Têm sido várias as boas surpresas de banda desenhada que a editora ASA tem lançado junto de nós no último par de anos e, em particular, neste ano de 2024. E uma dessas boas surpresas foi esta recente editada obra intitulada A Minha Mamã está na América e encontrou o Buffalo Bill, que foi originalmente lançada em França há quase 20 anos. Tendo em conta a idade avançada da obra, considero óbvio que a aposta neste lançamento por parte da editora portuguesa se deve - para além da clara qualidade da obra, está claro - ao sucesso que a magnífica incursão do autor Émile Bravo na personagem de Spirou, recentemente editada pela mesma editora, tem recolhido junto do público e crítica portuguesa.
Émile Bravo é um nome maior da banda desenhada franco-belga e ver mais algumas das suas obras a serem finalmente editadas em Portugal é motivo de regozijo.
Este livro cujo título é, na verdade, uma frase, assume-se como uma obra autobiográfica sobre o início de vida do seu argumentista, Jean Regnaud, e oferece uma visão sensível e comovente da infância. A história é contada na primeira pessoa, sob o ponto de vista de Jean, uma criança que, no começo do livro, se prepara para o seu primeiro dia de aulas na escola primária. Fica óbvio para o leitor, logo nas primeiras páginas da obra, que Jean perdeu a sua mãe. Não sabemos se morreu, mas é claro que a mãe se encontra ausente. A partir daí, Regnaud faz-nos entrar na mente ingénua de uma criança que, com toda a sua imaginação e inocência, ainda não consegue compreender em que lugar está a mãe. Nem qual é a razão para o seu desaparecimento.
A narrativa segue a vida de Jean, que vive com o pai, com o irmão mais novo e com uma governanta, que acaba por ser a presença adulta mais constante na vida destas crianças. Com a mãe ausente, Jean revela-se incapaz de compreender completamente a situação, e acaba por ser levado a acreditar que a sua mãe se encontra em viagem. A história avança com Jean a tentar entender o que aconteceu com a sua mãe, enquanto lida com as mudanças na sua vida quotidiana e com as emoções confusas que surgem alimentadas por essa ausência maternal.
É então através da sua vizinha, uma criança um pouco mais velha, que o pequeno Jean começa a receber cartões-postais escritos pela sua mãe (?) que lhe vão dando alento e ânimo para lidar com o seu dia-a-dia, onde é notória o vazio maternal - e, já agora, o paternal, já que o seu pai, mesmo estando presente, não deixa de estar ausente no dia a dia dos seus filhos.
Um dos temas centrais do livro é a infância e como as crianças lidam com as situações complexas do mundo adulto. A ausência da mãe é o ponto de partida para uma exploração da dor, do luto e do crescimento pessoal. A narrativa é permeada por um tom de melancolia, mas ao mesmo tempo, é carregada por uma doçura inocente que torna a leitura deveras tocante.
Outro tema importante que este livro traz consigo é a forma como as crianças preenchem lacunas de informação com imaginação. Jean transforma a ausência e o mistério em torno da sua mãe em aventuras, acreditando nas histórias fantásticas que ela supostamente vive. Isso não só revela a criatividade infantil, mas também como a mente de uma criança pode tentar proteger-se da dura realidade.
A escrita de Jean Regnaud é simples e direta, refletindo a perspectiva de uma criança. No entanto, essa simplicidade esconde camadas de complexidade emocional, que vão sendo desvendadas à medida que a história progride. A história é, pois, terna e bela, num tom agridoce que tenta aquecer-nos o coração.
O estilo de ilustração é bem ao jeito daquilo que podemos encontrar nos álbuns do Spirou assinados por Émile Bravo: um desenho "fofinho", que agrada a crianças e que tem o poder de levar os adultos para destinos nostálgicos embrenhados na sua própria infância de outrora. A planificação da obra não é de todo convencional, havendo muita dinâmica e opções diversificadas de prancha para prancha.
Por falar nisso, embora este seja um livro de banda desenhada onde há algumas páginas que obedecem aos cânones clássicos do género, outras há em que o livro se aproxima mais de um álbum ilustrado, por nos apresentar ilustrações sem os limites das vinhetas e sem balões de fala. Pessoalmente, considero que esta opção funciona bem, não só porque torna o livro mais original, como permite que o relato que nos é dado na primeira pessoa - em voz off e com pouco lugar a diálogos - seja feito de uma forma mais escorreita.
Falando nos diálogos, outra ferramenta que Émile Bravo utiliza com especial leveza e sensibilidade, é a opção por balões de fala em que, em vez de colocar texto, o autor coloca uma ilustração que procura demonstrar ao leitor aquilo que está a ser dito por cada uma das personagens. Não é algo que me pareça muito simples de se fazer de forma bem sucedida, mas Bravo, com a sua capacidade gráfico-narrativa, consegue superar-se.
De resto, o estilo de ilustração de Émile Bravo combina a suavidade das linhas e o uso eficaz das cores, conseguindo transmitir as emoções do protagonista de forma visualmente envolvente. As expressões faciais, os cenários e os detalhes subtis nas ilustrações complementam o texto e enriquecem a narrativa.
O relato é sensível e singelo, podendo ser lido por uma criança, claro, mas sendo claramente direcionado para um público maduro. Daí que a designação de "banda desenhada infanto-juvenil", que tenho lido em vários locais, talvez não seja a mais ajustada, quanto a mim.
De qualquer maneira, uma coisa é certa: este é um belo e emotivo livro que nos faz - a nós, adultos - sair do nosso mundo desprotegido para mergulhar na tão densa e artificialmente protegida bolha que criamos para as nossas crianças, onde as escudamos de tudo o que é nocivo ou de difícil digestão emocional. Quando sobrecarregamos as crianças de eufemismos e respostas latas, estaremos a protegê-las ou simplesmente a adiar o drama inevitável que sempre acaba por nos bater à porta?
A edição da ASA é em capa mole baça com badanas. No interior, o papel é espesso e baço, o que funciona bem no estilo de ilustração de Émile Bravo. A impressão e a encadernação são de boa qualidade, também.
Em suma, A Minha Mamã está na América e encontrou o Buffalo Bill é uma obra que se destaca pela sua sensibilidade ao tratar de temas difíceis através dos olhos de uma criança. A obra é capaz de envolver tanto crianças, quanto adultos - embora possivelmente impacte mais os adultos do que as crianças - oferecendo uma experiência de leitura que ressoa em diferentes níveis. Para as crianças, pode ser uma história sobre a saudade e a imaginação, enquanto que para os adultos, é uma lembrança do quão marcante e formativa pode ser a infância, especialmente diante da ausência e do luto.
NOTA FINAL (1/10)
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
A Minha Mamã está na América e encontrou o Buffalo Bill
Autores: Jean Regnaud e Émile Bravo
Editora: ASA
Páginas: 120 páginas, a cores
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 172 x 244 cm
Lançamento: Junho de 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário