Ainda antes de avançar para o quinto álbum da série Duke, intitulado Pistoleiro é o que Serás, que a editora Arte de Autor lançou há poucas semanas, decidi ler os primeiros 4 álbuns da série. Lembro-me que já tinha lido o primeiro de todos, A Lama e o Sangue, há uns anos, mas que, entretanto, com a passagem do tempo, tinha perdido contacto com a série. Assim, o texto que se segue procura ser uma análise dos primeiros quatro volumes.
E o que é, afinal, este Duke?
Duke é um western, bastante clássico na forma e (não tanto) no conteúdo, que nos traz o célebre ilustrador Hermann, responsável por séries de sucesso como Comanche, Bernard Prince, Jeremiah e muitas outras. O argumentista é Yves H., que é filho de Hermann. Ambos os autores já colaboraram noutros álbuns de bd como, por exemplo, Laços de Sangue ou Verão de '57.
Convém desde já dizer que recomendo que Duke seja lido de uma só vez. A leitura da soma do todo é muito mais marcante do que se os livros forem lidos de forma isolada. É certo que a série, que já se encontra no quinto tomo, ainda não está terminada e que, por esse motivo, alguns interessados poderão querer aguardar pelo fim da publicação da série. Não obstante, devo dizer que, quando li isoladamente o primeiro volume, até não fiquei muito impressionado com a obra. Pareceu-me interessante mas nada de extraordinário. No entanto, depois de ler 5 tomos seguidos, devo dizer que, de facto, esta é uma excelente série de banda desenhada e totalmente recomendada para os fãs do génereo western. Não é, porém, isenta de algumas falhas. Mas, já lá irei.
Fazendo um breve resumo das histórias do primeiro ao quarto tomo, a série coloca-nos na cidade de Ogden, no Colorado, Estados Unidos da América, e traz-nos a personagem de Duke, que é um ajudante do Xerife e que terá que reagir à onda de assassinatos que começa a imperar na pequena localidade onde atua. Se o primeiro tomo me parece o mais fraco, menos marcante e que, de certa forma, até faz com que a série arranque com o “pé esquerdo”, a verdade é que a partir do tomo 2 é que a série começa, realmente, a saber contar a história e a adensá-la com uma trama que deixa o leitor cheio de dúvidas por esclarecer.
Na verdade, e por estranho que pareça, até acho que se a série começar a ser lida apenas a partir do segundo tomo, não se perde grande coisa em termos de história ou de momentos memoráveis. De facto, esse segundo tomo, Aquele que Mata, arranca com uma cena marcante e emocionalmente forte, em que nos é apresentada Eleanor, uma criança que escapa a uma chacina e que ficará, posteriormente, a fazer parte da série. E é também neste segundo volume que é introduzida a missão de transportar (e proteger) 100 mil dólares, de um ponto para o outro, prestando este serviço à personagem Mullins, um magnata do setor minério. Esta missão da escolta do dinheiro vai estando presente em todos os outros tomos o que nos permite, desde já, concluir que o tempo de ação desta série é bastante lento.
Acompanhado por mais algumas personagens, Duke parte então nesta missão de escoltar o dinheiro enquanto persegue, ao mesmo tempo, o conjunto de assassinos que tem importunado a localidade. Entretanto, a história avança e recua, e acontecem várias peripécias ao longo da viagem que não revelarei, para não estragar o prazer da leitura da obra aos que ainda não a leram. Mas uma coisa é certa: é uma obra de ritmo lento. Existe ação, sim, mas também existe bastante reflexão, memórias que persistem na mente de Duke e que servem para que possamos conhecê-lo aos poucos. Em paralelo, vamos conhecendo o percurso de Peg, a amada de Duke, e todas as privações pelas quais tem que passar enquanto espera, devotamente, que Duke regresse.
