schuiten e Benoît Peeters (conhecidos, principalmente pela série As Cidades Obscuras) e é-nos apresentada na sua versão integral, reunindo os dois álbuns Rever Paris (de 2014) e A Noite das Constelações (de 2016). Trata-se, portanto, de um álbum duplo o que, por 10,90€, é uma autêntica pechincha para os amantes de banda desenhada.

E mesmo não sendo um álbum do universo de As Cidades Obscuras, acaba por utilizar uma linguagem, um ritmo, uma temática e, acima de tudo, uma estética, muito em linha com os trabalhos da dupla criativa em As Cidades Obscuras

Neste caso, toda a história gira em torno da cidade de Paris. Quer na Paris histórica do passado, quer na Paris utópica do futuro. Estamos no ano de 2156 e acompanhamos a caminhada de Kârinh, a protagonista da obra, que nasceu na Arca, uma colónia espacial criada por um grupo de ex-terráqueos que cortaram todos os laços com o seu planeta natal. Kârinh sempre foi uma apaixonada pelo planeta Terra e especialmente pela cidade de Paris, baseando o seu conhecimento nos livros que lia sobre a arquitectura da cidade. Filha de pai terráqueo e órfã de mãe, sonha encontrar na capital francesa mais informação sobre as suas origens familiares. Entretanto, acaba por ser a escolhida para ingressar numa expedição à Terra. Fica feliz por realizar o sonho de conhecer a cidade que tanto ama, mas a verdade é que não vai encontrar exatamente aquilo que pretendia encontrar. E junte-se a isso o facto desta viagem ser igualmente uma busca de identidade e de pertença, por parte da protagonista.


Paralela à demanda e busca de Kârinh, o tema do espaço urbano, da arquitectura, do desenvolvimento e mutação das cidades e a (dist)utopia das cidades do passado, do presente e do futuro também estão presentes. 

Relativamente à arte, diria que é um típico livro François Scuitten. Quem já é fã da sua arte, continuará a sê-lo e quem não aprecia muito, também não será neste livro que mudará de ideias. Mas, seja como for, e goste-se ou não do estilo de ilustração do autor, a verdade é que o seu traço apresenta uma singularidade incrível, num estilo genial, do ponto de vista arquitetónico, transportando o leitor para um outro universo que é, ao mesmo tempo, tão distante e impossível como, tão real e próximo. É uma arte impressionante da primeira à última página. Em termos de gosto pessoal, tenho que dizer, mais uma vez, e como já disse em Uma Aventura de Blake e Mortimer - O Último Faraó, que, na conceção de expressões faciais das personagens, o autor é um pouco limitado. As suas personagens humanas parecem-me sempre pouco expressivas e com pouca sensação de movimento, levando a que me pareçam bonecos de cera, mesmo admitindo que as fisionomias estão muito bem caracterizadas. É nos objetos, nos edifícios, nos locais, nos veículos que, de facto, a arte do autor se transcende fazendo com que o seu estilo seja único e grandioso. E claro, é realmente impressionante que Schuiten consiga imaginar e conceber, através dos seus desenhos, todos estes locais, onde somos convidados a entrar. Destaque para a magnífica capa do livro. Perfeita, em termos estéticos.


Relativamente à história de Kârinh, diria que Peeters não aparece neste Rever Paris tão inspirado como noutros livros. Há aqui muitas ideias interessantes, mas, no final, o argumento não parece tão sólido como os alicerces arquitetónicos onde se sustentam as maravilhosas ilustrações de Schuitten. A primeira parte da obra é marcada por Kârinh à procura de uma civilização que idealizou e que já não existe. A sua caminhada atravessa regiões áridas e locais abandonados, desprovidos de vida humana – que remetem, com as devidas diferenças, para a exploração que o videojogo The Last Of Us coloca ao jogador. Ao longo da jornada, vão sendo introduzidas personagens no caminho da protagonista, mas são sempre personagens misteriosas e algo latas, que não conseguem adensar a trama convenientemente. A própria Kârinh é, aliás, uma personagem que, a meu ver, poderia estar mais bem desenvolvida na forma como traça o seu caminho e as suas ambições. Parece que o autor não tinha uma ideia clara de como queria construir a sua personagem e fê-lo aos poucos, enquanto escrevia o argumento desta obra. E eventualmente, a procura de Kârinh recai naquele lugar-comum narrativo da procura pelas raízes, por familiares até então desconhecidos, e por uma terra a que possa pertencer. Uma coisa que é apenas subtilmente levantada e que, por ventura, poderia dar mais suco ao argumento é a temática de ser – ou não - preferível viver num mundo limpo, organizado, climatizado e programado ou se, opostamente, a vida tem mais “sal” quando vivida num mundo onde impera o caos, a imprevisibilidade, o desconhecido.


