Uau! À terceira foi mesmo de vez! Depois de ter lido dois livros da autora Keum Suk Gendry-Kim, nomeadamente A Árvore Despida e A Espera que, mesmo deixando bons apontamentos, não me conseguiram deixar totalmente rendido, tal feito foi verdadeiramente alcançado por este Erva! Eis um livro fantástico e assustadoramente pesado que marca qualquer leitor civilizado e que é, sem qualquer margem para dúvidas, o melhor livro da autora publicado em Portugal!
Se aqueles que me leem já tinham curiosidade em conhecer a autora, mas ainda não o tinham feito, não pensem duas vezes: é por este Erva que deverão começar a conhecer o trabalho da coreana Keum Suk Gendry-Kim!
Recentemente publicado pela editora Iguana (que também já havia publicado o A Espera), Erva é uma magnífica obra que aborda de maneira profunda e comovente o tema das "mulheres de conforto" durante a Segunda Guerra Mundial. Para quem não sabe, estas "mulheres de conforto" tinham o propósito de servir como escravas sexuais para o exército japonês. Nem estamos aqui a falar de mulheres a serem obrigadas a prostituir-se... não, é algo ainda mais grave e hediondo do que isso. Estas mulheres nem sequer eram prostitutas, pois não tinham rendimentos monetários com aquilo que faziam. "Escravas sexuais" será, portanto, o melhor termo a utilizar como sinónimo de "mulher de conforto". E muitas destas mulheres eram coreanas, como é o caso de Ok-Sun Lee, em quem se baseia esta história biográfica.
E que história de vida a de Ok-Sun Lee! Se fosse uma história de ficção, se calhar diríamos: "Ui... que exagero de drama". Porém, tratando-se de uma história verídica, é chocante e lamentável que nos apercebamos com este Erva como certas vidas são um verdadeiro suplício.
Quando ainda era criança, o único desejo de Ok-Sun Lee era poder frequentar uma escola. Mas sendo menina e, ainda por cima, a filha do meio, tal desejo não era sequer tido em conta pelos seus pais. A escola era para os irmãos - rapazes! - mais velhos e cabia a Ok-Sun Lee as tarefas domésticas e o apoio aos irmãos mais novos. Mesmo assim, as condições de pobreza eram muitas e a família decidiu vender (!) Ok-Sun Lee a uma outra família.
Mas a sua nova vida junto de outra família estava apenas a preparar-se para ficar ainda pior. Esta nova família acabou por fazer uso de Ok-Sun Lee, levando-a para a China. Aí, e ainda em tenra idade, sem ter sequer tido a primeira menstruação, Ok-Sun Lee acaba numa casa de "mulheres de conforto", com o objetivo de atender aos desejos dos solados japoneses. Daí até à primeira abordagem sexual, que não é mais do que uma violação, a vida de Ok-Sun Lee transforma-se num filme de terror. Mas um terror vívido e mundano, com que tem que conviver diariamente. O terror que deixar marcas em toda uma vida.
Todavia, por muitas vezes que a vida pisasse Ok-Sun Lee, esta parecia que, qual erva daninha - e daí o título da obra Erva - conseguia sempre reerguer-se e continuar, da melhor forma possível, a sua jornada de sobrevivência e resiliência.
Como o relato dos acontecimentos é interrompido por breves momentos, no tempo presente, em que a autora Keum Suk Gendry-Kim conheceu pessoalmente Ok-Sun Lee, fica claro que há uma tentativa de expor os crimes e traumas do passado e a forma como os mesmos continuam a influenciar a vida das sobreviventes. A memória é, pois, um tema central, mostrando como a recordação dos eventos traumáticos pode ser tanto dolorosa quanto necessária para a cura.
Este é um belo livro que, ancorado a um período histórico e sombrio - de que se fala menos vezes do que o necessário - é crucial para que compreendamos as relações entre a Coreia e o Japão, por um lado, e permite, por outro, dar voz a tantas essas mulheres que foram instrumentalizadas como "mulheres de conforto" e que acabaram por ser silenciadas pela vergonha e pelo trauma.
Não só o relato é marcante e a vida da protagonista nos deixa "colados" a cada uma das quase 500 páginas que compõem este livro, como a própria representação gráfica da história parece especialmente inspirada. Não é que o estilo da autora mude face àquilo que já pudemos ver noutros livros, mas senti que, em Erva, a autora foi mais certeira na representação dos momentos mais intensos do que noutras obras. Mesmo assim, e claro está, o estilo de traço simples, com ilustrações a preto e branco, que representam as personagens de forma "abonecada", mantém-se. Depois, há outros bons momentos onde a autora nos oferece alguns desenhos mais impactantes e belos. Nem sempre isso acontece, mas quando, à medida que avançamos na leitura, somos presenteados com esses desenhos mais detalhados, a experiência é mais gratificante.
Assim sendo, mantenho, mais uma vez, o que escrevi sobre os desenhos da autora a propósito dos outros dois livros já aqui analisados: "São desenhos inspirados, com uma aura expressionista, onde delicados e belíssimos cenários nos são dados. O que, sendo algo bom, causa um certo desequilíbrio ao todo, tenho que admitir. É verdade que muitas expressões faciais parecem “cartoonizadas” de uma forma quase infantil e apresentam um traço algo arcaico, mas noutros casos, o desenho apresenta uma qualidade ao nível da pintura, tal não é a beleza estética do mesmo! Fico com a ideia de que a autora desenha normalmente de forma rápida e direta e que, noutros casos, despende mais tempo e devoção, dando-nos ilustrações lindas (…) E são esses os melhores momentos da obra, em termos de ilustração.”
De resto, a edição da Iguana é em capa mole, com badanas, com bom papel baço no miolo. A impressão e a encadernação também são boas.
Em suma, Erva não é apenas uma obra de ficção gráfica, mas um testemunho histórico que educa os leitores sobre uma parte importante e dolorosa da história asiática que, embora muitas vezes "chutada para canto", ainda ressoa nos dias atuais. A obra é, portanto, projetada para provocar uma reflexão profunda sobre os horrores da guerra e as suas vítimas invisíveis, assumindo-se como uma leitura essencial para quem procura compreender a profundidade dos traumas de guerra e a luta contínua por justiça das mulheres afetadas pela mesma. Keum Suk Gendry-Kim criou uma obra que é ao mesmo tempo devastadora e bela, revelando as camadas de dor e resiliência que caracterizam a desconfortável e traumática experiência das mulheres que se viram forçadas a ser "mulheres de conforto".
NOTA FINAL (1/10)
9.5
-/-
Erva
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana (Penguin Random House)
Páginas: 488, a preto e branco
Capa: Mole
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Junho de 2024
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