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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Análise: Amável, O Pugilista Gentil

Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House

Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House
Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy

Há livros que nos apanham de surpresa e este Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy, recentemente editado pela Iguana, é um deles. A capa é curiosa, o título ainda mais, e quando damos por nós, já estamos a rir com as desventuras deste herói improvável.

Começo até por esse ponto: o facto de este ser um livro de banda desenhada humorística., coisa não tão comum assim no mercado nacional. Ainda menos se tivermos perante uma obra de estreia, como é o caso.

A história que o autor português Ozzy arquitetou conta-nos a caminhada de Amável - sim, chama-se mesmo "Amável" - que é alguém que, à semelhança de muitas outras pessoas que, está preso a um trabalho de que não gosta e procura, nos entretantos da sua existência, arranjar redenção e felicidade para a sua vida. No caso de Amável, é na prática da luta no ringue que ele se sente bem. É o seu hobby, o seu escape.

Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House
Um dia, herda uma fita vermelha, semelhante à de John Rambo, que era do seu pai, o que o leva a embarcar numa viagem, algo sensorial - e completamente rocambolesca! -, numa procura por identidade com base no legado do seu pai.

É uma história com contornos meio loucos, meio inspiradores. O autor português Ozzy constrói uma narrativa divertida, cheia de peripécias e um belo ritmo narrativo, onde o humor anda de mãos dadas com a reflexão. Ozzy oferece-nos boas mensagens, bons trocadilhos, bons momentos e um conjunto de what a fucks inusitados, que nos agarram à leitura, fazendo-nos sorrir e deixando-nos com o seguinte pensamento: "para onde me está a querer levar esta história?". Ora, essa é sempre uma coisa que me agrada num livro. Gosto que não seja óbvio - e às vezes é - o destino para onde uma qualquer obra nos leva.

O que me prendeu logo foi o humor independente do livro. É aquele tipo de humor que não tenta agradar a toda a gente, mas que resulta pela originalidade e pelo ritmo visual. Ozzy brinca com clichets, faz trocadilhos visuais e usa o exagero de forma criativa. É o tipo de comédia que lembra certas animações fora da caixa, com um toque de nonsense e uma piscadela de olho ao leitor mais atento.

Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House
E é claro que esta história de tom rocambolesco, talvez um pouco rebuscado por vezes, funciona muito bem nesse registo. Há situações absurdas, coincidências improváveis e até momentos de pura comédia física, mas tudo isso é equilibrado com temas mais profundos como o luto, a herança familiar ou, especialmente, a sensação de estarmos presos a um papel que não é o nosso. O resultado é uma narrativa divertida, mas com coração. Dá para rir e, de vez em quando, pensar um bocadinho também.

Em termos de arte, o desenho de Ozzy mostra que há aqui muito potencial. Nota-se que é uma primeira obra e que o autor ainda está a encontrar o seu estilo, mas há páginas em que o belo desenho salta à vista, revelando-se expressivo, dinâmico e cheio de energia. Há outros casos, todavia, em que se sente que faltou algum polimento, algum cuidado com os desenhos, principalmente nas proporções das personagens e na fluidez da linguagem corporal. 

Acaba por haver um certo desequilíbrio nos desenhos de Ozzy. Quando o autor acerta, acerta mesmo. Algumas vinhetas, especialmente nas cenas de ação, têm uma energia que faz lembrar o cinema, e não é por acaso, já que o livro tem algumas referências cinematográficas e o próprio autor tem experiência em animação. Por outro lado, há que ser justo e reconhecer que muitos dos desenhos presentes neste livro não alcançam esse patamar que o autor demonstra conseguir atingir, o que dá um aspeto um pouco menos profissional ao todo.

Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House
Um outro ponto bastante positivo é, porém, o uso das cores. Os tons de azul dominam e dão à obra uma atmosfera muito própria que me agradou. 

Em termos de edição, o livro apresenta um bom aspeto, com capa dura baça, com detalhes a verniz, e um bom papel baço no miolo. A encadernação e impressão também são de boa qualidade. Contudo, há algumas arestas que ficaram por limar. A edição tem alguns problemas técnicos, sobretudo na disposição dos balões e na organização das vinhetas. Há momentos em que o sentido de leitura se perde um pouco, obrigando o leitor a recuar para perceber o que está a acontecer. Também a balonagem poderia ter sido tratada com mais cuidado, por vezes, o texto parece apertado dentro dos balões ou mal posicionado. Nada que destrua a obra, diria, mas são detalhes importantes que se notam e que condicionam um pouco a boa fruição da leitura. Menos positivo ainda é a existência de uma página em duplicado, por lapso da editora que, entretanto fez uma divertida errata a esse propósito. Dado o tom desbragado da obra até passaria bem, digo eu, mas, claro, é pena, pois põe em causa o intento artístico original de Ozzy.

Apesar disso, Amável – O Pugilista Gentil é uma obra cheia de vida e autenticidade. Num panorama onde a banda desenhada portuguesa tende a ser muito séria ou introspectiva, é ótimo ver surgir algo mais leve, divertido e visualmente ousado, com um cariz meio independente que é bem-vindo. Ozzy arrisca, ri-se de si próprio e do mundo à sua volta, e convida o leitor a fazer o mesmo. E isso é sempre um sinal de maturidade criativa, mesmo em quem está a dar os primeiros passos na banda desenhada.


NOTA FINAL (1/10):
7.2



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Amável, O Pugilista Gentil, de Ozzy - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
Amável, O Pugilista Gentil
Autor: Ozzy
Editora: Iguana
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2025

Gorila Sentado lança nova série de BD!




É com bons olhos que vejo que a editora independente Gorila Sentado se prepara para lançar mais uma nova série de banda desenhada!

