Todos os verões são marcados por uma silly season, algo que, não tendo tanta relevância assim para a vida das pessoas, acaba por ser tema constantemente presente e sobreexplorado por muitos. Creio que, no que toca à banda desenhada em Portugal, este ano o tema da silly season foi o lançamento da segunda novela gráfica da Levoir e do jornal Público, O Jogo da Morte, da autoria dos espanhóis Pepe Gálvez e Guillem Escriche.
Assim que este livro chegou às bancas, logo se seguiu uma chuva de críticas, quer nas redes sociais, quer em blogs/sites sobre banda desenhada acerca do formato do livro, que é pequeno. Pois bem, é verdade que a Levoir lançou o livro num formato de 17 x 22 cms. E isso é um tamanho demasiado pequeno. Mais ainda, é um formato um pouco "estranho", pois o livro parece mais quadrado do que o habitual em banda desenhada. E se tivermos em conta que uma das valências da Coleção de Novelas Gráficas é a de respeitar os tamanhos das edições originais, realmente estamos perante uma incongruência editorial, já que, tanto nas edições desta obra em Espanha como em França, o formato era maior. É um facto e não há como negá-lo.
No entanto, pareceu-me excessiva, a soar o absurdo, a reação que se fez sentir nas redes sociais. Foram várias as vozes que se ergueram para dizer que esta edição era "ridícula", que era um "roubo", que era um "ultraje", que "depois disto, nunca mais comprariam uma novela gráfica da Levoir", que "não se admitia", que o "livro era ilegível neste formato"... calma, juventude. Não é, quanto a mim, tão grave como parece.
Repito que sou a favor que as edições portuguesas respeitem ao máximo a forma como as obras estrangeiras são lançadas lá fora. Isso é ponto assente. E não considero propriamente esta edição como "boa". No entanto, e apelando ao bom senso e racionalidade dos que me leem, o lançamento deste O Jogo da Morte também não me parece tão "mau" ou tão "grave" como isso.
Ou, dito por outras palavras, já vi erros mais crassos serem feitos pela Levoir - e por outras editoras - noutros lançamentos. Mais do que o formato ser maior ou menor, a mim incomodam-me muito mais as más impressões, as más encadernações, os erros de tradução, os erros de revisão, os erros ortográficos ou de sintaxe, as páginas repetidas, a ausência de páginas, a ausência de balões, a má legibilidade... e por aí diante. E nada disso acontece neste O Jogo da Morte. Deparei-me com várias pessoas a dizerem que o livro, neste formato mais pequeno, não dava para ser lido devido a ficar ilegível e isso, meus caros, não é verdade. Talvez até tenha sido sorte da editora, mas o que é certo é que, em termos de legibilidade da legendagem, o livro se lê perfeitamente. Há apenas uma exceção, que é a página 34 do livro em que, como as legendas são utilizadas a branco em fundo preto, essa legibilidade sai afetada. Mas usar um exemplo, em 96 possíveis, para acusar o livro de ser ilegível, como vi a ser feito por essas redes sociais, é desonestidade intelectual.
Coisa que não encontrarão aqui no Vinheta 2020. Aqui, opina-se aquilo que se sente. Não há aqui caça às bruxas, nem defesa cega das editoras, só porque sim. E sinto que a Levoir tem sido mais escrutinada do que outras editoras. Com efeito, ainda recentemente vi dois livros de uma outra editora a apresentarem claros problemas de legibilidade - maiores do que os deste O Jogo da Morte - e não vi ninguém a apontar isso por essa web fora. Tirando a minha pessoa, claro. Portanto, ou bem que escrutinamos tudo e todos, ou bem que somos mais congruentes connosco próprios.
Repito, e deixando bem claro para o caso de alguém poder considerar que estou a tomar o partido da Levoir, que: "sim, considero que esta edição tem um tamanho pequeno, que deveria ser maior e que, portanto, não está na qualidade pretendida". No entanto, também acrescento: "não é, nem de perto nem de longe, o erro maior que vi a Levoir fazer, nem tampouco a leitura do livro sai negativamente afetada por esta menor dimensão da obra". E, já agora, convém não esquecer que o preço das edições francesa e espanhola também são superiores ao preço da edição portuguesa. Portanto, já que "o tamanho", afinal, interessa tanto... se nos centramos no tamanho da edição, também não devemos esquecer o tamanho do preço. Vamos lá ser sérios.
Ora, posto isto, e avançando para aquilo que, realmente, mais deveria contar - mas, enfim, estamos na silly season - falemos da obra em si.
O Jogo da Morte é um livro que nos conta, com base em factos verídicos, um dos jogos de futebol mais famosos de sempre. Infelizmente, pelas más razões.
