Depois de Undertaker 1 que, na altura, considerei como um dos melhores álbuns de BD de 2019, a editora Ala dos Livros trouxe-nos esse muito aguardado Volume 2, intitulado A Dança dos Abutres e que fecha esta primeira narrativa de Jonas Crow, o cangalheiro.
Undertaker é, sem dúvida, um dos melhores westerns que já li em banda desenhada. E digo isto baseado em duas coisas: é que, se por um lado, os fãs de western ficarão certamente agradados por esta série incrível, que respeita os moldes habituais do género; por outro lado, a forma como o argumento está imaginado por Xavier Dorison – autor dos também fantásticos O Castelo dos Animais, lançado em Portugal pela Arte de Autor, ou Long John Silver, que não me canso de referenciar como uma das apostas que, certamente, seria um sucesso no mercado português – está fantástica e é, até, um pouco disruptiva daquilo que, habitualmente, vemos nos westerns.
Em primeiro lugar, aquilo que os autores trouxeram para a mesa, e que é mais refrescante do que tudo, é o tipo de protagonista que a série nos oferece. Em histórias noir, com temas policiais e urbanos, é frequente encontrarmos protagonistas que não são mais do que anti-heróis. Personagens carregadas de sentimentos negativos, que nos fazem adorá-las apesar das suas falhas. No género western, isso é menos frequente. E a personagem principal desta série, Jonas Crow, é um autêntico anti-herói. Tem uma das profissões que mais desdém atrai por parte da sociedade, até mesmo nos dias de hoje – que é a de cangalheiro. A de ganhar a vida através da morte dos outros. Mas, se tudo isto parece muito surumbático, Jonas Crow consegue ser espirituoso naquilo que diz – e como diz –, apresentando um humor negro, um sorriso contagiante e qualidades de pistoleiro aventureiro.
É, portanto, refrescante enquanto personagem e é fácil para os leitores criarem um laço com um protagonista. As suas tiradas, quando inventa frases ditas pelo profeta São Paulo aos “Californianos” não só são lufadas de um humor refrescante, como um claro exemplo de como Dorison estava inspirado quando criou esta personagem. Além disso, mesmo graficamente, é uma personagem muito carismática, que se desloca na sua carroça fúnebre, vestido com a sua capa negra e cartola da mesma cor, com barba preta e fazendo-se acompanhar pelo seu animal de estimação, que não poderia ser outro, do que um abutre a quem Jonas poupou a vida, no início do primeiro tomo.
Queria, aliás dizer que, quanto a mim, é Jonas Crow a grande valência de Undertaker. A fantástica personagem que Dorison inventou é mesmo o grande trunfo aqui presente. Poderíamos mencionar a fantástica arte, as inspiradas cores ou mesmo o muito bem conseguido argumento. Mas, com a criação de uma personagem assim tão cool, original e espirituosa, aqrrisco-me a afirmar que os autores já tinham meio caminho andado para algo inesquecível. Porém, e felizmente, Undertaker não é apenas uma série com um fantástico protagonista. É, também, uma série com um argumento viciante – daqueles que deixa os leitores engaged e com vontade de desvenderam a história – e uma arte ilustrativa soberba. Na verdade, não vejo aqui nada que funcione mal. Atualmente, é das melhores séries em publicação em Portugal e a Ala dos Livros está de parabéns pela aposta. Obrigatória para os que gostam de western e para os que dizem que não gostam de western.
Analisemos primeiro o argumento. É praticamente impossível falar de Undertaker 2 sem falar de Undertaker 1. Até porque, estes dois volumes fecham um primeiro ciclo da série. Entretanto, há mais 3 álbuns publicados em França.
Undertaker conta-nos a história de Jonas Crow que, no primeiro tomo, O Devorador de Ouro, chega à cidade de Anoki City em busca de trabalho. É quando conhece Joe Cusco, figura carismática que se tornou um milionário a explorar minas de ouro, que o protagonista se cruza com a bela Rose. O pedido de Joe Cusco é simples: prepara-se para morrer nessa noite, após jantar pepitas de ouro, e é seu desejo ser enterrado na mina de Red Chance onde, no início da sua carreira de mineiro, encontrou o seu primeiro filão de ouro. Entretanto, os mineiros, que eram totalmente explorados por Cusco, acabam por saber que o cadáver de Cusco está carregado do ouro que este ingeriu e decidem perseguir o cangalheiro Jonas Crow que se faz acompanhar por Rose, a governanta de Cusco, e de Lin, a sua cozinheira. Entretanto há muita ação, algumas revelações do passado das personagens e várias voltas e reviravoltas na trama, o que tornam o primeiro tomo como um livro quase viciante de ler. No final do primeiro volume, após uma excelente cena de ação, os leitores vêem-se à beira de um cliffhanger narrativo.