Desta vez, traz-nos o trabalho de Sérgio Hortelão em King of Bones.

Olhando para as ilustrações, que me cativaram muito com o seu estilo "cartoonesco" a fazer lembrar, com as devidas distâncias, a série Groo, de Sergio Aragonés, de que sou fã, devo dizer que este parece ser um trabalho muito interessante que espero conhecer tão depressa quanto possível.

O lançamento deverá ocorrer no próximo dia 30 de Outubro.

Por agora, deixo-vos com a sinopse da obra.

King of Bones #1, de Sérgio Hortelão


Depois de ser capturado por um exército invasor decidido a vendê-lo como escravo, o bárbaro Ragnar é lançado num desafio mortal onde apenas um guerreiro se poderá tornar o Rei dos Ossos. 


Brutal, veloz e desenhado com uma simplicidade crua e marcante, King of Bones evoca o espírito de Head Lopper, de Andrew MacLean, num confronto sangrento de espadas e fúria.



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Ficha técnica
King of Bones #1
Autor: Sérgio Hortelão
Editora: Gorila Sentado
Páginas: 32, a cores
Encadernação: Capa mole (formato de revista)
PVP: 7,00€

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Análise: O Homem de Negro

O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio - ASA - Grupo LeYa

O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio - ASA - Grupo LeYa
O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio

Com uma aposta séria nas obras de Grégory Panaccione, que este ano já nos deu três belíssimos livros (Um Oceano de Amor, Alguém Com Quem Falar e este novo livro que hoje vos trago), a ASA editou mais recentemente O Homem de Negro, que conta com argumento de Giovanni Di Gregorio e que foi originalmente lançado no seu mercado de origem em 2024. Há pouco tempo, portanto.

Esta é uma história bastante marcante, que ressoa em nós já depois de finalizarmos a sua leitura e que reafirma a qualidade de Panaccione enquanto autor de banda desenhada. "Cada tiro, cada melro" e, pela terceira vez, estamos perante um emocionante livro que, neste caso, se preocupa em falar-nos do abuso a menores.

A história centra-se na vida do pequeno Mattéo, um rapaz que, aparentemente, tem uma vida absolutamente normal. Tem dois pais que o amam, tem um cão, Tommy, de quem é inseparável, e ainda tem um amigo que o acompanha nas atividades na escola, seja na sala de aula, seja a jogar futebol no recreio. O contexto socio-económico em que está inserido também tem tudo de normal.

Porém, Mattéo é uma criança atormentada e, quando a noite cai e é hora de ir para a cama, tem pesadelos com um homem de negro que o faz urinar na cama e procurar abrigo no quarto dos pais. E o que poderia parecer um "excesso de mimo" ou uma simples incapacidade motora é, na verdade, consequência direta do abuso perpetrado por um(a) adulto(a) que assume essa posição que a nós, adultos, nos repugna, mas que, para as crianças, mais frágeis e inseguras, pode representar um autêntico pesadelo que as impede de prosseguir com a sua vida e saudável crescimento. Um autêntico trauma.

O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio - ASA - Grupo LeYa
E como em todos os traumas, por mais difíceis que possam ser, a atitude certa a fazer é enfrentá-los de frente, com coragem. Assim, também Mattéo percebe que a única forma de se libertar das garras do(a) "homem de negro" é enfrentá-lo(a) de frente. Este confronto não é apenas físico ou literal; trata-se, isso sim, de uma batalha emocional e psicológica que marca a transição do medo à coragem. A narrativa desenvolve-se, pois, de forma a que o leitor acompanhe o crescimento interno do protagonista, tornando a experiência empática e envolvente. É impossível, com o nosso olhar de adultos sãos, não sentirmos pena desta personagem frágil face ao abuso de que é vítima.

Esta é uma história que nos mantém sempre colados à mesma, querendo saber o seu desfecho. Desfecho esse que, devo dizer, naturalmente não será aqui relevado embora fique bastante claro logo a meio da leitura. O que acaba por ser, quanto a mim, uma fraqueza.

O tema central da obra, que é o abuso a crianças por parte de gente adulta, é tratado de forma subtil, mas eficaz. E embora o abuso em questão seja bastante implícito, nunca nos é revelado de forma direta ou gráfica. Isso não invalida que seja, porém, menos chocante ou que o nó na barriga não se nos instale. Esta abordagem subtil permite que o livro seja adequado para leitores mais jovens, enquanto consegue manter, ao mesmo tempo, profundidade suficiente para adultos, mostrando a capacidade dos autores em abordar temas perversos sem um choque visual gratuito.

Tenho lido por essa internet fora muita a gente a dizer que este livro deve ser mantido fora do alcance das crianças. Ora, eu não poderia discordar mais disso. Pelo contrário, considero ser perfeitamente ajustado para crianças. Não digo que seja apenas direcionado a um público infantil, digo que as crianças também o devem ler. É claro que leitores adultos também irão beneficiar da leitura - e se calhar a um nível mais intenso -, mas a forma como a história é construída permite que crianças percebam o caráter errado do abuso e a necessidade de denunciar comportamentos abusivos. E tudo isto devido a esta tal abordagem subtil já mencionada. A narrativa consegue, assim, cumprir uma função educativa e preventiva, sem recorrer a cenas explícitas.

Neste sentido, o livro possui um caráter didático muito relevante. Ensina que qualquer forma de abuso não é normal e deve ser confrontada. Este tipo de mensagem é extremamente pertinente no contexto escolar e familiar, oferecendo aos mais jovens ferramentas cognitivas e emocionais para reconhecer situações de perigo e compreender a importância da denúncia e da proteção pessoal.

