A Herança das Cores é a primeira obra a ser lançada este ano pelas Edições FA, conforme já tinha sido avançado aqui no Vinheta 2020, quando publiquei a entrevista com o responsável Flávio C. Almeida.
E julgo ser justo dizer que, em termos de obras, o catálogo das Edições FA não poderia abrir melhor. A Herança das Cores, da autoria do francês David Revoy, é uma história plena de significados e reflexões.
Este é um daqueles exemplos clássicos de como uma boa ideia acaba por resultar sempre. É simples mas é, acima de tudo, eficaz.
A história que a obra nos apresenta é a seguinte: somos colocados na pele de uma criança que, ao ter um mau ambiente dentro de casa, com os pais em constantes discussões e violência verbal, acaba por ver o mundo a preto e branco e de forma triste e depressiva. Não é pois de estranhar que, quando a professora pede um desenho aos seus alunos, a criança que protagoniza a história faça um enorme rabisco a preto, desenhado com raiva.
Eventualmente, através de uma voz narrativa que poderá ser o discurso em off da professora ou o próprio discurso do autor que também se assume como narrador, é transmitida uma forte mensagem de incentivo, de força, de influência positiva. E vamos acompanhando a protagonista a encontrar coisas boas e positivas no ambiente que a rodeia – seja um cão simpático a quem faz festas, um pássaro a cantar, uma boa ação de alguém para a criança, a natureza envolvente, etc. As tais pequenas coisas boas da vida que tanto contribuem para a nossa felicidade plena.
Em termos gráficos o autor optou por algo simples, que não é propriamente novo – julgo já ter visto esta ideia a ser desenvolvida em filmes e até num videojogo – que é a utilização do preto e branco e do monocromático como a demonstração de uma realidade triste e a posterior introdução das cores, representando algo que começa a ser melhor e mais positivo. À medida que a menina desta história vai encontrando coisas bonitas e que a marcam positivamente, as cores vão sendo gradualmente introduzidas. É simples e fácil mas funciona muito bem. E isso é que interessa.
O estilo do autor David Revoy – do qual as Edições FA também já publicaram, no ano passado Pepper & Carrot – apresenta fortes influências japonesas, com os traços faciais das personagens a parecerem que sairam de um animé. É um estilo de arte que funciona muito bem nesta história e no qual o autor se parece sentir como peixe na água. A maneira de ilustrar as personagens e o mundo que a rodeia acabam por despertar uma sensação de ternura no leitor, o que aumenta a relação que se cria com a história aqui presente. Também, à semelhança daquilo que se pode encontrar num mangá, as personagens apresentam emoções faciais muito expressivas que, por esse motivo, também ajudam ao fortalecimento da relação entre obra e leitor.
Gostaria que tivesse sido dado mais detalhe a alguns cenários. Por vezes, temos vinhetas em que o autor apenas desenhou as personagens, deixando o ambiente cénico completamente despido. Compreende-se, naturalmente, a intenção narrativa para esta opção mas, ainda assim, pareceu-me que a presença de mais detalhes teriam beneficiado essas vinhetas. Não obstante, é um livro muito bonito em termos de ilustrações. E as cores também conseguem atribuir ainda mais beleza ao conjunto, à medida que vão sendo introduzidas na obra.
Obra essa que é curta. Embora este livro tenha 50 páginas, a verdade é que a história apenas tem 25 páginas, sendo as restantes um extenso e interessante dossier de extras, onde nos são mostrados os estudos de personagem, de cenas, de planificação, etc, que o autor fez na preparação deste álbum. Portanto, se há uma queixa que persiste nesta obra é que é boa mas curta. Fiquei com a sensação de que gostaria de ter visto a narrativa a ser mais explorada em termos de páginas. Ressalvo que assim, como está, funciona bem. Se estivessemos a falar de cinema, diria que A Herança das Cores é mais uma curta-metragem do que uma longa-metragem. Um breve conto. Mas tinha potencial para algo mais. Talvez, quem sabe, um dia o autor não volta a pegar nesta interessante ideia e não a desenvolve mais?
Uma coisa que poderia ter sido mais aprimorada por Revoy foi a questão da legendagem. O texto é introduzido diretamente em cima dos desenhos, sem qualquer margem branca que o destaque das ilustrações. Isto retira alguma legibilidade aos textos. Era fácil, a meu ver, ter feito melhor nesta questão.
Em termos de edição, este livro apresenta-se como uma edição de autor. Tendo capa mole, a encadernação e o papel utilizado apresentam uma qualidade satisfatória, se tivermos em conta que esta é uma edição de autor. Se fosse uma edição "profissional" – chamemos-lhe assim – não poderia considerar a qualidade da edição tão satisfatória assim. Há no entanto uma pequena (grande) coisa que tenho que referir. E na qual costumo ser muito crítico. É que este livro apresenta bastantes imagens pixelizadas. Como já disse noutras análises que aqui fiz, este é dos erros que mais problemas me causam numa edição. E infelizmente neste A Herança das Cores, é algo bastante comum, a começar pela capa. Sendo uma edição de autor, compreendo melhor e consigo aceitar com mais facilidade do que quando se trata de uma edição profissional, com uma tiragem significativa. De qualquer maneira, deixo a nota para futuros lançamentos da Edições FA.
Em suma, as Edições FA estão de parabéns pela aposta nesta obra. O tema da violência doméstica nunca é demais trazer para a mesa e quer o autor, quer a editora, merecem as minhas vénias por tal. A história apresenta uma simplicidade e beleza que funcionam muito bem. É um livro que vale a pena conhecer.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Herança das Cores
Autor: David Revoy
Editora: Edições FA
Páginas: 50, a tons de cinzento e cores
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Janeiro de 2021
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