Desde que passaram os 70 anos da morte de George Orwell - o que implica que a sua obra passa a ser do domínio público e, portanto, livre de ser adaptada por qualquer pessoa que o pretenda - o seu mais célebre romance, 1984, recebeu, nada mais nada menos, do que seis(!) adaptações para banda desenhada! A de Fido Nesti (2020), considerada a "oficial", a que se seguiram as adaptações de Frédéric Pontarolo (2021), de Xavier Coste (2021), de Sybille Titeux de la Croix e Amazing Améziane (2021), de Jean-Christophe Derrien e Rémi Torregrossa (2021) e, mais recentemente, a do autor checo Matyás Namai, que a editora Minotauro publicou há poucos dias por cá.
Das seis versões, e contando com esta versão que vos trago hoje, já quatro livros foram publicados em Portugal. A esse propósito - e achando que dificilmente se lançaria uma quarta versão, até fiz um artigo sobre os três livros editados por cá, tentando apresentar os prós e os contras de cada um dos livros.
Mas, caramba, quatro adaptações para banda desenhada da mesma obra lançadas em Portugal com tão pouco espaçamento temporal entre si?
Vamos lá por partes.
Sou um confesso adepto de 1984 e considero-o um dos melhores livros alguma vez escritos até hoje. Toda a distopia imaginada por George Orwell há tantas décadas parece-me verdadeiramente visionária e prova disso é que a obra continua a ser considerada - não apenas por mim - como uma das mais influentes e sombrias distopias da literatura moderna. É daqueles livros que considero que toda a gente os deve conhecer/ler. Portanto, enalteço adaptações para qualquer suporte. Para banda desenhada, ainda mais. Mas, convenhamos, seis adaptações da mesma obra para banda desenhada, das quais quatro delas são lançadas em Portugal? Não será demasiado, tendo especialmente em conta que o mercado nacional é pequeno e que há, em termos de banda desenhada, tanta coisa por editar ainda? Deixo a questão a bailar no ar...
Avançando para a versão que aqui vos trago hoje, de Matyás Namai, penso que é um trabalho bem conseguido e que recupera bastante bem a essência do livro de Orwell.
Há sempre muito para dizer sobre um livro tão especial e complexo como este, mas vou-me centrar no mais relevante. Acompanhamos a história do protagonista Winston Smith, que se passa num futuro totalitário, numa sociedade em que o Estado exerce um controlo absoluto sobre todos os aspetos da vida dos cidadãos, incluindo os seus pensamentos. A figura que encabeça todo este regime totalitário, liderado pelo Partido, é o líder quase divino chamado Big Brother - O Grande Irmão. O Partido controla todas as esferas da vida social, política e económica, usando a vigilância constante e a repressão de qualquer forma de dissidência. A sociedade é dividida entre os Proletários (classe trabalhadora) e os membros do Partido, sendo estes últimos privilegiados, mas, ainda assim, controlados e vigiados.
Winston Smith é um funcionário do Ministério da Verdade, que tem como principal tarefa alterar documentos históricos para que se ajustem à versão oficial do Partido. O Partido mantém, portanto, o poder por meio da manipulação da informação, criando uma realidade paralela e continuamente alterando o passado.
Embora Winston seja um membro do Partido, começa a questionar o regime. Passa a ter um diário secreto onde escreve os seus pensamentos proibidos e, quando conhece Julia, o seu mundo torna-se em algo muito mais pleno de felicidade. Se é que a felicidade num mundo como estes é permitida. Não só Júlia é uma amante despudorada, como também tem pensamentos contra o regime, o que ajuda a que Winston não se sinta tão sozinho. Mesmo assim, o casal acaba descoberto tendo, depois, de se submeter às punições e torturas do Partido, que culminam numa profunda e irremediável lavagem cerebral.
A história, já se sabe, toca nos temas do totalitarismo, da opressão, da manipulação da linguagem e da verdade, da vigilância ininterrupta dos cidadãos, do controlo psicológico e da anulação de todas as liberdades que, na sociedade que vivemos, achamos garantidas.
Mas isto tudo, já nós sabíamos com a leitura do livro original de George Orwell. Ficámo-lo a saber ainda melhor com a leitura das outras novelas gráficas, supramencionadas, que adaptaram a obra e, no caso deste livro de Matyuas Namai, vimos reiterada toda a mensagem do texto original de Orwell.