Assim, se querem que vos diga, considero que este livro deveria ser comentado e debatido nas escolas portuguesas. Primárias e preparatórias. A forma como aborda o medo, o abuso e o empoderamento pessoal oferece múltiplos pontos de discussão: compreensão de emoções, mecanismos de defesa, confiança em adultos de referência e a importância de enfrentar situações adversas. Um debate estruturado pode, portanto, potenciar ainda mais o valor educativo deste livro. 

O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio - ASA - Grupo LeYa
O trabalho de Panaccione em O Homem de Negro é absolutamente soberbo. A sua arte consegue equilibrar, com uma mestria rara, uma estética bela e delicada, empática ao universo infantil que envolve a vida de Mattéo, com momentos de grande densidade emocional e tensão visual. As cores garridas e o traço rápido e nervoso do autor conferem ao quotidiano do protagonista uma aura de inocência e serenidade, que contrasta de forma magistral com a opressão das cenas em que surge o(a) famigerado(a) "homem de negro". Nesses momentos, o artista não recorre a qualquer excesso gráfico; o horror é sugerido, nunca mostrado, mas sente-se de forma plena através da extraordinária expressividade das personagens, em especial de Mattéo, cujo olhar e postura denunciam medo, impotência e, mais tarde, coragem.

A planificação de Panaccione também é igualmente notável. As ilustrações de dupla página amplificam o dramatismo das cenas mais intensas, criando pausas visuais que mergulham o leitor na dimensão emocional do protagonista. Não é um livro fácil de ilustrar, parece-me, pois exige o domínio do tom e da sugestão, mas o autor supera as dificuldades com nota máxima, demonstrando um controlo absoluto da narrativa visual. E tudo começa, desde logo, com a capa, uma peça gráfica de enorme impacto: elegante no uso do espaço negativo, visualmente harmoniosa e, ao mesmo tempo, cheia de simbolismo, pois antecipa o tom da obra.

Um ponto que talvez pudesse ter sido mais bem orquestrado é, conforme já referi, o desfecho da história do livro que é perceptível bastante cedo, o que diminui o impacto do suspense. É um daqueles casos em que o plot twist so o é para quem estivesse muito distraído mesmo. Talvez os autores pudessem ter explorado este final de forma mais inesperada, reforçando o efeito psicológico da história sobre o leitor. 

Outro ponto menos bom é que o final é demasiadamente explicativo. Os adultos percebem facilmente o que ocorreu com Mattéo sem necessidade de tantos detalhes em voz off. Julgo que isso até acaba por quebrar a emoção que passa para o leitor. As explicações extensas são, portanto, mais direcionadas a leitores infantis, para que compreendam a história sem ambiguidades, o que reforça a minha ideia de que o livro (também) é adequado para públicos infantis. Que tenham uma maturidade mínima e uma idade a partir dos 9/10 anos, claro. 

Seja como for, não são estas duas questões que impedem este livro de ser mais uma excelente aposta por parte da ASA. Fica, quanto a mim, alguns furos abaixo das outras duas obras do autor por cá editadas até à data, mas continua a ser um livro que recomendo fortemente.

Em termos de edição, e contrariamente a Um Oceano de Amor e Alguém Com Quem Falar, este O Homem de Negro apresenta capa dura. No miolo, o livro tem papel brilhante, de boa qualidade, e uma boa impressão e encadernação.

Em suma, estamos perante uma obra que consegue abordar temas complexos como o abuso e o medo de forma sensível e educativa. A narrativa é suficientemente subtil para crianças, mas suficientemente profunda para adultos, sendo muito mais do que uma história sobre medos infantis ou pesadelos recorrentes: é uma metáfora poderosa sobre o trauma e o silêncio, transformando o terror íntimo de Mattéo num espelho do sofrimento de muitas crianças que vivem situações de abuso e não sabem como pedir ajuda. Assim, esta obra é, sobretudo, um grito por ajuda dirigido à sociedade, lembrando-nos da urgência de reconhecer, ouvir e proteger as vozes mais frágeis.


NOTA FINAL (1/10):
9.2

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Homem de Negro, de Panaccione e Di Gregorio - ASA - Grupo LeYa

Ficha técnica
O Homem de Negro
Autores: Panaccione e Di Gregorio
Editora: ASA
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 205 mm
Lançamento: Setembro de 2025



Vem aí a maior BD coletiva jamais produzida em Portugal!



Trata-se de um projeto único em Portugal, que ocorreu entre os anos 2008 e 2015, e que se prepara agora para ser editado num livro que reúne a participação de 56 autores!

Falo-vos de Cadáver Esquisito!, projeto que foi originalmente lançado como webcomic e que foi coordenado pelo autor Daniel Maia que, agora, através da sua editora independente Arga Warga, assume a publicação desta compilação em formato físico.

É um projeto muito original que conheço parcamente, mas que me parece muito interessante e que, quiçá, poderia ser renovado, pois acho este conceito de ter vários autores a criarem pequenas partes para um todo conjunto algo muito envolvente e atrativo.

O livro terá lançamento no Amadora BD, no dia 25 de Outubro, às 18h.

Mais abaixo, deixo-vos com a nota de imprensa da editora.


Cadáver Esquisito!, de Vários Autores

Chegou a mais insólita edição do ano – Cadáver Esquisito!, que compila o webcomic criado entre 2008-2015 e se destaca como a maior banda desenhada colectiva jamais produzida em Portugal. 