Quanto à edição, este livro merece-me um comentário mais extenso. Se, há uns dias, aplaudi a decisão da Levoir em redistribuir a obra O Neto do Homem mais Sábio, de Tomás Guerrero, devido a vários erros ortográficos e à gralha no ano do nascimento de José Saramago, a verdade é que, tendo feito esse gesto – que mais uma vez aplaudo – a editora abriu um precedente perigoso para ela mesma. É que, Rever Paris, tem tal como O Neto do Homem mais Sábio, inúmeros erros ortográficos e de pontuação, bem como verbos mal conjugados ou palavras repetidas. Sendo assim, a pergunta coloca-se: “Então e agora, Levoir?” Irá a Levoir fazer uma nova impressão de Rever Paris, como fez para a biografia de José Saramago? Ou ficamos com uma dualidade de critérios que em nada fica bem à editora portuguesa? Não andei a contar o número de erros dos dois livros mas diria que são abundantes em ambas as obras. E ainda nem mencionei o mais grave! Na página 58 de Rever Paris acontece aquele que, a meu ver, é possivelmente o pior erro que pode acontecer na impressão de uma obra de banda desenhada: uma página ser impressa em baixa resolução, o que faz com que as ilustrações fiquem todas "pixelizadas" e, consequentemente, arruinadas. Não sei se este grave problema apenas afetou o meu exemplar e se isto é um erro de impressão externo à editora. De qualquer maneira, repito: de todos os problemas, na impressão e edição, que um livro de bd possa apresentar, este é o mais grave. Que fará a Levoir quanto a isto, repito? Novas impressões tal como em O Neto do Homem mais Sábio? Ou será que a (verdadeira) razão da reimpressão d’O Neto do Homem Mais Sábio foi a pressão externa que a editora sofreu, por se tratar de uma obra que cobre a vida de José Saramago? Afinal, a razão não foi a preocupação pelos leitores? São perguntas às quais a Levoir há-de dar uma resposta. Seja ela qual for.


É certo que a coleção de novelas gráficas é o acontecimento editorial da banda desenhada em Portugal e as valências desta coleção são mais que muitas, como, aliás, já referi várias vezes. Os livros são verdadeiramente baratos tendo em conta a qualidade dos mesmos. Mas isso não pode - nem deve - justificar que este tipo de erros que revelam, acima de tudo, um descuido na edição e revisão das obras, possam acontecer. Rever Paris é uma obra de dois nomes tão solenes da banda desenhada mundial, numa edição integral, complementada por um interessantíssimo dossier de extras, e que tem o fantástico preço de 10,90€. Sim, isso é incontestável. Mas infelizmente, também é verdade que a Levoir continua a apresentar erros e problemas nos seus livros que lhe tiram o grau de qualidade e profissionalismo que, certamente, a editora almeja deter. E é uma verdadeira pena, sublinho.

Porque, no final, Rever Paris é um livro de grande qualidade, que eleva o nível da coleção de novelas gráficas da Levoir e do Público. Schuiten aparece muito inspirado e dá-nos um trabalho grandioso nas ilustrações. Já Benoît Peeters, por seu turno, não se mostra tão inspirado no argumento, como noutros trabalhos da dupla. E, claro, a principal queixa na leitura deste livro, tem que ir para a fraca qualidade da edição – com problemas ainda mais crassos do que no anterior volume da coleção O Neto do Homem Mais Sábio – que, lamentavelmente, retiram prazer à leitura da obra. A pergunta subsiste: irá a Levoir lançar uma nova versão corrigida do livro?


NOTA FINAL (1/10):
8.3


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Rever Paris
Autores: François Schuiten e Benoît Peeters
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Setembro de 2020

4 comentários:

  1. Caro Hugo Pinto, tive a oportunidade de ler as suas observações em relação a este volume e apenas vem confirmar aquilo que, desde à algum tempo, venho a afirmar - a Levoir tem um problema grave no controlo de produção das obras que edita nesta colecção ( e provavelmente em outras). Não se trata apenas de erros de ortografia e lexicais (lembra-se do infame “Ronnie”...), mas também gráficos, impressões demasiadamente escuras e com meios tons fechados (Traço de Giz, Jogo de Xadrez, Fogos de Mattoti, entre outros...), entupimento de traços finos e cortes demasiadamente dentro da mancha (Goradze, A Febre de Urbicanda...). Junta-se a isto papéis inadequados à reprodução com qualidade das obras. Já tive oportunidade de referir isto à editora Silvia Reig mas, aparentemente, sem qualquer efeito. Este será, provavelmente o último ano que adquirirei obras desta coleção..

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    1. Caro António. Muito obrigado pelo seu comentário, que tanta coisa acertada diz. Eu compreendo que esta coleção é muito importante para a banda desenhada em Portugal e é verdade que já nos deu obras maravilhosas a um preço muito em conta. E por isso, estou agradecido e quero que esta coleção continue durante muitos anos. Mas isso não invalida que a editora não se preocupe com a qualidade do seu trabalho, especialmente na revisão do texto e na preparação da obra para seguir para a gráfica. Resta-nos aguardar que a qualidade possa melhorar.

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  2. Muito obrigado Hugo pela análise e pelo trabalho feito neste blog. É de facto triste que uma editora tenha material de base desta qualidade e consistentemente apresente este tipo de erros ou falhas na edição. Isto já para não falar no tema das coleções incompletas e sem foco. (talvez lá para 2030 tenhamos a coleção das Cidades Obscuras toda traduzida...) Posso confirmar que o ponto que refere na página 58 também está presente na minha cópia do livro. Questiono se não seria preferivel à Levoir reduzir o número de livros destas colecções para um número que lhe permitisse garantir a qualidade de cada, mesmo que para isso aumente o preço de cada um. Esta já é a sexta colecção e parece que os erros não são ultrapassados. Este foi provavelmente o último volume desta colecção que compro este ano. Talvez no ano que vem corrijam estes temas, se bem que tenho pouca esperança. Restam-nos outras editoras como a Ala dos Livros que têm vindo a fazer um trabalho de edição de verdadeira qualidade.

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    1. Ricardo, obrigado pelo comentário. Estou de acordo com o que menciona. Parece-me que a Levoir necessita fazer uma reflexão sobre o seu modo de trabalho. Continuo a acreditar que esta coleção das novelas gráficas tem capacidade e importância para ser dos acontecimentos editoriais de bd mais relevantes do ano. Mas é, de facto, uma pena que persistam certos erros.

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