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terça-feira, 16 de abril de 2024

Análise: A Estrada


A Estrada, de Manu Larcenet

Depois do lançamento em Portugal de obras tão relevantes do autor Manu Larcenet como O Combate Quotidiano ou O Relatório de Brodeck, a expectativa para a leitura deste A Estrada, do mesmo autor, que a Ala dos Livros acaba de editar, era mais que muita.

Adotando um estilo de ilustração que, mesmo sendo diferente, se equipara ao que o autor francês utilizou no miraculoso O Relatório de Brodeck, Manu Larcenet volta a adaptar para banda desenhada um romance. Desta feita, estamos perante a adaptação de A Estrada, de Cormac McCarthy. Um livro de teor pesado e negro cuja história marcante nos deixa a refletir por longos dias após finda a leitura da mesma.

Esta é, antes de tudo, uma história que nos mergulha de forma visceral e profunda na condição humana num mundo pós-apocalíptico. Mas fá-lo através de uma abordagem que, por um lado, é minimalista, oferecendo poucos ou nenhuns dados ao leitor sobre o porquê da existência de um mundo assim, e, por outro lado, é implacavelmente sombria. Não há zombies nesta história – os verdadeiros monstros são os humanos – mas há um ambiente soturno, triste, sujo e árido que transparece de cada uma das vinhetas magnificamente desenhadas por Larcenet, e que poderia muito bem ser cenário para The Walking Dead, por exemplo.

Voltando à história, se é otimismo aquilo que procuram num livro, seguramente não o encontrarão em A Estrada. Escolham outro caminho, escolham outra Estrada. Neste universo desolado, com cinzas a cobrir toda a superfície, com a humanidade em colapso e com um planeta que deixou de funcionar do modo que conhecemos, apenas há algo a fazer para os que ainda persistem: a luta pela sobrevivência.

E é isso que os protagonistas da história, um pai e um filho, vão fazendo da primeira à última página, enfrentando, claro está, muitas adversidades, revelações e acontecimentos chocantes pelo caminho. Pela longa estrada que têm pela frente. A exploração narrativa que aqui é feita é essa mesma relação de pai e filho. Porque, se o mundo perder a humanidade e a esperança que lhe restam, em que é que nós, humanos, nos poderemos apoiar? No caso das personagens deste A Estrada, a resposta a estas questões parece residir no amor, na proteção e no altruísmo que um pai está disposto a exercer para assegurar que, contra todas as expectativas, o seu filho sobreviverá. Esta luta desenfreada do pai, tão vulnerável perante um mundo tão desolado e carregado de morte e sofrimento, acaba por ser o ponto comovente e impactante de todo o relato.

O conceito é simples e não é propriamente novo ou inovador, mas, mesmo assim, A Estrada é especialmente feliz e original na forma como esculpe um mundo muito próprio e uma trama que não deixa de prender a atenção do leitor.

E, claro, depois há um vasto conjunto de questões morais e éticas levantadas por Cormac McCarthy que, nesta adaptação para BD, Manu Larcenet capta com destreza, pois são muitas as situações extremas que testam os limites morais e a força interior deste pai e filho. Será que num mundo em que cada um procura apenas sobreviver, não olhando a meios para tal, acabamos, todos nós, e de uma forma ou de outra, por perder a humanidade original que nos diferencia dos outros animais? É uma questão aberta a que, também de forma aberta, este livro responde.

Por ventura, sinto que A Estrada carece um pouco de contexto e explicação sobre o mundo pós-apocalíptico onde decorre a ação. Admito que essa escolha funciona bem na parte em que adiciona mistério e uma atmosfera muito próprios à leitura, mas, por outro lado, também deixa muitas perguntas sem resposta operando quase como mero exercício narrativo. É claro que este meu comentário é mais em relação à própria obra original do que à adaptação de Larcenet que replica muito bem não só o espírito, como a história original. Alguns dos eventos da obra original foram retirados, mas parece-me ser justo afirmar que ficou assegurado o essencial da trama.

A história em si já é forte, sim, mas é nas ilustrações e, também, na cadência de ação, em que o autor gere com mestria os vários momentos que sobressaem da leitura que fazemos deste livro: os de solidão, os de marasmo, os de perigo iminente, os de desolação, os de desespero, os de choque, os de silêncio, os de brutalidade, os de amargura.