A iniciativa desafiou os talentos portugueses a explorar o sistema cadavre exquis e criar uma prancha de banda desenhada para edição online, tornando-se assim um dos primeiros webcomics serializados do país. Traduzido do latim como cadáver excelente ou esquisito, este sistema centenário consiste em produção cooperativa encadeada, em que cada interveniente usa o trabalho anterior como mote da sua criação. O método foi originalmente concebido em 1925, pelo pintor surrealista André Breton, para provocar a livre associação de ideias e de imagens fora do contexto habitual, e é usado na BD portuguesa desde os anos 80, sendo também designado de comic jam.


Cadáver Esquisito! pertence ao selecto grupo de iniciativas similares realizadas pelo mundo fora, ocupando possivelmente o 4º lugar entre estas, atrás da iniciativa no Festival de BD de Lyon (2016), o evento Big Nate na Rockefeller Plaza (2014), e The Worm dirigido por Alan Moore (1991).

Em Cadáver Esquisito!, além do desafio inerente a cada intervenção, o projecto foi concebido para manter a coerência da intriga, sendo constituído por 52 páginas por 56 autores. À BD original junta-se ‘A Vingança do Cadáver’, uma narrativa complementar que serve de epílogo da história, assim se totalizando 58 páginas.

Um incidente num hotel precipita situações insólitas que revelam uma intriga: uma trindade de Papas faz testes à inovadora tecnologia U.M.D. (Unidade Molecular Destemporizadora) criada pelo Prof. Octávio, que suspende o espaço-tempo numa área limitada. Podem os operacionais Evelina e Carlão, com os andróides Bernardo e Taz-33, mais o Eng. Ivanildo, sabotar a profana experiência e evitar o assassinato do presidente da CorpAuto, presente em seminário no hotel? E pode esta trupe sobreviver à chegada do Anjo da Morte!?

O livro foi apresentado no 20º Festival Internacional de BD de Beja, na Casa da Cultura de Beja, estando ali patente com exposição.

A iniciativa reuniu autores experientes e futuros profissionais da área, bem como muitos ilustres desconhecidos que igualmente aceitaram a missão: André Caetano (Volta), Bruno de Lara, Bruno Patrício, Carla Rodrigues (Portugal 2055), Daniel Ferreira, Daniel Henriques (The Curse of Sherlee Johnson), Daniel Maia (Apparition Metempsychosis), Dário Mendes, David Henrique, Diogo Campos (Pássaro), Diogo Carvalho (Sol), Eduardo Martins, Eduardo Monteiro, Fernando ‘Phermad’ Madeira (Terminal), Filipe Coelho, Filipe ‘Fil’ Lopes (II Raide Macau-Lisboa), Gustavo Carreira, Heguinil Mendes, Hélder Rodrigo, Henryk Valadas, Hugo Gomes, Hugo Jesus (Sonho sem Fim), Hugo Teixeira (Pássaro), João Mendonça (Joaninha dos Olhos Verdes), João Miguel Silva, João Neto, João Pedro Rosa, João Pereira, Kati Zambito (Punch Line), Luís ‘LLL’ Lourenço, Luís Guerreiro (Besteiros de Serpa), Manuel Mateus, Marcos Freitas, Maria João Careto (Há um Eléctrico que Espera por Mim), Maria Veiga, Miguel Félix, Miguel Mendonça (Batman), Nuno Frias, Nuno Lourenço Rodrigues (Square World), Nuno Ribeiro Silva, Nuno Sarabando, Pedro Amorim, Pedro Carmo, Pedro Nascimento (Tales from Nevermore), Pedro Silva, Roberto Macedo Alves (Teatro: Lugar de (Entre)Mundos), Rogério Lucas, Rúben Sousa, Rui Alex (Rafael Bordalo Pinheiro: Uma Vida em Desenhos), Rui Ramos, Silvestre ‘Véte’ Francisco (Haverá um Amanhã?), Sónia Oliveira (O Poema Morre), Susana Resende (Aurora Boreal em Reflexos Partilhados), Thomas Nash (Émenor), Xico Santos (Em Redes) e Zé Burnay (Andrómeda).

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Ficha técnica
Cadáver Esquisito!
Editora: Arga Warga Edições
Edição e Coordenação do projeto: Daniel Maia
Ilustradores: André Caetano, Bruno Lara, Bruno Patrício, Carla Rodrigues, Daniel Ferreira, Daniel Henriques, Daniel Maia, Dário Mendes, David Henrique, Diogo Carvalho, Eduardo Martins, Eduardo Monteiro, Fernando ‘Phermad’ Madeira, Filipe Coelho, Filipe ‘Fil’ Lopes, Heguinil Mendes, Hélder Rodrigo, ‘Henryk’ Valadas, Hugo Gomes, Hugo Teixeira, João Mendonça, João Miguel Silva, João Neto, João Pereira, Kati Zambito, Luís Guerreiro, Luís ‘LLL’ Lourenço, Manuel Mateus, Marcos Freitas, Maria Veiga, Maria João Careto, Miguel Félix, Miguel Mendonça, Nuno Frias, Nuno Lourenço Rodrigues, Nuno Ribeiro Silva, Nuno ‘Nams’ Sarabando, Pedro Amorim, Pedro Carmo, Pedro Nascimento, Pedro Silva, Roberto Macedo Alves, Rogério Lucas, Rúben Sousa, Rui Alex, Rui Ramos, Silvestre ‘Véte’ Francisco, Sónia Oliveira, Susana Resende, Thomas Nash, Xico Santos e Zé Burnay
Argumentistas: Diogo Campos, Gustavo Carreira, Hugo Jesus e João Pedro Rosa
Ilustração de Capa/Contracapa e Grafismo: Daniel Maia
Paginação: Susana Resende
Páginas: 64, a preto e branco
PVP: 10€


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Entrevista a Vasco Colombo: "Em Portugal não sabemos vender muito bem as coisas. E isso é transversal: seja a nível editorial, seja a nível da moda, seja a nível industrial, seja a nível de tudo."