Texto esse que está, diga-se, bem captado por Namai nesta adaptação. O livro do autor checo prima por nos remeter de forma credível para o universo de Orwell. Capta muito bem a história e até me atrevo a dizer que, mesmo que um leitor não tenha lido o livro original, fica com uma ideia muito concisa e pertinente da obra se apenas tiver lido esta banda desenhada. A história, as personagens, os seus principais momentos, as peripécias que acontecem aos protagonistas e até a própria ideologia do livro - que é bastante complexa, relembre-se - aparece-nos bem explanada. E tanto assim é, que até peca por excesso, tendo informação a mais do que o necessário.
E isto leva-me a um tema que considero verdadeiramente lastimoso para este livro... há demasiado texto! Não me refiro ao texto dos balões, mas ao texto que nos é dado em prosa. Quando Winston começa a ler o livro que lhe é oferecido por Goldstein, o leitor desta banda desenhada tem acesso a longas e enfastiantes 19(!) páginas de texto corrido, super abstrato e super complexo. Se, na minha análise à adaptação de Fido Nesti, defendi que, dada a complexidade deste livro, algumas páginas com texto eram admissíveis e até bem-vindas, no caso deste livro de Matyás Namai, penso que 19 páginas, e ainda por cima a meio da trama, quase "matam" a pretensão da obra. Se o autor queria dar ao leitor todas estas informações, poderia tê-lo feito no final do livro, enquanto caderno de extras. Ou se quisesse colocar páginas de texto corrido no meio da história, poderíamos aceitar umas quatro ou cinco. Agora, 19 páginas de informação e assim, no meio da história, parece-me um erro capital. E custa-me a crer que ninguém da proximidade do autor lhe tenha dado este sábio conselho.
Mas avancemos para o melhor: o desenho da obra. Gostei bastante da abordagem gráfica que Namai faz a 1984. No seu traço fino realista e, por vezes, estilizado, o autor oferece-nos um belíssimo trabalho a preto e branco onde, em muitos momentos, a cor vermelha também entra para emprestar algum dramatismo à trama. Por vezes, o traço do autor é tão fino que até faz os desenhos parecerem gastos e, consequentemente, vintage. A expressividade das personagens, a planificação com alguma dinâmica e a utilização de planos de câmara diversificados dão, por outro lado, um aspeto atual, cinematográfico e moderno ao todo.
No final, parece-me que há um equilíbrio gráfico bem conseguido.
Olhando para o trabalho de edição da Minotauro, editora não muito habituada à publicação de banda desenhada (tendo, no entanto, publicado "recentemente" as biografias em BD de Johnny Cash e de Nick Cave, de Reinhard Kleist), neste 1984 - Novela Gráfica somos presenteados com uma edição em capa mole, com badanas, e um papel decente no miolo. No final, há um muito generoso dossier de extras, onde podemos tomar contacto com os esboços de capas e personagens, dos Ministérios, dos uniformes, do processo de construção de uma página, entre outras informações úteis e interessantes. Se este extra acrescenta valor à edição, há dois problemas de edição que o livro apresenta e que devem ser referidos: por um lado, a legendagem apresenta algumas debilidades, especialmente na font escolhida; por outro lado, a mancha de impressão é demasiadamente grande para o formato e encadernação escolhidos para este livro, o que faz com que se percam muitos detalhes nas ilustrações - e até nas legendas - que aparecem situados na margem interior do livro. Coisas relativamente simples mas que, infelizmente, não foram asseguradas nesta edição.
Em jeito de conclusão, e tendo que assinalar que as editoras portuguesas estão a abusar na publicação de bandas desenhadas que adaptam o 1984 de George Orwell - o que pode ser lastimoso para a evolução positiva da própria BD em Portugal -, concedo que esta nova e quarta(!) adaptação da obra maior de Orwell cumpre bem os seus pressupostos, continuando a alertar-nos sobre os perigos do autoritarismo, da manipulação da verdade, da propaganda e da censura para a liberdade individual. E, não esqueçamos, especialmente nos dias que correm, 1984 mantém-se atual e obrigatório.
NOTA FINAL (1/10):
8.3
Nota: Por indisponibilidade de imagens das pranchas do livro em português, vi-me forçado a utilizar pranchas da versão em inglês do livro.
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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1984 - Novela Gráfica
Autor: Matyás Namai
Adaptado a partir da obra original de: George Orwell
Editora: Minotauro
Páginas: 292 a preto e branco (com detalhes a vermelho)
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 26 cm
Lançamento: Outubro de 2024