Foi há poucas semanas que a Levoir lançou Kobane Calling, do autor italiano Zerocalcare, um livro que estava incluído na minha lista de obras mais esperadas para este ano. E fazia parte dessa minha lista pelo simples facto de eu já ter visto as séries de animação do mesmo autor, presentes na Netflix e intituladas Destacar pelo Picotado e Este Mundo Não Me Vai Derrubar - e de as ter adorado! E mesmo sendo obras num outro meio que não a banda desenhada, percebi logo que Zerocalcare, pseudónimo de Michele Rech, era um autêntico mestre em contar uma boa história.
E, sim, depois de lido, posso dizer-vos que este Kobane Calling não desilude e é, pelo menos até agora, o melhor livro do ano lançado pela Levoir e, estou certo, uma das melhores bandas desenhadas do ano! Um livro obrigatório!
Kobane Calling foi originalmente publicado em 2016 e oferece-nos um relato pessoal e jornalístico sobre a experiência do autor na região de Rojava, no Curdistão Sírio, onde visitou as áreas de conflito armado envolvendo os curdos, o Estado Islâmico e as forças internacionais. O título da obra, brincando com o célebre tema da banda britânica The Clash, em London Calling, refere-se à cidade de Kobane, que se tornou um símbolo de resistência contra o ISIS e apresenta-nos este tema num registo semelhante a um diário de viagem, que passa pela Turquia, Síria e Iraque, para documentar a luta do povo curdo contra o Estado Islâmico. E contra o próprio regime Turco, diga-se.
Se o tema parece político - e é! - deixem-me dizer-vos que este é um livro extremamente acessível e que consegue a proeza de falar de assuntos sérios, de informar de uma forma geopolítica, de ser crítico face aos media internacionais, de levantar questões pertinentes e, ao mesmo tempo, ser extremamente divertido, bem disposto e inegavelmente hilariante!
A obra explora o contexto da Revolução de Rojava, numa tentativa de estabelecer uma sociedade baseada em princípios de democracia direta, igualdade de género e convivência pacífica entre as diferentes etnias e religiões que ali persistem, retratando as aspirações e dificuldades de criar uma nova ordem social no meio do caos de uma guerra.
E não é por ser extremamente cómico (já lá irei) que podemos dizer que Kobane Calling romantiza ou aligeira a guerra. Pelo contrário, a obra apresenta o sofrimento e a brutalidade do conflito, desde a destruição das cidades até às perdas humanas, trazendo à tona as histórias pessoais dos combatentes e civis com quem, à semelhança de um Joe Sacco, o autor se vai cruzando pelo seu caminho.
O tom da narrativa é, portanto, multifacetado: por um lado, há momentos de humor, que servem para aliviar o peso dos temas abordados, como a guerra, a perda e a resistência. Por outro, há um forte compromisso com a seriedade do tema, oferecendo uma visão profunda e respeitosa dos desafios enfrentados pelo povo curdo e dos ideais revolucionários que movem a luta em Rojava.
Assim, a obra acaba por ser um pouco de tudo: 1) é uma crónica de guerra em banda desenhada, que nos poderia fazer lembrar os belos trabalhos de Joe Sacco, Guy Delisle, Marjane Satrapi, Riad Sattouf e até de Taha Siddiqui - no seu Dissident Club, igualmente publicado pela Levoir; 2) é um livro de crítica social à maneira enviesada como o Ocidente olha para as narrativas bélicas da forma que mais lhe convém; 3) por último, é um autêntico livro de humor.
Os mais puristas poderão dizer-me: "Hum... isto trata sobre a guerra... como pode ser um livro humorístico?" Face a essa questão tenho que dizer que basta ler o livro para se mudar de opinião. Já não me ria assim com uma banda desenhada há longos anos. Zerocalcare é uma mente brilhante, de rápido raciocínio, que goza com tudo e todos - incluindo a sua pessoa - e tem uma visão curiosa, assente em exageros hilariantes nas analogias que faz, que tornam a sua obra viciante. Assim foi nas duas séries televisivas já mencionadas e também assim é em Kobane Calling. Como tal, só posso esperar que mais bandas desenhadas deste autor continuem a ser publicadas por cá. A última página deste livro faz, aliás, referência à futura publicação de um outro livro do autor, No Sleep Till Shengal, pela mesma editora Levoir, o que me deixa muito satisfeito! Não tenho dúvidas de que nós, portugueses, precisamos de mais livros de Zerocalcare.