Hoje trago-vos uma entrevista que tive a oportunidade e privilégio de fazer ao autor português Vasco Colombo, a propósito do seu recente livro O Cabo de 2.102.400 Km que está inserido na coleção 25 Imagens que a Levoir editou nos últimos meses com o jornal Público.

Posso dizer-vos que gostei muito de conversar com Vasco Colombo, alguém que se revelou muito generoso, acessível e simpático, bem como gostei da sua visão muito própria de olhar para o universo da banda desenhada.

Como tal, convido-vos, sem mais demoras, a mergulharem nesta interessante entrevista.

Análise: O Meu Amigo Kim Jong-Un

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
O Meu Amigo Kim Jong-Un, de Keum Suk Gendry-Kim

A Iguana editou há algumas semanas o mais recente trabalho da autora coreana Keum Suk Gendry-Kim, intitulado O Meu Amigo Kim Jong-Un, que se apresenta como uma incursão documental e gráfica sobre a figura controversa do líder norte-coreano Kim Jong-Un. A autora - cujas obras Erva, A Espera, A Árvore Despida, e Alexandra Kim, Filha da Sibéria já por cá foram editadas (e aqui analisadas) - volta a explorar as feridas da península coreana, mas agora com um enfoque mais direto na biografia e no simbolismo político de Kim Jong-Un. 

O ponto de partida é ambicioso: compreender que tipo de homem se esconde por detrás do ditador, e, através dessa compreensão, lançar uma reflexão mais ampla sobre o poder, a manipulação e o destino dividido das Coreias. Algo que, de um ponto de vista diferente, embora igualmente interessante, também podemos analisar na obra O Ditador e o Dragão de Musgo, de Fabien Tillon e Fréwé, editado recentemente pela ASA. 

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
A narrativa deste O Meu Amigo Kim Jong-Un combina entrevistas, testemunhos e reflexões pessoais da autora, num formato que oscila entre o jornalismo gráfico e a memória subjetiva de algumas personalidades com que a autora se cruzou. Keum Suk Gendry-Kim entrevistou figuras muito distintas, desde jornalistas e amigos de infância de Kim Jong-Un, até desertores e o próprio ex-presidente sul-coreano Moon Jae-In. Essa variedade de vozes confere amplitude ao relato, permitindo perceber as múltiplas camadas que compõem a perceção do regime norte-coreano e de uma forma que procura não ser demasiadamente panfletária, mostrando - ou tentando mostrar - os dois lados da questão. 

No entanto, essa multiplicidade narrativa também é a origem de uma das maiores fragilidades do livro: a ausência de um fio narrativo unificador. De facto, O Meu Amigo Kim Jong-Un dá frequentemente a sensação de ser um livro de fragmentos. Cada capítulo apresenta um tema ou testemunho interessante, mas a ligação entre eles é, por vezes, ténue ou mesmo inexistente. A autora opta por uma estrutura quase episódica, que resulta numa leitura desigual: ora fascinante, ora dispersa. Por exemplo, a incrível história de Pepino, a criança levada clandestinamente para a Colômbia na mochila de um soldado - que, quanto a mim, merecia, por si só, um livro sobre o assunto - é um dos momentos mais cativantes da obra, carregado de emoção e simbolismo. Contudo, surge e desaparece sem grande continuidade, meio perdido neste livro fragmentado.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Em contraste, a longa entrevista com Moon Jae-In quebra o ritmo e o interesse narrativo. A conversa, ainda que politicamente relevante, é apresentada de forma excessivamente literal e sem a densidade emocional que caracteriza os melhores trabalhos de Keum Suk Gendry-Kim. Falta-lhe dinamismo e a leitura torna-se, em certos momentos, monótona, parecendo mais próxima de uma transcrição jornalística do que de uma obra literária ou artística. Esse contraste entre capítulos vibrantes e outros mais áridos reforça a sensação de irregularidade nesta obra.

Além disso, a autora introduz também reflexões sobre a sua própria vida conjugal e a experiência de viver entre a Coreia e a Europa. E embora estas passagens tragam alguma humanidade e proximidade ao relato, acabam por parecer algo forçadas, levando, novamente, a uma quebra com o foco principal da obra. O leitor é constantemente deslocado entre o retrato do ditador, as recordações pessoais e as entrevistas, sem que exista uma linha emocional ou conceptual forte que una tudo.

Outro aspeto que distingue O Meu Amigo Kim Jong-Un das obras anteriores da autora é a sua componente visual. Mas, neste caso, pelas melhores razões. Aqui, Keum Suk Gendry-Kim revela um domínio gráfico mais leve e equilibrado. O uso da cor é uma clara evolução face ao negro dominante e pesado das já supramencionadas obras da autora editadas previamente em Portugal. Neste caso, as páginas respiram melhor, as figuras ganham expressividade e a leitura torna-se visualmente mais acessível. É um livro mais luminoso, mesmo tratando temas sombrios, o que demonstra um amadurecimento estético evidente da autora.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Visualmente, portanto, este é talvez o trabalho mais apelativo da autora. A cor é usada não apenas como elemento decorativo, mas também como ferramenta narrativa: distingue tempos, espaços e emoções com subtileza. As composições de página são mais abertas, o traço mais livre e a disposição gráfica convida o leitor a permanecer em cada vinheta. Continua fiel àquilo que já conhecemos da autora, claro, mas aqui o desenho ganha mais protagonismo, tornando-se a principal força de coesão num livro que, narrativamente, e conforme já referi, nem sempre encontra o seu equilíbrio.