Estamos em plena Segunda Guerra Mundial, mais concretamente a 9 de Agosto de 1942, na cidade de Kiev, na Ucrânia, que se encontra ocupada pelo regime nazi. Nesse dia fatídico, ocorreu um jogo de futebol que opôs jogadores ucranianos a jogadores alemães. E mesmo sendo 11 contra 11, a equipa ucraniana deu um autêntico "baile de futebol" à equipa alemã, ganhando por um expressivo resultado.
Durante a ocupação nazi, convém não esquecer, o futebol era usado pelos ocupantes como uma forma de propaganda, e o jogo contra os ucranianos foi planeado pelos alemães como uma demonstração da superioridade ariana. Contudo, os jogadores ucranianos, apesar das ameaças, decidiram jogar a sério e golear a equipa alemã.
É claro que os alemães, defensores desse non sense que era a raça ariana, não gostaram nada e decidiram retaliar. Não só dentro do campo, com o recurso à violência à frente de todos os que assistiam ao jogo, inclusive do árbitro, como também, mais tarde, com o assassínio de alguns dos jogadores da equipa ucraniana. A questão que os alemães não podiam suportar era que tivessem sido derrotados por uma "raça" que consideravam ser inferior e que, com essa vitória, punha em causa toda a sua ladainha propagandista da raça superior ariana. Por seu turno, para a população residente em território ocupado, esta foi uma vitória moral importante para fazer face a uma vida privada de liberdade e carregada de injustiça. Quando se diz que o futebol é mais do que um jogo, podemos começar por referir este jogo de futebol em concreto.
Se este acontecimento histórico é de extrema relevância, não devendo nunca ser esquecido - mais que não seja para espetar na cara de todos os que defendem o nacionalismo, etnocentrismo ou racismo - não fiquei especialmente convencido com o argumento tecido por Pepe Gálvez. O autor tenta introduzir-nos ao antes e ao depois deste famoso jogo de futebol, mas acaba por fazê-lo com um encadeamento deficiente dos vários momentos da narrativa. O argumentista centra-se em várias personagens, mas sem realmente nos mergulhar nessas mesmas personagens. E, às tantas, parece que estão a ser despejados factos com alguns dos mesmos a nem sequer serem especialmente relevantes para a trama. Valia mais, está bom de ver, que o argumentista tivesse optado por se centrar numa só personagem, desenvolvendo-a, depois, de forma mais profunda. Assim, o argumento torna-se algo arrastado, impedindo o livro de almejar voos mais altos - sim, é disto que deveríamos estar a falar e não se o tamanho da edição é maior ou menor.
As ilustrações de Guillem Escriche, sem deslumbrarem, são agradáveis à vista, adoptando um estilo realista que cumpre bem os intentos narrativos. Se olharmos com atenção, veremos que o desenho não é tão detalhado como poderia ser e que há alguma rigidez nos movimentos das personagens, especialmente nas partes em que assistimos aos jogos de futebol. E isto até acaba por ser curioso, pois estou certo de que se o livro fosse lançado em formato maior, esta rigidez no desenho ou a nudez dos cenários seriam mais visíveis. Mas, claro, foi um golpe de curiosa sorte da editora, neste caso.
Quanto à edição da Levoir, tirando o supramencionado e lamentável - mas não tão chocante assim - formato pequeno da edição, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no miolo e uma boa encadernação e impressão. Há um prólogo escrito pelo emblemático Mario Kempes, um jogador histórico da seleção argentina, e dois textos introdutórios onde, de forma algo exaustiva, diria, Pablo Herranz, aborda as várias versões cinematográficas que já adaptaram para a 7ª arte este O Jogo da Morte, antes desta versão em banda desenhada. A mais famosa dessas versões cinematográficas - e, também, a única que eu conhecia - é Fuga para a Vitória, com Sylvester Stallone e Pelé.
Em suma, O Jogo da Morte é uma BD que narra os acontecimentos por detrás daquele que será, e pelos maus motivos, o jogo de futebol mais emblemático e chocante de sempre. Uma leitura especialmente interessante para adeptos de história e de futebol que, pese embora o argumento pudesse ser mais aprimorado, oferece uma meditação sobre a coragem e a resistência em tempos de opressão. A corajosa decisão dos jogadores de futebol de não cederem às pressões dos ocupantes nazis simboliza uma vitória do espírito humano sobre a opressão, mesmo diante das piores circunstâncias.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
Reações silly para decisões editoriais silly. Era tão fácil evitar
ResponderEliminarConcordo, caro Ricardo.
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