Da autoria do italiano Manuele Fior, e editado em Portugal pela Devir, temos uma obra que nos dá dedaços de três vidas. Meros pedaços fugazes - mas marcantes - de um amor que não chega a acontecer. De modo assumido e exteriorizado porque no interior das personagens, um amor permanece vivo. Mesmo que falsamente apagado. A frase "não há amor como o primeiro. Os outros servem para esquecer o primeiro", assenta que nem uma luva nesta obra.
Este é dos álbuns de banda desenhada mais simples que li nos útimos tempos. A história é quase linear e daria para contar em duas ou três linhas: Piero e Nicola são dois jovens amigos. Um dia chega Lucia que transforma a vida de ambos. E os percursos escolhidos e as opções tomadas por cada um vão entretanto separar as três personagens por milhares de quilómetros. Os anos passam mas os sentimentos e as feridas mantêm-se ativas.
A história arranca em Itália, quando as três personagens são jovens mas depois, no seguinte capítulo, já acompanhamos Lúcia na gélida Noruega. Mais tarde, acompanharemos Piero no Egito, trabalhando como arqueólogo. E, entre os diferentes capítulos, passam-se vários anos. Não é uma história de um momento da vida apenas, mas sim uma história global sobre três vidas. Contada de forma bastante madura e com vários saltos no tempo. Alguns poderão achar que tem um ritmo demasiado lento. Diria que o começo, alco periclitante, também não ajuda a isso. Mas, no final, é uma obra de extrema qualidade, que merece ser (re)conhecida pelos leitores de boa bd.
Onde a obra também é madura é no facto de não tentar passar para os leitores qualquer tipo de moral de forma paternalista. É-nos dada a vida, tal como ela é. Aliás, por vezes, nem nos é dado o que é mas o que poderia ter sido ou o que, aparentemente, aconteceu. Alguns poderão achar que o discurso do autor é, de alguma forma, desencantado com a vida. Mas outros poderão achar que é aqui que reside a grande mensagem da obra. É que, à medida que vamos crescendo, vamos deixando certos sonhos, desejos e vontades do nosso passado... lá bem atrás das nossas vidas. Para alguns, isso não será nada de negativo e até podemos sempre guardar esse conjunto de memórias felizes na “gaveta positiva” do nosso ser. Mas, para outros, haverá sempre uma profunda e intermitente melancolia que não mais nos larga, ao longo da vida.
Quanto a mim, olho sempre com sentimentos mistos para os tempos felizes do passado, tentando retirar o que de melhor houve neles e aplicar isso à minha existência no presente. Como diria Max Payne, (sim, estou a citar uma personagem de videojogos!): “há dois tipos de pessoas: aquelas que gastam as suas vidas a tentar construir um futuro e aquelas que gastam as suas vidas a tentar reconstruir o passado”. E é isso que temos nesta obra.
O autor é inteligente e bem sucedido na maneira como corta a ligação cronológica entre capítulos pois, não havendo o clássico encadeamento entre os momentos aqui tratados, possibilita a que o leitor, sendo maduro, consiga percepcionar o que aconteceu entre os capítulos e que o autor italiano Manuele Fior, optou por não contar. Assim sendo, esta obra até contrasta com o habitual público, mais juvenil, dos lançamentos mais recentes da editora Devir.
Se me disserem: “não se passa nada nesta obra” eu responderei: “talvez não tenhas tido a capacidade de ler nas entrelinhas, de perceber o que estava ali a ser passado”. O autor acaba por co-contar a história com o leitor. Porque Fiore, dá as pistas e nós, complementamos o resto com as nossas próprias vivências. É pois possível, que certos acontecimentos que o autor nos leva a conspirar connosco mesmos, sejam diferentes de leitores para leitores.