Mas, claro, apesar das fragilidades narrativas, o livro mantém o valor de ser um testemunho gráfico de um tema de relevância mundial. A tentativa de compreender Kim Jong-Un não através do sensacionalismo, mas de uma abordagem humana e contextual, é louvável. Keum Suk Gendry-Kim não procura justificar o ditador, mas entender as condições que o moldaram, e, ao fazê-lo, recorda-nos que a história da Coreia continua a ser uma história de feridas abertas e de divisões que persistem no imaginário coletivo.

A edição da Iguana é, tal como em Erva ou A Espera, em capa mole, brilhante, com badanas. No interior, encontramos bom papel baço e uma boa impressão e encadernação. A edição inclui ainda um posfácio da autora.

Em suma, O Meu Amigo Kim Jong-Un é uma obra ambiciosa, visualmente refinada, mas narrativamente irregular. Falta-lhe a coesão e o impacto emocional de outras obras da autora. Ainda assim, é um livro importante dentro da trajetória de Keum Suk Gendry-Kim. É uma leitura que, mais do que esclarecer quem é Kim Jong-Un, nos confronta com as complexidades da Coreia contemporânea e com o desafio permanente de compreender o outro lado. E, no fim, o que permanece é a “mensagem de urgência pela paz” que a autora explicitamente reivindica.


NOTA FINAL (1/10):
6.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
O Meu Amigo Kim Jong-un
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana
Páginas: 288, a cores
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2025

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Análise: Impenetrável

Impenetrável, de Alix Garin - ASA

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Impenetrável, de Alix Garin

Foi no passado mês de Setembro que a editora ASA nos fez chegar a segunda obra da autora belga Alix Garin, de quem a mesma editora já por cá tinha editado o belíssimo Não Me Esqueças, que acabou mesmo por vencer o VINHETA D'OURO para a categoria de Melhor Álbum Estrangeiro em 2023.

Eram, portanto, muitas as minhas expectativas para este segundo trabalho da autora, intitulado Impenetrável. Estive recentemente no Museu da Banda Desenhada em Bruxelas, o que me deu a oportunidade de conhecer um pouco mais a fundo a feitura deste trabalho de grande fôlego da autora, que conta com mais de 300 páginas.

E é nessas três centenas de páginas que mergulhamos numa obra profundamente pessoal e autobiográfica, na qual Alix Garin relata, sem filtros, a sua experiência pessoal com o vaginismo que a afetou durante dois anos. Para quem não sabe - e acredito que hoje em dia ainda seja muita gente - o vaginismo é uma disfunção sexual que, devido a causar dores insuportáveis, impede que as mulheres consigam tolerar a penetração. A narrativa centra-se, pois, na reconquista do seu corpo e do seu desejo, por parte de Alix Garin, e mostra como a dor física se pode transformar em sofrimento emocional e psicológico. Imagino que seja um tema muito complexo e frustrante para, em primeiríssima instância, as mulheres, claro, mas também para os seus parceiros sexuais, já que um problema do foro sexual é sempre algo que afeta não uma, mas - pelo menos - duas pessoas. A autora conduz-nos por uma viagem íntima, na qual cada passo da sua recuperação é permeado por vulnerabilidade, coragem e reflexão sobre normas sociais, expectativas e relações afetivas.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Afirmo que a auto-biografia íntima e sexual em banda desenhada parece ser uma tendência mais frequente no meio, pois recordo que ainda ontem vos falei sobre Extases, de JeanLouis Tripp, onde, relembro, nos é mostrada, através de um relato autobiográfico, a forma como o autor viveu/vive a sua vida sexual.

Agora, eis-nos novamente perante uma nova autobiografia em banda desenhada onde somos convidados a conhecer a vida sexual de Alix Garin.

Vida sexual essa que, como podem imaginar, praticamente não existiu durante um longo período de três anos já que, embora Alix tivesse um namorado, Lucas, a sua vida sexual estava congelada, em stand by, devido a esta disfunção denominada vaginismo. Embora, à época, a autora nem tivesse um nome, uma palavra, para aquilo do qual padecia.

Obviamente, a dificuldade de manter relações sexuais provocou-lhe frustração, culpa e isolamento, o que também expõe facilmente o peso que a sociedade atribui à sexualidade feminina e à necessidade de corresponder a certos padrões. Bem, diria que neste barco, as mulheres não estão sós. Embora de forma diferente, também a sexualidade masculina está carregada de expectativas e de uma necessidade de acompanhar os padrões ditos "sãos" e "normais". 

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Este percurso de descoberta e recuperação de Alix Garin não é linear, mas é narrado com uma honestidade desarmante que cria empatia imediata no leitor. Pelo menos na primeira parte da obra.

Isto porque, mais ao menos a meio do livro, o vaginismo dá lugar à necessidade de Alix se libertar de certas amarras que a prendiam à relação com Lucas. Deste modo, o livro também explora o lado mais amplo das relações humanas e do desejo, não se limitando ao distúrbio físico, mas questionando também como nos relacionamos com o outro, com o amor e com nós próprios. A autora apresenta a tensão entre dependência emocional e autonomia, mostrando que a cura não passa apenas pelo corpo, mas também pelo entendimento e aceitação de limites, desejos e expectativas.

Alix Garin expõe-se de forma arrojada, oferecendo um relato detalhado da sua vida íntima e da forma como o vaginismo tornou a sua intimidade sexual impossível. A dor física, aliada ao peso da culpa e das expectativas sociais, criou em si uma sensação de impotência e frustração que é explorada neste Impenetrável de maneira sensível e crua. 

