Voltando aos meus comuns paralelismos entre banda desenhada e música, diria que uma das coisas que mais me agrada na música é a capacidade que alguns músicos têm em conseguir fazer muito através de pouco. Pegar em dois ou três acordes musicais e fazer deles uma obra prima da música. Podia falar em alguns clássicos dos The Beatles, dos The Rolling Stones ou dos Ac/Dc. São músicas que se baseiam em meros três acordes e não é por isso que não são unanimemente considerados como clássicos sublimes da música. Se, um observador incauto poderá dizer: “mas o que há de tão genial numa coisa tão simples e fácil em termos técnicos?”, eu direi, em contraponto, que, por vezes, é mais complexo fazer o simples e é mais simples fazer o complexo. Fazer um cozinhado com poucos ingredientes, fazer um filme com poucos meios, fazer uma música com poucos instrumentos e/ou acordes ou fazer uma banda desenhada com poucos apetrechos ilustrativos ou de argumento e ser, ainda assim, marcante para o género é, não raras vezes, uma tarefa mais difícil do que fazer as coisas de forma mais complexa.
Em A Casa, Paco Roca tem a capacidade de fazer isso mesmo. Algo majestoso mas que advém de algo simples. Básico, até. Esta é uma obra com uma história simples, com um desenho linear mas que traz consigo várias camadas de complexidade e reflexão, que apenas um autor de bd com uma grande mestria consegue passar.
Esta é uma obra já minha conhecida há alguns anos, quando foi publicada em Portugal pela Levoir, em 2016. Entretanto passou-se algum tempo e, após a fantástica leitura de Regreso al Edén, também de Paco Roca, que tão boa impressão deixou em mim, não resisti a revisitar este A Casa.
Ambas as obras têm uma natureza auto-biográfica. Regreso al Edén é uma homenagem às origens da mãe do autor e este A Casa é uma homenagem ao seu pai. Ambos os livros são fantásticos e leituras obrigatórias. Para todo e qualquer leitor. Até mesmo para aqueles que nem sequer têm o hábito de ler banda desenhada.
Aqui, nesta obra multipremiada, o autor conta-nos uma história simples que tanta gente, mais cedo ou mais tarde, acaba por viver. A da morte de um pai e o legado físico que esse ente querido deixa na vida dos que ficam. Neste caso, esse legado não é apenas a casa que a família foi construindo ao longo dos anos, como todo o seu recheio e, mais importante ainda, todas as memórias impregnadas aos objetos físicos que ficam neste mundo, quando alguém parte.
Esta foi a segunda casa, de veraneio, que o patriarca António foi construindo com a mulher e os seus três filhos, Vicente, José e Carla, ao longo de vários anos. Como os tempos eram outros e o dinheiro não abundava, várias famílias espanholas – e portuguesas também, já agora – que foram tendo um pouco de mais liquidez financeira com o passar dos anos, começaram a investir em terrenos e iam construindo, à sua maneira, com os seus próprios meios e engenho, as casas de férias. Toda essa empreitada era levada a cabo por todos os membros da família e fazia nascer, naturalmente, um conjunto enorme de memórias na vida dos filhos. É o que se passa nesta obra.
E ainda que possamos considerar que o pai António era várias vezes algo autoritário no tratamento que dava aos seus filhos, a verdade é que os tempos eram outros e, por vezes, somos levados a fazer determinado julgamento, com base na nossa sensibilidade do momento. Que, naturalmente, não é estanque. Assim, e com o passar dos anos, tendemos a ir mudando algumas das opiniões a que tão fortemente nos agarrámos no passado. Nesse sentido, é comum que, à medida que um filho vai crescendo e amadurecendo, comece a compreender melhor certos comportamentos dos seus pais que, durante a sua juventude, até condenava. É uma condição humana normal, diria.
E A Casa (também) aborda muito este tema. Com a distância devida do tempo presente, conseguimos muitas vezes, adocicar a memória de um passado que achávamos amargo ou menos positivo. Como diz o chavão, só quando perdemos certas coisas é que compreendemos o valor e a importância que as mesmas tinham na nossa vida.