Por vezes, esta sensação até pode não soar muito bem a mim mesmo. “Espera aí... então o autor corta certas partes dos acontecimentos? Como assim?”. Como o cantor que não se lembra da música e põe a audiência a cantar por ele? Como o restaurante que nos põe um naco de carne em cima de uma pedra a escaldar e nos faz cozinhar o nosso próprio bife, chamando-lhe, pomposamente de "Naco na Pedra"? Será o autor de Cinco Mil Quilómetros por Segundo preguiçoso? Não, claro que não! Apenas trata os seus próprios leitores como seres inteligentes. Cinco Mil Quilómetros por Segundo não é uma obra que nos faça a papinha toda mas é um trabalho que certamente nos faz pensar e olhar para o nosso próprio umbigo. Que histórias deixámos por contar? Que romances acabámos por esquecer? Teremos feito um esfoço para os esquecer? Ou terá sido algo natural que o tempo ajudou a relativizar? Ou será que não esquecemos verdadeiramente os romances de outrora? O fogo foi extinto ou ainda existe uma chama eterna em nós? Quanto espaço ocupa dentro de nós aquilo que não aconteceu, e poderia ter acontecido? Os beijos que não demos, os sítios que não visitámos, as obras que não construímos, os momentos que não vivemos também fazem parte daquilo que somos? Ou apenas daquilo que não somos? Com que vazio enchemos a nossa alma, afinal de contas? São questões de adultos para adultos tentarem desvendar.
Quanto à arte aqui presente, Cinco Mil Quilómetros por Segundo é uma obra singular também. O estilo de traço até é simples e básico mas depois, com a aplicação das cores, através de pinceladas de tom expressionista, ganha um fulgor que, se fosse a preto e branco, dificilmente alcançaria. Estando a história dividida por capítulos que se passam em localidades diferentes entre si, as alterações cromáticas ajudam a construir um ambiente que se quer diferente. Na Noruega temos tons azulados e frios, em Itália, nos primeiros anos, temos tons esverdados e, no Egito, os tons cromáticos são amarelados e acastanhados. As cores contribuem para que o álbum seja graficamente bonito e para que os desenhos ganhem com isso.
Relativamente a coisas menos boas, considero que a história demora um pouco a arrancar o interesse do leitor, sendo menos cativante logo no primeiro capítulo, quando Piero e Nicola são jovens e conhecem Lucia. Essa parte poderia estar mais bem apelativa do ponto de vista do character building. A relação que, depois, se vai criando ao longo da obra com as personagens, não é logo estabelecida no primeiro capítulo. Só depois da chegada de Lucia à Noruega é que a história começou verdadeiramente a arrancar para mim. Mas depois disso, o meu interesse nesta obra não mais cessou.
Há também vários dialetos cruzados que por vezes têm tradução – como no caso do norueguês – mas, noutros casos, como por exemplo no árabe, já não têm tradução. Não sei se isto também é feito na versão original da obra. Mas julgo que poderia ter sido mais bem conseguido. Se a ideia era deixar o leitor sem compreensão da língua estrangeira - como quando Piero chega ao Egito -, acho que o mesmo deveria ter sido feito quando Lucia chega à Noruega. Ou então deixava-se uma pequena frase, à margem da vinheta, com a tradução do que é dito, nos dois casos. Por uma questão de coerência.
Quanto à edição em si, tem uma excelente qualidade. Capa dura e papel baço de uma ajustada espessura que permite apreciar a arte de Fior da melhor forma possível. Tudo impecável.
Concluindo o meu olhar sobre este Cinco Mil Quilómetros por Segundo, acho que, acima de tudo, Manuele Fior se assume como um autor muito inteligente. Sabe trabalhar bem com as suas qualidades e valências. A história até é simples mas é contada de forma muito bem conseguida, que coloca o leitor a refletir. A qualidade do desenho também não é espetacular mas depois, com a inteligente e delicada aplicação das aguarelas e a conceptualidade que o sistema cromático atribui a cada um dos capítulos da história, faz com que haja uma harmonia visual assinalável. Já vi livros com melhor argumento a não chegarem tão longe nos seus intentos e já vi livros com melhor arte ilustrativa a não serem tão bonitos de se observar. Por isso repito: Manuel Fiore é um autor inteligente. E, não só, mas também por isso, o prémio de Melhor Álbum - Fauve D'Or que esta obra arrecadou em 2011, no Festival de BD de Angoulême, não me surpreende. E é merecido, sinceramente.
Uma obra ímpar e plena de qualidade, para um público mais maduro, mais vivido, mais consciente de si mesmo.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Cinco Mil Quilómetros por Segundo
Autor: Manuele Fior
Editora: Devir
Páginas: 148, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Maio de 2018
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