O tema do vaginismo é especialmente relevante e bem-vindo, diria, pois é pouco discutido, ainda mais em banda desenhada. Impenetrável é bem capaz de ser, salvo erro, a primeira obra de grande fôlego de banda desenhada a abordar o tema, tornando visível um distúrbio que afeta muitas mulheres e sobre o qual há pouco conhecimento público e, também, contribuindo para a desmistificação do assunto, ao mesmo tempo que procura oferecer um recurso valioso para quem procura compreensão ou identificação com o tema.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Até porque, e isso é outra das conclusões que podemos aferir aquando da leitura da obra, o livro revela como, em termos médico-clínicos, muitas vezes a própria classe profissional não está preparada para lidar com distúrbios pouco comentados, como disso é exemplo o vaginismo. Talvez por isso se tenha tornado tão difícil a Alix Garin ter encontrado uma voz profissional que a pudesse ajudar e guiar para uma crua tão eficiente quanto possível face a este distúrbio. Mesmo assim, convenhamos que com ou sem apoio externo, o caminho de autodescoberta e autoajuda é sempre essencial. 

Narrativamente, a obra é rica e complexa. Alix Garin consegue equilibrar momentos de introspeção, humor e conflito emocional, mantendo o leitor atento à evolução da história. É um daqueles livros que, embora tenha 300 páginas, se lê muito depressa, pois queremos saber aonde nos leva o percurso da autora. 

A transição do tema do vaginismo para questões mais amplas sobre relações abertas e autonomia emocional mostra que a narrativa não se limita a um distúrbio, mas expandindo-se além do tema central para refletir sobre escolhas amorosas e crescimento pessoal. E isso leva-me àquele que considero ser o ponto menos positivo na obra: é que o tema do vaginismo, embora central, não recebe, quanto a mim, um fecho narrativo muito concreto. De repente, parece que está tudo bem e que a autora ultrapassou o problema, mas essa revelação é-nos dada com pouco critério, parecendo que a recuperação física e emocional da autora funciona mais como catalisador para mudanças na forma de se relacionar com Lucas. Ainda assim, reconheço, este desfecho também pode ser visto como uma conclusão catártica do ciclo pessoal da autora, oferecendo uma sensação de esperança e continuidade, mesmo que não resolva tudo de forma explícita.

Impenetrável, de Alix Garin - ASA
Visualmente, Alix Garin evolui bastante em relação ao seu trabalho anterior, Não Me Esqueças. É verdade que o seu traço se mantém simples, rápido e empático, em linha com o livro anterior, mas ganha bastante mais dinamismo e expressividade. A planificação das pranchas, a ilustração dos estados de espírito da protagonista e as magníficas páginas duplas tornam a leitura mais envolvente e intensa, revelando uma autora mais madura e com mais opções gráfico-narrativas. Os seus desenhos expressivos e apelativos contribuem para transmitir a experiência emocional e física da autora de forma impactante.

Sou, portanto, muito apreciador dos belos desenhos da autora, que geram facilmente empatia com os leitores e que são extremamente expressivos, modernos e carregados de um estilo muito próprio. O tal "signature style", de que tanto falo. Nota ainda para o belo trabalho de cores que, sendo diversas, nuns casos, através de páginas muito coloridas e garridas e, noutras situações, com fundo preto e traço a branco, funcionam sempre muito bem, tornando o livro ainda mais apelativo do ponto de vista gráfico.

A edição da ASA é em capa mole brilhante, com badanas, à semelhança do que fora feito em Não Me Esqueças. No miolo, o papel é baço e de boa qualidade, tal como de boa qualidade também é a encadernação e a impressão da obra.

No seu conjunto, Impenetrável é uma obra corajosa, sensível e visualmente impressionante, afirmando-se como (mais) uma bela aposta da editora ASA, que parece acertar em quase tudo o que ultimamente tem editado. Alix Garin consolida-se neste livro como uma autora de banda desenhada de enorme potencial, mostrando maturidade artística e narrativa. Apesar de alguns pontos em aberto, o livro é um testemunho poderoso, especial e belo, que combina experiência pessoal, reflexão social e qualidade visual, tornando-se, sem dúvida, um dos destaques do ano e um título essencial para quem se interessa por histórias de superação, sexualidade e relações humanas. Recomenda-se!


NOTA FINAL (1/10):
9.5


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Impenetrável, de Alix Garin - ASA

Ficha técnica
Impenetrável
Autora: Alix Garin
Editora: ASA
Páginas: 304, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 202 x 269 mm
Lançamento: Setembro de 2025

Análise: Wendigo

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Wendigo, de Nunsky

Depois do fantástico Companheiros da Penumbra, uma das minhas bandas desenhadas portuguesas preferidas dos últimos anos, eis que Nunsky, o autor, regressou recentemente ao lançamento de nova banda desenhada.

Desta vez, decidiu adaptar para BD o conto clássico The Wendigo, da autoria de Algernon Blackwood, publicado originalmente há bem mais do que 100 anos, em 1910, no volume The Lost Valley and Other Stories

A narrativa desta curta história situa-se nas remotas florestas do norte do Ontário, no Canadá, num cenário severo, gelado e solitário, onde a natureza é selvagem e indiferente à presença do Homem e em que o sobrenatural vai(?), pouco a pouco, erodindo a sanidade das personagens que aí procuram fazer uma expedição para caça aos alces.

Os protagonistas são Simpson, um jovem estudante de teologia, o seu tio, o Dr. Cathcart, chefe da expedição, os guias Hank Davis e Joseph Défago e o cozinheiro índio, Punk, que permanece no acampamento principal enquanto os restantes quatro homens se dividem para prosseguir a caça ao alce.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
O ambiente é taciturno, sombrio e os silêncios são entrecortados pelo barulho de alguns animais não tão distantes assim, o que convida ao medo e à insegurança, especialmente do protagonista Simpson. A viagem torna-se, pois, cada vez mais inquietante, quando os quatro homens se separam em dois grupos: Simpson e Défago por um lado, e Hank Davis e o Dr. Cathcart por outro.

