Desde que foi originalmente lançada em 2019, a série de bd Heartstopper transformou-se num autêntico bestseller mundial, tendo conquistado milhões de fãs em todo o mundo. Entretanto, no início de 2021, a gigante Netflix já adquiriu os direitos da franquia, para começar a fazer a sua própria adaptação da obra original da jovem autora inglesa, de 26 anos, Alice Oseman.
A editora portuguesa Cultura, por sua vez, aproveitou o sucesso mundial da obra para se estrear no lançamento de banda desenhada em Portugal. O que é algo que deverá deixar os amantes de bd felizes. Nesse sentido, desejo, naturalmente, que a editora portuguesa continue a lançar os próximos volumes de Heartstopper, bem como, outras séries de banda desenhada.
Heartstopper conta-nos a história de Charlie e Nick, dois colegas de escola, que não se conheciam entre si, até ao dia em que, numa disciplina escolar, se sentam lado a lado. Rapidamente se tornam então amigos e Charlie, que é homossexual assumido, começa a apaixonar-se por Nick, embora considere que não terá oportunidades com o amigo, por achar que ele é heterossexual. Convém dar nota de que, antes de travar conhecimento com Nick, Charlie já tinha tido uma relação com outro rapaz, Ben. Mas este, parecia aproveitar-se de Charlie só para ter alguém que satisfizesse os seus ímpetos com outro rapaz. E facilmente nos apercebemos que a relação entre ambos se está a tornar tóxica para Charlie. É nessa altura que, ocasionalmente, Nick dá de caras com Ben a aproveitar-se de Charlie. Decide intervir e proteger o seu amigo. E, a partir deste ponto, Charlie e Nick ficam ainda mais próximos e passam os dias juntos, partilhando os mais variados momentos. Até que o invevitável acontece e os dois envolvem-se amorosamente.
Uma história do mais simples que há! Uma pessoa apaixona-se por outra, sente borboletas na barriga por isso e julga sempre que não será correspondida. Em Heartstopper a diferença será, por ventura, o facto da narrativa se centrar em duas pessoas do mesmo sexo. A história é contada de forma bastante graciosa e romântica, focando-se mais na questão do primeiro amor e paixão do que, propriamente, no facto de ser uma relação homossexual. Claro que isso também é abordado – especialmente através da personagem de Nick, que não está ainda resolvido em termos sexuais e enfrenta muitas dúvidas e incertezas à medida que se vai envolvendo com Charlie – mas, o foco de Heartstopper não é a questão da homossexualidade. A questão em grande plano é o primeiro amor entre jovens.
E isso será, por ventura, a verdadeira inclusão social que o livro traz consigo. Era fácil partir-se por aquele caminho expetável do “ah... a sociedade ainda considera tão errado e estranho ser-se homossexual e ninguém vai aceitar estas personagens e, portanto, pode-se explorar essa dificuldade que elas sentem”. Mas não. Não é por aí que Heartstopper aparenta querer ir. É certo que nos apercebemos de algum bullying por parte dos colegas de escola, quando Charlie se assume como homossexual; e sentimos a dor de Nick quando se questiona se será mesmo homossexual. Mas, por outro lado, temos um Charlie que parece ser totalmente aceite pela sua família; temos a mãe de Nick que parece dar conta do quão mais feliz e solto este parece ser, na presença de Charlie; e temos uma história que é apresentada de forma límpida, suave e terna, sem lugar para a auto-comiseração.
É claro que a leveza da narrativa, que traz este olhar absolutamente natural e despreconceituoso para com a homossexualidade, possibilitanto ainda, para além disso, uma leitura escorreita e fácil da história, leva a que também possamos objetar que a obra poderia ter ido mais longe na capacidade para sensibilizar os jovens das dificuldades por que passam todos aqueles que têm uma sexualidade diferente daquilo que (ainda) é socialmente esperado. Estou a lembrar-me por exemplo, da magnífica e inesquecível banda desenhada publicada pela Arte de Autor, O Azul é Uma Cor Quente, que é uma história mais profunda, mais pesada e mais sexual sobre a questão da homossexualidade entre jovens. Mas, lá está, Alice Oseman e o seu Heartstopper não parecem tanto querer refletir sobre ser-se homossexual mas, ao invés disso, apresentar-nos simplesmente uma história de amor entre jovens. E nada de errado há nisso. Muito pelo contrário. E, em última instância, apresentar algo como sendo normal – embora muita gente ainda não o considere – pode ser, por si só, uma forma de, ágil e perspicazmente, veicular mudança na mentalidade alheia.
