Esta foi uma daquelas surpresas de banda desenhada que, certamente, apanhou muita gente de surpresa. O jornal Expresso, através de uma campanha de sensibilização da população, que visa comunicar a importância do rastreio do cancro do cólon, ofereceu totalmente grátis(!) um livro de banda desenhada, franco-belga, de 46 páginas e a cores! Bem, se considerarmos que o semanário Expresso tem o custo de 4€, então era esse o preço a pagar por todos aqueles que queriam obter este livro. No entanto, como nas outras semanas o jornal tem o mesmo preço, podemos dizer que sim, o livro João – A Vida, um Combate que Vale a Pena foi mesmo oferecido aos leitores do Expresso.
E que fantástica iniciativa! Julgo ser sempre uma excelente aposta utilizar a banda desenhada, enquanto meio, para promover qualquer iniciativa de bem comum, pois permite passar uma mensagem e, simultaneamente, chamar mais pessoas para o universo de banda desenhada. Saem todos a ganhar, portanto.
Este João – A Vida, um Combate que Vale a Pena é da autoria de Luc Colemont e Mario Boon, e conta-nos a história de um homem que acaba de fazer 50 anos e que, após um presente de aniversário das suas duas filhas, faz uma viagem a Roma. No regresso, é-lhe diagnosticado cancro no cólon. João achava que estava ótimo de saúde portanto esta notícia vira a sua vida do avesso. Durante a sua curta viagem a Roma, João conhece uma mulher italiana por quem se começa a apaixonar. O que adensa a trama que nos é dada.
E, por sua vez, a luta contra o cancro que João terá que enfrentar é metaforicamente tratada como o treino, cheio de provas - para lá de difíceis - pelas quais os candidatos a gladiadores, na época do Império Romano, tinham que passar até que fossem considerados verdadeiros gladiadores. Estas provas demoravam 6 meses e é também 6 meses o tempo que demora o tratamento por quimioterapia para o cancro do cólon. A privação e o desafio são imensos e acarretam forças inumanas – tais como as de um Gladiador da Roma Antiga – para vencer um colosso como o cancro. Mas, mesmo sendo verdade que a vida é, por vezes, um combate injusto em que temos que lutar contra coisas maiores do que nós... também é indubitável que a luta pela vida será o combate que mais vale a pena fazer. Porque vida só há uma e é a ela que todos nós, cada um à sua maneira, nos temos que agarrar.
É incrível como a história é densa para umas meras 48 páginas de bd. Nelas, o autor Luc Colemont consegue demonstrar a relação que o protagonista, João, tem com as suas filhas – e as relações amorosas que elas mesmas têm; consegue inventar uma nova história de amor – entre João e a italiana Lucia; consegue colocar a ação a decorrer entre Bruxelas e Roma; consegue ter um cariz didático sobre a doença e respetivo tratamento hospitalar; consegue colocar o protagonista a desenvolver uma relação de amizade com outro paciente que passa pela mesma batalha que ele; consegue ainda colocar no argumento um casamento pelo meio, bem como um assalto violento; e, como se não bastasse, a obra ainda nos dá vários episódios que nos colocam na Roma Antiga, no tempo dos Gladiadores! Tanta coisa acontece em apenas 48 páginas!
É óbvio que tudo o que refiro acima é-nos apresentado de forma sucinta e rápida. No entanto, nunca fiquei com a ideia que a narrativa fosse “a despachar”. Na verdade, pareceu-me, isso sim, que a mesma está bem concentrada. De forma a ser eficaz. A história fica bem contada e consegue passar a sua mensagem de forma inequívoca.
Luc Colemont – que também é o médico que fundou a associação “Stop Darmkanker” (Stop Cancro do Cólon) tinha um objetivo claro para a obra, que era o de consciencializar a população para a importância do rastreio do cancro do cólon. Mas foi bem mais longe do que esse intuito primordial, conseguindo traçar uma história pertinente e credível, que sabe prender o leitor à mesma.
Olhando ainda para o argumento, a história que nos é dada nem precisava, a meu ver, da tal metáfora para a Antiga Roma. Percebe-se o porquê desta equiparação, conforme já referi acima, mas creio que a história funcionaria igualmente bem – ou melhor – se apenas se centrasse no tempo presente. Na relação de João com as suas filhas, com o novo amor que encontra e com a nova amizade que faz. Isso já seria bom.
Em termos de ilustrações, temos um álbum muito agradável em mãos. O ilustrador Mario Boon, apresenta um traço moderno, de cariz franco-belga, ligeiramente grosso, mas bastante ágil, estilizado e versátil para as diferentes situações que a história nos vai dando. Seja nas ilustrações dos gladiadores romanos, seja em momentos mais emocionais, seja na boa clarificação gráfica da doença e tratamentos, seja nos veículos e nos ambientes citadinos, o trabalho de Boon é muito agradável. As personagens apresentam um estilo semi-realista que funciona bem para o tipo de emoções que a obra tem reservadas para os leitores. Há algumas vinhetas que beneficiariam se tivessem recebido um trabalho mais cuidado e aprimorado por parte do autor. Mas, sinceramente, em termos gerais, é uma banda desenhada agradável para observar. Não é fantástica mas funciona bem e é muito eficaz.
As cores também ajudam a que a obra seja apelativa. Com uma paleta de cores mais amareladas na Roma Antiga e com efeitos de luz muito agradáveis de observar, devo dizer que o trabalho da colorista Mariacristina Federico também contribui para a sensação agradável final.
Quanto à edição, a obra que a editora belga Standaard Uitgeverij nos oferece é em capa mole, com papel de boa qualidade. Há ainda um dossiê de extras sobre o cancro do cólon e com algumas páginas dedicadas ao making of da obra, em termos de preparação da capa, estudos de personagens e com a demonstração de um exemplo prático no desenvolvimento de uma prancha. Mais uma vez, até nos extras este livro consegue ser uma agradável surpresa.
Se o objetivo desta obra era apenas o de sensibilização da população, então podemos afirmar sem receios, que os objetivos foram larga e vitoriosamente ultrapassados! É a soma das partes que tornam este livro como uma das melhores surpresas de 2021, em termos de bd, até agora. Não é que seja um livro perfeito, daqueles que nos marcam para o resto da vida. Não é perfeito em nada, para ser honesto. Nem no argumento, nem na narrativa, nem na arte ilustrativa. Mas, não o sendo, é verdadeiramente interessante em todos esses cômputos. E acaba por ser uma ótima surpresa, porque, quando abri o Expresso e vi o livro de bd que lá vinha enquanto bónus, não esperei nada que fosse tão bom. Achei: “Oh, que giro. Um livro de bd grátis é sempre bom. Embora não deva ser grande coisa. Deve ser bem fraquinho mas vale pela iniciativa positiva”. Estava completamente errado. Este livro não vale apenas pela boa iniciativa que traz consigo. Vale como um todo e é um sucesso em vários vectores.
NOTA FINAL (1/10):
8.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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João – A Vida, um Combate que Vale a Pena
Autores: Luc Colemont e Mario Boon
Editora: Standaard Uitgeverij
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Março de 2021
A edição digital da obra é gratuita e pode ser lida aqui.
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