A escuridão que persegue os homens é meio convite andado para que eles se percam, claro. E a meio duma noite, assombrado pelas sensações de algo estranho, como odores e estranhos sons no vento, bem como vislumbres ou pressentimentos, Défago levanta-se e sai da tenda onde dormia para tentar confrontar esses chamamentos que parece estar a receber. Uma abordagem clássica de conto de horror, diria. Mas importa dizer também que todas estas coisas estranhas, pródigas em histórias de terror, são-nos dadas de um modo pouco definido e nunca totalmente explicado. São apenas meras sugestões. O que aumenta o clima de suspense que impregna toda a história e que me agradou especialmente.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Défago acaba por desaparecer misteriosamente durante algum tempo, o que leva ao aumento da sensação de sufoco vivida pelo protagonista. Contudo, é quando Défago regressa que as coisas ficam ainda mais estranhas, já que o homem parece estar mentalmente abalado, quase sem memória e profundamente modificado (física e psicologicamente) pelo que viu ou experienciou. Terá encontrado a criatura de Wendigo ou não passará isso de uma mera "história da carochinha"? Um mito sem fundamento? Mais não digo, para não estragar surpresas a eventuais interessados que se iniciem na leitura da obra depois de lerem o meu texto.

Mas posso reforçar que aquilo que mais aprecio nesta obra é que a mesma funcione mais em em torno da atmosfera do que duma história mais do foro da fantasia. Acaba por ser mais madura e ter mais capacidade de "aterrorizar" o leitor - pelo menos, na minha opinião - esta forma de deixar o temor por algo a pairar no ar, atrasando ou anulando tudo o que é explícito. É um horror “sussurrado” que perturba mais pela sugestão do que pelo visível.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Através de uma adaptação com uma centena de páginas, Nunsky consegue captar muito bem essa ideia de terror ambiental e sugerido da obra original, o que será um dos maiores feitos desta obra. Era fácil adaptar esta obra em, por exemplo, 40 páginas de banda desenhada. Menos de metade da proposta de Nunsky. Mas não tenho dúvidas que os sentimentos experenciados pelo leitor dessa opção não seriam tão impactantes como nesta boa solução de Nunsky que, utilizando todas estas páginas, permite que ação seja pausada e que o clime de insegurança sentido pelas personagens e pelo leitor, aumentem uma boa leitura envolvente.

De resto, e no que respeita à fidelidade ao conto original, Nunsky respeita muito bem as principais linhas de Blackwood, tais como o cenário remoto, a natureza como protagonista indireta, a relevância das personagens dos guias, o progresso gradual do horror, a ambiguidade do sobrenatural. Acaba por ser uma tradução visual da narrativa, sem a transformar ou reinterpretar de modo radical, deixando que o leitor conheça a história de Blackwood através de imagens e ritmo gráfico, mas mantendo o mesmo tom sombrio e introspectivo.

Visualmente, o preto e branco utilizado por Nunsky volta a ser um dos pontos mais fortes da obra. O uso de contrastes fortes, sombras densas, silhuetas, neve, árvores, penumbra, e o ambiente gelado da floresta são bem captados pelo seu virtuoso traço. A ambientação visual dos seus desenhos reforça deste modo o suspense, a estranheza e a sensação de que algo está além do visível. O estilo de Nunsky continua a mostrar uma grande maturidade visual e uma dosagem certa entre detalhe e economia gráfica.

Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne
Se me posso queixar de algo nesta bela adaptação foi que, como é uma história muito sombria, os desenhos também são logicamente escuros e isso leva a que pareça que toda a ação se desenrola de noite quando, na verdade, isso não acontece, já que a passagem do dia para a noite tem relevância do ponto de vista narrativo. Talvez o autor devesse ter conseguido, através da luminosidade das cenas, ter trabalhado melhor esta questão que, mesmo assim, não é algo que possamos considerar como gritante.

E seja como for, Wendigo, como obra gráfica, é mais um exemplo do bom trabalho que Nunsky tem feito. Neste caso em concreto, não só nos oferece o seu domínio da ilustração em banda desenhada, como tem o mérito de nos trazer uma obra clássica com qualidade estética e literária para o público português. 

A edição da Chili com Carne é cuidada e bonita, tendo o livro capa mole, em estilo flexicover, o que dá um certo requinte à edição. No interior, o livro apresenta bom papel baço e uma boa encadernação e impressão.

Sendo o trabalho do Nunsky de tanta qualidade, a única coisa que lamento é que a distribuição dos seus livros seja curta em qualidade e quantidade, tornando as suas obras difíceis de encontrar e apenas disponíveis para uma pequena franja de público que poderia ser bem maior... caso o livro chegasse a mais pessoas, claro está. 

Em suma, Wendigo de Nunsky é uma adaptação sólida e fiel do clássico de Blackwood, que consegue transpor a tensão e o suspense da narrativa original para a linguagem da banda desenhada sem perder a sua essência. O traço a preto e branco é cuidado, apelativo e eficaz na criação da atmosfera, reforçando o horror psicológico e o isolamento da floresta canadiana, confirmando o autor português como um criador consistente e confiável no panorama da BD portuguesa, merecendo sem dúvida maior visibilidade.


NOTA FINAL (1/10):
8.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Wendigo, de Nunsky - Chili com Carne

Ficha técnica
Wendigo
Autor: Nunsky
Editora: Chili com Carne
Páginas: 104, a preto e branco
Encadernação: Capa mole (flexicover)
Formato: 16,5 x 23 cm
Lançamento: Maio de 2025