Quando, motivados pelo falecimento do seu pai, os filhos Vicente (o mais velho e mais rígido), José (o artista e aparentemente desapegado à família) e Carla (a mais nova e mais emotiva) vêem-se obrigados a decidir o que vão fazer com a casa que herdaram. Ao visitá-la, acabam por sentir uma invasão involuntária das memórias do seu próprio pai e das suas infâncias, que lhes é dada pela casa e pelo recheio da mesma. E, claro, as memórias variam de pessoa para pessoa. E isso, (também) está soberbamente bem conseguido por Paco Roca. Se José recorda com ternura o dia em que o pai, devido a um corte de eletricidade, conseguiu ligar a televisão à bateria do carro, de forma a que pudessem ver, ao luar, o jogo de basketball da seleção de Espanha, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984; Carla recorda-se do dia em que, numa tarde de enorme calor, e ainda sem a piscina da casa construída, o pai se lembrou de deitar água para um bidão e permitir que os três filhos se refrescassem nele. Já Vicente recorda como gostava de ajudar o seu pai a lavar o carro. Não há memórias mais ou menos importantes... elas ganham essa relevância com base nas emoções que sentimos quando as recordamos. E isso, repito, é adorável de ler nesta banda desenhada. E é impossível não partir para as memórias que nós, leitores, temos do nosso passado feliz.
E é por isso que esta obra assume um cariz de universalidade. Todos nós, de uma forma ou de outra, conseguimos identificarmo-nos com aquilo que aqui é tratado. A instituição que é, per si, a família e que, obviamente, terá oscilações ao longo da vida de um indivíduo – variando, também, conforme a cultura ou religião desse indivíduo – acaba por ser uma âncora muito forte na estrutura basilar dos valores de uma pessoa. Paco Roca parece sabê-lo bem e é inteligente na forma refrescante como aborda estas vivências mundanas do dia-a-dia, fazendo-o de um modo que quase parece novo e nunca antes feito, muito embora seja executado com uma tamanha simplicidade. Lá estão os três acordes básicos que formam uma música impressionante e que soa a novo, que referi no início deste texto! Não é fácil fazer isto.
A narrativa é simples, com uma cadência lenta, semelhante à da vida real, mas torna-se mais que tudo, real, honesta, verdadeira. E isso é a chave para que seja uma história emotiva e marcante. Sem nunca ser lamechas. Não há nada de lamechas aqui. É a vida como ela é. Umas vezes difícil, umas vezes fácil, umas vezes feliz, umas vezes triste. E tristeza foi, aliás, a sensação com que reli esta história agora. Mas talvez isso se deva mais ao meu estado de espírito atual do que à obra em si, pois também é verdade que há um lado positivo nessa obra - um silver lining, vá - que tem que ver com tudo aquilo a que nos podemos agarrar para conseguir ultrapassar a perda. Que coisas pequenas são essas, ocultas em memórias distantes, que nos permitem aprender, melhorar enquanto pessoas, perdoar erros do passado, aceitar opções feitas e, mais do que tudo isso, deixar entrar luz numa existência de escuridão? Paco Roca pode não nos dar a resposta concreta mas encaminha-nos para que a encontremos por nós mesmos.
Olhando, também, para os desenhos do autor espanhol, devo dizer que, também aqui, Roca faz tudo de forma muito simples e até mesmo modesta. Mantém o seu estilo característico de traço mas, neste caso, até me parece uma arte mais simples e linear, com um menor cuidado do que em obras como o já referido Regreso al Edén ou O Inverno do Desenhador. Graficamente o autor sabe demonstrar boas soluções gráficas para muitos momentos da obra, se bem que neste A Casa me parece (um pouco) menos inspirado nas ilustrações do que em outras obras.
As cores utilizadas ajudam a que a obra seja bonita de observar, com uma paleta de cores mais amareladas sempre que há um regresso ao passado que nos remete à tal casa de férias onde os verões eram quentes e as chuvas, quando chovia, eram impetuosas.
A edição da Levoir tem as características de uma habitual novela gráfica, embora este livro tenha sido lançado a solo, fora de uma das coleções de Novelas Gráficas. A capa é dura e o papel, sendo fino, apresenta uma qualidade aceitável. O formato é horizontal. Já referi que não é um formato que me agrade por variadas razões. Mas compreendo que o autor tenha optado pelo mesmo, aproximando a obra a quase um álbum de fotografias e de memórias.
Já o disse e repito: Paco Roca é um autor que sabe trabalhar muito bem com as ferramentas que tem ao seu dispôr. Tal como há músicos, como Bob Dylan, Bruce Springsteen ou Harry Chapin, entre muitos outros, que são considerados storytellers, pois parecem utilizar a sua criação artística com o intuito primordial de contar uma história, também há criadores de banda desenhada que o fazem de um modo semelhante. Paco Roca é um exemplo perfeito disso. Um autêntico storyteller. Tudo na criação do autor é operado inteligentemente, de forma a oferecer-nos uma história que nos marque e que seja inolvidável. A Casa é tudo isso. Um livro sobre a família que se torna familiar perante os leitores e um livro de memórias que acaba por ser memorável.
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Casa
Autor: Paco Roca
Editora: Levoir
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2016
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