Mas, voltando a Kobane Calling, há também toda uma genuinidade e franqueza no discurso do autor, que me agrada profundamente. Era fácil para Zerocalcare adoptar uma postura algo altiva e intelectual, pelo tema aqui tratado, mas a sua opção é gozar consigo mesmo e com toda uma geração de millennials, da qual também eu faço parte, sublinhando e pondo em perspetiva todos os seus "problemas do Primeiro Mundo" que, quando alinhados com as questões que realmente interessam, chegam a parecer ridículos e infinitamente fúteis. O humor de Zerocalcare é, pois, contagiante, com referências que pululam pela história que nos é dada. Quanto ao ritmo narrativo da obra, este desenrola-se diante dos nossos olhos a "100 à hora"! Inicialmente, isso até pode dar a ideia de que esta será uma obra difícil de acompanhar, mas isso é apenas ilusão porque, conforme já referi, o livro é muito acessível para todos. São muitos e rápidos os raciocínios que Zerocalcare oferece ao seu leitor, mas nunca deixa que o mesmo se perca, gerindo muito bem o tempo e o espaço gráfico para tal.
Quanto ao estilo de ilustração, Kobane Calling apresenta desenhos a preto e branco num tom "cartoonesco" e num traço rápido e extremamente eficiente em passar-nos uma boa expressividade das personagens, sendo caricatural quando é necessário, mas também conseguindo surpreender através de uma bela prancha, de tempos a tempos. Funciona muito bem. É uma daquelas situações em que argumento e ilustração têm um casamento perfeito. Admito que, quando comparado com a série televisiva, que é colorida, o livro a preto e branco não consegue ser tão vibrante. Mesmo assim, e comparações à parte, os desenhos de Zerocalcare agradam-me bastante.
Quanto à edição da Levoir, o livro apresenta capa dura baça, bom papel no interior e boa impressão e encadernação. Convém relembrar que a editora apostou em trazer-nos a edição aumentada da obra que, para além da história principal, contém ainda uma história adicional de 32 páginas sobre mais uma das vítimas italianas deste conflito na Síria e, ainda, um dossier de 7 páginas com apêndices à história, bem como, no início, um prefácio do autor que procura demonstrar-nos que, sendo esta uma situação política ativa, o livro não deverá ser retirado do contexto histórico em que foi escrito, sob pena de, se assim for, poder ser considerado obsoleto. Estamos perante, portanto, uma boa edição da Levoir que, além de tudo, ainda tem o mérito de ser pioneira na publicação de (mais) um autor estrangeiro em Portugal do qual já passei a ser fã. Nota ainda, positiva, para a tradução de Massimiliano Rossi. Nem sempre falo do tema das traduções nas minhas análises, mas, neste caso, e tendo em conta a maneira quiçá mais localizada com que Zerocalcare se expressa, com o recurso a muitas referências e calão, acho que o trabalho de tradução merece a minha nota de louvor pois não foi, certamente, muito linear para fazer.
Resumindo e concluindo, Kobane Calling é um belo registo autobiográfico, uma crónica de guerra alarmante, uma delação das mentiras que o Ocidente - e em especial o regime de Erdogan - propagam junto das suas populações no que ao conflito no Curdistão Sírio diz respeito. Se a obra tem toda esta carga política, também consegue ser, possivelmente, a banda desenhada mais cómica que li nos últimos anos. Como é que é possível fazer-se tantas coisas bem? Parece-me que teremos que perguntar a Zerocalcare como consegue este admirável equilíbrio. Mas, antes disso, comprem, leiam e ofereçam este Kobane Calling. É dos melhores livros do ano!
NOTA FINAL (1/10):
9.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Kobane Calling
Autor: Zerocalcare
Editora: Levoir
Páginas: 312, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 260 mm
Lançamento: Junho de 2024
Obrigado, Hugo!
ResponderEliminarMassimiliano Rossi
De nada! Parabéns pelo bom trabalho na tradução!
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