Duke não é a personagem tipo deste género de série. Sabemos que é um pistoleiro incrível – e que as outras personagens respeitam os seus dotes nas armas - mas até não o vemos muitas vezes em ação. Claro que, à medida que a história vai avançando, começamos a desvendar, aos poucos, as características únicas que definem esta personagem e como a infância e a relação com o seu irmão, Clem, moldou Duke.
E uma coisa que me parece muito interessante no protagonista desta história é a forma, bem pensada, como o argumentista Yves H. explora a dualidade de se ser assassino. Se, em determinadas alturas, Duke parece querer afastar-se de todas as situações que o levem a ter que matar alguém, noutras alturas, parece que tem um real apetite para tirar vidas. E como é uma personagem muito reservada, o argumentista serve-se (bem) disso para confundir o leitor em relação às pretensões de Duke. E esta é, possivelmente, a coisa mais bem conseguida em termos de argumento.
Mas há outras personagens marcantes, para além do protagonista. Por um lado, existe Peg, a mulher que espera por Duke e a quem este prometeu que, depois de reunido dinheiro suficiente, irá viver com ela e afastar-se da vida de pistoleiro. Esta é a vertente mais romântica da história. Mas não é Peg a única mulher na vida de Duke. Rose, um antigo amor, também se vai cruzar com o protagonista nesta viagem. Os fantasmas do passado ainda estão bem vivos na mente de Rose, o que fará com que o encontro com Duke não corra da maneira que nenhum dos envolvidos gostaria. Como se não bastasse, ainda existe o irmão Clem que vai adquirindo mais importância ao longo da história.
Ao contrário da aclamada série Comanche que apresentava uma estrutura muito mais clássica no género, em que cada um dos volumes contava uma história com princípio, meio e fim, aquilo que nos é dado em Duke é bem diferente. Se por um lado, pode parecer uma história bem mais contemplativa, quase filosófica e com momentos que, por vezes, são parados demais, a verdade é que esta série traz consigo uma abordagem quiçá mais madura, menos romantizada e mais terra-a-terra. É menos emotivo e divertido que um western mais clássico, mas é, por ventura, mais maduro e sério. Valha isso o que valer. Se uma série como Undertaker, publicada pela Ala dos Livros, pode perfeitamente ser lida (também) por um jovem de 18 anos (mesmo sendo um western), Duke parece-me voltada para um público bastante mais maduro de banda desenhada. Que acompanhou a clássica série Comanche e que, nos dias de hoje, já procura menos aventura jovial e mais reflexão graúda. Mesmo que ambientada no faroeste americano. Eventualmente, foi até esse o percurso que Hermann, autor de Comanche e de Duke, também fez enquanto autor, atrevo-me a especular.
Sobre a arte ilustrativa de Hermann, devo confessar que tenho sentimentos mistos. Há ilustrações na série Duke que me fazem ficar de queixo caído, dada a qualidade e inspiração das mesmas. Há outras coisas que me fazem abanar a cabeça tristemente. Note-se que a arte deste autor e o seu traço característico estão muito em linha com aquilo que o autor nos tem dado nos últimos anos de obra. A utilização de aguarelas para colorir a história é sublime, por vezes, com as ilustrações a serem dignas de figurar numa galeria de arte! Espantosas! Magníficas!
Porém, há três coisas que me deixam desagradado com a arte de Hermann em Duke: 1) as expressões faciais das peronsagens que, por vezes, parecem estranha e despropositadamente desfiguradas; 2) a fisionomia das personagens que, muitas vezes, apresentam cabeças que parecem desenquadradas dos corpos que as sustentam; e 3) a caracterização das faces femininas que me parecem injustificadamente feias. Se as mulheres de Gibrat ou de Manara são belas, as mulheres de Hermann parecem travestis de segunda categoria. É óbvio que, bem sei, isto será mais uma opção estética do autor do que uma incapacidade técnica. Até porque, relembro, Comanche até era uma mulher bastante bonita e feminina. Portanto, Hermann sabe desenhar mulheres. Mas simplesmente não o parece querer fazer em Duke e noutras obras mais recentes. A razão pela qual isto denigre artisticamente a obra – na minha modesta opinião, que vale o (pouco) que vale – é que gera uma certa incoerência artística. Por exemplo, na série Bouncer de Boucq, também publicada pela Arte de Autor, as mulheres também têm expressões rudes. Mas, nesse caso, há um rudeza no traço que afeta toda a ilustração do autor: os traços são rudes nas mulheres, mas também nos homens, nos animais, nos décors, em tudo. No caso de Duke, essa rudeza parece só atingir mulheres. Os homens parecem-se homens. Mas as mulheres também se parecem homens! Mais grave ainda: até as crianças parecem homens!