Heartstopper procura demonstrar que é natural e normal que os jovens se apaixonem, se envolvam e se conheçam a si mesmos nos amores juvenis. Sejam eles heterossexuais ou homossexuais. E acho que isso é de louvar na série e, certamente, será uma das grandes valências desta banda desenhada, que tanto sucesso está a recolher junto de público e crítica. Mas não só.
A maneira como a autora, Alice Oseman, sabe dosear a história é muito bem conseguida, e mesmo sendo verdade que este primeiro livro da série tem 262 páginas de história, é um livro que se pode ler em pouco mais do que uma hora. Porquê? Bem, primeiro, porque cada página raramente excede as três vinhetas; segundo, porque o ritmo da história é bem rápido, com diálogos simples e juvenis; e, terceiro, porque é cativante o modo como a autora constrói as personagens e doseia o início da paixão entre elas. Acaba por ser quase impossível não ganharmos simpatia quer por Charlie, quer por Nick, e que não torçamos para que ambos fiquem juntos. E felizes. É pois uma leitura viciante pois assim que começamos a ler o livro, é difícil parar de ler.
O estilo da narrativa é bastante jovial/adolescente. Isto não é dizer que Heartstopper não seja indicado para adultos. Acho que pode e deve ser lido por adultos. No entanto, é óbvio que o público-alvo desta série é o adolescente e jovem-adulto. A leitura é fácil, a arte é simples e jovial, e o tema é atual e resfrescante. Já para não falar que mesmo em termos de comunicação, o facto da autora introduzir “smiles” e “emojis” nos próprios balões de falas das personagens, consegue aproximá-las à geração de jovens atual, que tanto se serve desses elementos para comunicar, especialmente através das redes sociais e dos telemóveis. Tudo características indicadas para ser um must para jovens.
Em termos de arte ilustrativa, Alice Oseman detém um traço com fortes influências no estilo mangá, com as personagens a apresentarem olhos extremamente expressivos, narizes simplistas e cabelos revoltos. Algumas características dos comics americanos também podem ser encontradas aqui e ali. Não obstante, é justo dizer que a autora consegue incrementar o seu próprio estilo. Por vezes gostaria que os cenários e os corpos das personagens fossem feitos com mais rigor e detalhe. No entanto, também percebo que para o tipo de leitura que temos em mãos, que utiliza mais os desenhos como um instrumento para ilustrar a história do que para ser um livro com ilustrações belas, acaba por funcionar bem. E mesmo admitindo ser verdade que o desenho de corpos e cenários seja algo básico e quase adolescente por parte da autora, há que admitir que Alice Oseman é exímia na forma como consegue ilustrar os sentimentos vários que as suas personagens experienciam ao longo da narrativa. Se a expressão facial de uma personagem deve ser inequívoca relativamente ao sentimento que se pretende passar para o leitor, então o trabalho de Alice Oseman é digno de louvores.
Em termos de edição, este é um livro em capa mole. Pela forma física do objeto-livro, aproxima-se mais de um qualquer romance em capa mole do que, propriamente, de um álbum de banda desenhada. Algo também semelhante aos mangás que são lançados por cá. As folhas, meio amareladas e baças, também me parecem mais indicadas para texto do que para conterem ilustrações. Cada folha permite ver um pouco da ilustração do seu verso, coisa que não é muito agradável. De qualquer maneira, e percebendo o estilo de público desta obra, bem como o estilo de leitura aqui presente, aceita-se esta opção da editora Cultura. Além de que parece ser fiel à edição original inglesa. Um destaque para as partes em verniz da capa que tornam o livro mais apelativo.
Concluindo, e depois de lida a obra, que até foi premiada com o Goodreads Choice Awards 2020 para Melhor Banda Desenhada, é fácil compreender o sucesso massivo que Heartstopper está a conquistar em todo o mundo. É uma obra simples, bem pensada e bem executada, que nos conta a história de dois adolescentes que se começam a apaixonar um pelo outro. Tratando-se de um romance entre dois rapazes, colegas de escola, a história aborda a questão homossexual – para muitos um assunto muito tabu ainda – durante a adolescência. Uma boa leitura que até poderá trazer vários novos leitores para o universo da banda desenhada. Recomenda-se.
NOTA FINAL (1/10):
8.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Heartstopper #1 - Rapaz Conhece Rapaz
Autora: Alice Oseman
Editora: Cultura
Páginas: 288, a preto e branco
Encadernação: capa mole
Lançamento: Janeiro de 2021
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