O tomo 2, A Dança dos Abutres, após um breve flashback que nos dá a conhecer como é que Rose conseguiu o seu trabalho enquanto governanta de Cusco, pega na ação que tinha sido deixada em suspenso no tomo 2 e parte daí. A viagem na emblemática carroça de Crow prossegue em direção à mina de Red Chance, de forma a honrar o pedido de Cusco. Mas, durante essa jornada, muitas peripécias acontecem a este trio improvável, constituído por Jonas Crow, Rose e Lin. Os mineiros continuam no seu encalço e até o exército é chamado a intervir. Não querendo revelar muito mais sobre a história deste segundo tomo, para não correr o risco de estragar alguma surpresa relevante aos que me lêem, insisto que é um argumento muito bem doseado de boa ação, uma boa trama, personagens marcantes e, até mesmo, alguns momentos de bom humor. Assinalo também que neste segundo tomo há mais espaço para desenvolver as personagens de Rose e de Lin. Dorison prova que é um argumentista em grande forma, não só no primeiro como, também, neste segundo tomo.
E se tudo o que já escrevi atrás é positivo, os desenhos com que Ralph Meyer nos brinda nesta série são verdadeiramente fantásticos. O autor é dono de um traço dinâmico e ágil, de cariz franco-belga – a fazer lembrar Blueberry – com uma capacidade impressionante para ilustrar maravilhosas expressões humanas, fabulosos ambientes típicos do western e, também, cenas de ação gloriosas. É um livro muito bem desenhado, com uma planificação extremamente bem pensada, que vai permitindo à obra ter diversidade e opções narrativas suficientes para qualquer que seja o cenário, a personagem ou o acontecimento que interessa desenhar. Fantástico e muito do meu agrado, confesso.
Se posso apresentar uma única – e pequena - queixa em relação ao trabalho de Meyer na ilustração é que, quando temos planos em que as personagens se encontram longe do ponto de vista do leitor, o detalhe com que as mesmas é desenhado é extremamente menor. Por vezes faz sentido, se estivermos a ver silhuetas de personagens, por exemplo, mas noutras vezes, julgo que um pouco de mais cuidado e detalhe neste tipo de vinhetas, faria com que a obra fosse mesmo perfeita. Mas, claro, também é verdade que Meyer sabe ser inteligente e dosear muito bem estas vinhetas com menor detalhe, colocando-as ao lado de outras com extremo detalhe que, naturalmente, captam a atenção do leitor e o fazem esquecer da vinheta imediatamente ao lado, que não é tão perfeita em termos de desenho. Por esta razão, esta "imperfeição" que aponto acaba (bem) camuflada e passa pelos pingos da chuva, de forma airosa.
Mas se argumento e desenho são fantásticos, que dizer das cores que esta obra apresenta? É um livro com uma líndissima paleta de cores. Pareceu-me que as opções cromáticas, com que Caroline Delable coloriu a arte de Meyer, eram sempre as mais certas e ajustadas. É um daqueles livros que, só de folhear, nos dá prazer. Os tons do faroeste avermelhados estão bastante presentes mas também apreciei muito a forma como as cenas noturnas são coloridas. Maravilhoso também no cômputo das cores.
Por fim, e para não destoar, a edição da Ala dos Livros é de extrema qualidade. Já o tinha sido no volume 1 e é-o novamente neste segundo tomo. Papel de excelente gramagem, boa legendagem, boa qualidade de impressão. Lamentei que este segundo livro não tivesse, no seu final, esquissos do autor, tal como aconteceu no primeiro volume. Mas isso é um pequeno reparo apenas.
Concluindo, Undertaker é fantástico nas coisas grandes e nas coisas pequenas. É praticamente uma série sem defeitos, com um ótimo equilíbrio entre argumento, desenhos e cores, e que considero obrigatória em qualquer boa estante de banda desenhada. Goste-se ou não do género western. A Dança dos Abutres é fantástico e conclui com mestria os eventos começados no anterior tomo, O Devorador de Ouro. Obrigatório e um dos livros de banda desenhada do ano, certamente!
NOTA FINAL (1/10):
9.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Undertaker 2 - A Dança dos Abutres
Autores: Xavier Dorison, Ralph Meyer e Caroline Delabie
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Fevereiro de 2021
Outro que ainda há-de vir cá para casa. Depois de "O último homem..." este parece-me ser o western que garante uma qualidade inquestionável. Na wish list.
ResponderEliminar