Não percebo o porquê e acho que traz um peso negativo à ilustração que, não raras vezes, é para lá de majestosa. Desculpem, leitores, este meu desabafo, mas não consigo não falar nisto. E sei que, naturalmente, há uma certa subjetividade na forma como consideramos certos desenhos bonitos ou feios. O que me faz confusão neste caso é a dualidade de critérios do autor. Ora faz vinhetas que poderiam concorrer ao prémio de melhor vinheta do ano, ora faz vinhetas que parecem desenhadas pela minha filha de 6 anos. É uma opção e há que respeitá-la. Mas é uma pena que tenha sido essa a opção tomada. Os fãs de Hermann não me levem a mal. Eu também sou um fã do autor. E acho maravilhoso que, com mais de 80 anos, continue a lançar livros a um ritmo tão bom. Mas, em última análise, fico com os tais sentimentos mistos em relação à sua arte ilustrativa.
Onde Hermann brilha muito, convém realçar, é na caracterização das paisagens, nas imagens mais contemplativas (que, talvez por isso, abundam em Duke) e, claro, aqui e ali na boa caracteização das personagens. E o trabalho de cores é, todo ele, muito artístico e único no estilo. Quando a história volta atrás através dos flashbacks, o autor utiliza uma paleta de cores em tons sépia que também é lindíssima de observar.
Quanto à edição da Arte de Autor, é uma coleção muito bem conseguida. Hoje em dia, o western está muito em voga relativamente às apostas das editoras portuguesas (relembro que A Seita acaba de publicar uma nova coleção de Tex, a ASA continua com a sua coleção clássica de Lucky Luke, a Gradiva anunciou recentemente o lançamento de O Último Homem e a Ala dos Livros tem Undertaker como o seu herói do faraoeste), e este Duke, a par de Bouncer, constitui uma forte e respeitável aposta da Arte de Autor para satisfazer o desejo de histórias de cowboys por parte dos leitores portugueses.
Em conclusão, devo dizer que Duke é uma série que começa timidamente com um primeiro tomo algo insípido mas que, a partir daí, sabe montar uma boa trama, ao jeito dos bons filmes de cowboys. E claro, sendo servida pela arte de Hermann que, por vezes é sublime - e noutras vezes não tanto - tem, à partida, uma dose de boa qualidade assegurada. Não agarra logo o leitor, mas vai agarrando-o gradualmente. Não recomendo um tomo para experimentar. Recomendo mesmo a leitura total pois só dessa forma se consegue apreciar (verdadeiramente) a série e a sua história.
Brevemente não percam a análise ao quinto álbum, Pistoleiro é o que Serás.
Nota final do Livro 1: A Lama e o Sangue: 7.5
Nota final do Livro 2: Aquele Que Mata: 8.7
Nota final do Livro 3: Sou uma Sombra: 8.7
Nota final do Livro 4: A Última Vez que Rezei: 8.3
NOTA FINAL DOS 4 PRIMEIROS TOMOS (1/10):
8.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Duke #1 - A Lama e o Sangue
Autores: Yves H. e Hermann
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Outubro de 2017
Autores: Yves H. e Hermann
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Maio de 2018
Autores: Yves H. e Hermann
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Março de 2019
Autores: Yves H. e Hermann
Editora: Arte de Autor
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2020
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