Com uma força imagética poderosamente singular, Larcenet faz-nos mergulhar de cabeça neste livro onde a dicotomia entre o belo e o horripilante anda de mãos tão bem entrelaçadas, da primeira à última página. Por um lado, são desenhos belos (belíssimos!) que - através de um traço meticuloso que consegue, e por incrível que pareça, oferecer luz através das densas manchas de sombra que toldam as faces dos protagonistas - o autor consegue dar-nos em cada uma das páginas do livro, pois mesmo nas ilustrações mais ínfimas em dimensão, é notório o nível de detalhe e virtuosismo que delas emana. 

Claro que, por outro lado, os desenhos também conseguem ser "feios". Não na execução, mas naquilo que esses desenhos ilustram, isto é, no output que os mesmos perpassam para o leitor. Com efeito, Larcenet ilustra de forma belíssima o feio, o disforme, o hediondo, o horroroso, o indecente, o repulsivo, o chocante. São desenhos que nos fazem engolir em seco ou que nos oferecem um esgar de nojo. E é isso mesmo que é arrebatador no belo trabalho de ilustração do autor.

Se o desenho é espantoso, o uso cirúrgico da cor é deveras impressionante, também. Folheado à pressa, até pode parecer que o livro é a preto e branco. Mas não é. É certo que a cor funciona apenas como um complemento sóbrio, uma nuance artística para dar vida (ou morte) às ilustrações, tentando não tirar o protagonismo ao próprio desenho. Mas, com tons que alteram entre os alaranjados, os amarelados e os cinzas azulados, a utilização que o autor faz da cor é uma autêntica masterclass de como, muitas vezes, “menos é mais”. Se os desenhos já eram lindos, com estas cores ficam ainda mais magnificentes.

E não ficamos por aqui: a maneira como Larcenet arquiteta a história, com uma planificação dinâmica e com enquadramentos que, ora nos oferecem um close-up de um objeto para aumento da tensão vivida pelas personagens, ora nos granjeiam planos afastados em que fica assente a ínfima dimensão física dos protagonistas face à enormidade de devastação que os rodeia, é em tudo muito cinematográfica, roçando a perfeição ao nível da força visual.

A própria ilustração da capa é um portento gráfico e consegue ser uma ótima síntese do que encontramos dentro do livro.

Quanto à edição, feita em simultâneo com a edição original francesa, nada negativo há a apontar. O livro apresenta capa dura e baça e, no miolo, bom papel baço. A impressão e a encadernação também são de boa qualidade.

Em suma, para aqueles que estão dispostos a mergulhar na plena escuridão, A Estrada oferece uma experiência literária profundamente impactante e memorável. É, aliás, difícil que, no final de 2024, não consideremos, em retrospetiva, esta obra como um dos melhores livros de banda desenhada lançados por cá. E isto se não for mesmo o melhor. Aqui, tudo é feito com precisão, com emoção e com uma beleza pérfida que muito raramente encontramos em banda desenhada. Eis uma adaptação de uma obra poderosa profundamente sombria e visceral que explora temas como sobrevivência, desespero e o vínculo entre um pai e um filho num mundo pós-apocalíptico, enquanto examina, ao mesmo tempo, o que significa ser humano num mundo de adversidade extrema. Podem colocar o livro no vosso carrinho de compras virtual ou, se estiverem numa loja física enquanto leem esta análise, levá-lo convosco para a caixa de pagamento: este é mesmo OBRIGATÓRIO!


NOTA FINAL (1/10):
10.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
A Estrada
Autor: Manu Larcenet
Adaptado a partir da obra original de: Cormac McCarthy
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 160, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 298 x 242 mm
Lançamento: Março de 2024

3 comentários:

  1. Na minha lista de essenciais este ano. Espero que a seguir a este não tenhamos mais 2 anos de interregno de edições do autor no mercado nacional. Sugiro a seminal obra BLAST (obra prima...) e o excelente "Thérapie de groupe" em edição integral.

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    1. Essas são duas obras que quero muito ler. Obrigado pelas recomendações! :)

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    2. Ás ordens, Hugo. Chamo á atenção que, á semelhança de "O Combate Quotidiano", são obras de autor, i.e., não são adaptações de obras literárias. O registo gráfico de BLAST é semelhante ao usado nas adaptações enquanto o de "Thérapie de groupe" aproxima-se de "O Combate...". Ambos excelentes. Se puder trazer depois uma análise aqui no blog, talvez acorde os editores locais. Abraço.

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