quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Análise: A Espera

A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim

Depois da editora Levoir ter lançado, na sua última coleção de Novelas Gráficas, a obra Alexandra Kim, Filha da Sibéria, da autora coreana Keum Suk Gendry-Kim, foi a vez da editora Iguana (do grupo Penguin Random House) nos fazer chegar o livro A Espera, da mesma autora, que hoje vos trago. De resto, e tal como já aqui tinha dado conta, parece que a aposta no lançamento de trabalhos de Keum Suk Gendry-Kim para o mercado nacional é séria, uma vez que são esperadas, já para o próximo ano, mais duas obras da autora. A Árvore Despida, pela Levoir, e Erva, pela Iguana.

Mas concentremo-nos, para já, neste A Espera.

A história que Keum Suk Gendry-Kim nos oferece, centra-se em Gwijá, uma mulher com noventa anos que, atualmente, vive na Coreia do Sul. Esta mulher passou, nada mais, nada menos, do que sete décadas sem o seu filho! Sim, parece impossível, mas, de facto, o livro até procura aproximar os leitores a uma realidade, quiçá distante para o mundo ocidental, que afetou tantos milhares de refugiados coreanos que, lamentavelmente, se viram afastados dos seus entes queridos para sempre. No caso de Gwijá, esta mulher fugia, como tantos outros, do norte da Coreia com o seu marido, filho e filha, mas, por fatalidades do destino, separou-se do seu filho e marido e acabou sozinha, com a sua filha.

A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Entretanto, com maior ou menor mágoa, os anos foram-se sucedendo e a vida lá se foi passando. Gwijá voltou a casar – com um homem que também havia perdido familiares diretos neste fluxo de refugiados – e teve outros filhos. No entanto, a ausência e afastamento do seu primeiro filho continua a atormentá-la.

Entretanto, uma das amigas de Gwijá, reencontra a sua irmã mais nova, num encontro organizado pela Cruz Vermelha, após 68 anos de separação. Depois disto, e compreensivelmente, Gwijá passa a acalentar ainda com mais força o desejo de reencontrar o seu filho.

Este é, afinal de contas, um livro que procura traçar com rigor as vicissitudes e dramas da Guerra da Coreia e como a mesma, para além das eventuais baixas diretas que fez, acabou por ter consequências demográficas e sociais que perduram até mesmo nos dias de hoje, visto que muitas famílias continuam separadas enquanto vos escrevo estas linhas.

A separação entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul teve – e tem – esse lado de, artificialmente, dividir e criar barreiras entre um lado fechado e comprimido sob o jugo da dinastia Kim, a norte, e um lado democrático, capitalista e moderno, a sul. Para melhor se documentar, Keum Suk Gendry-Kim efetuou variadas entrevistas – incluindo à própria mãe - o que, por conseguinte, acaba por tornar o relato em algo muito verossímil, aumentando o teor histórico e de estudo socio-político da obra.

Quanto a nós, leitores, vemo-nos forçados a mergulhar de cabeça neste drama comovente que nos deixa sem palavras perante o desespero das vítimas das guerras e das separações forçadas. E, de forma quase automática, o livro acaba por fazer um paralelismo com tantos outros fluxos migratórios causados por conflitos militares que geram refugiados que tudo procuram fazer para tentar fugir da guerra e obter uma vida melhor. Muitas vezes, o preço a pagar é ficarem longe das suas próprias famílias.

Em termos de desenho, Keum Suk Gendry-Kim oferece-nos ilustrações a preto e branco puro, sem cinzentos, maioritariamente simples na forma. E utilizo a expressão “maioritariamente simples na forma” porque, de facto é isso que acontece, mas, ainda assim, há vários momentos ao longo do livro onde as ilustrações da autora coreana atingem um nível mais gratificante e evoluído tecnicamente.

A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
São desenhos inspirados, com uma aura expressionista, onde delicados e belíssimos cenários nos são dados. O que, sendo algo bom, causa um certo desequilíbrio ao todo, tenho que admitir. É verdade que muitas expressões faciais parecem “cartoonizadas” de uma forma quase infantil e apresentam um traço algo arcaico, mas noutros casos, o desenho apresenta uma qualidade ao nível da pintura, tal não é a beleza estética do mesmo! Fico com a ideia de que a autora desenha normalmente de forma rápida e direta e que, noutros casos, despende mais tempo e devoção, dando-nos ilustrações lindas como as das páginas 11, 19, 46, 55, 159, 199, 205, por exemplo. E são esses os melhores momentos da obra, em termos de ilustração.

Seja como for, acho que a autora é bem sucedida neste cômputo do desenho, ao conseguir dar-nos um registo muito personalizado e ímpar. Podemos encontrar influências nas ilustrações de Keum Suk Gendry-Kim, mas, ainda assim, parece que o seu estilo é diferente dessas mesmas influências.

A edição da obra é em capa mole, com badanas. A capa é baça, mas apresenta detalhes a verniz. O papel é baço e de boa qualidade. Tal como o trabalho ao nível da encadernação e da impressão é bem feito.

Além da edição, acho que a Iguana (Penguin Random House) merece uma palavra de apreço. Especialmente na segunda metade deste ano de 2023, a editora tem lançado obras de primeira qualidade, entre as quais se destacam O Indispensável da Mafalda, de Quino, Mulher Vida Liberdade, de Marjane Satrapi, e o belíssimo Mau Género, de Chloé Cruchaudet. Só posso esperar que em 2024 a editora ainda se afirme mais enquanto editora de bandas desenhadas de qualidade. Para lá caminha!

Em suma, este A Espera é um excelente livro que deve ser conhecido e celebrado por tudo aquilo que nos traz: por um lado, uma visão clara e objetiva, embora carregada de tristeza e desolação, da Guerra da Coreia e de todos os refugiados que por ela são dramaticamente impactados; por outro lado, a prova da relevância e qualidade do trabalho da autora Keum Suk Gendry-Kim. Uma excelente aposta!


NOTA FINAL (1/10):
8.8



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
A Espera
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana (Penguin Random House)
Páginas: 248, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Novembro de 2023

6 comentários:

  1. E capa tanto da edição nacional (que é uma adaptação da espanhola é, no mínimo, infeliz.) Não existem designers naquela casa? Vejam as capas da edição brasileira e inglesa e comparem.

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    1. António, concordo que o design de capa não é muito feliz.

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    2. A capa da edição brasileira é bem mais bonita e original.

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  2. Parece que Iguana se está a arrebitar um pouco. Já faltava, porque comparando com a sua irmã espanhola Salamandra, o seu catálogo é muito pobrezinho…

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    1. Pois... isso pode ser verdade mas sinto que uma nova energia por parte da Iguana. Espero que a editora ainda ganhe mais força nos próximos tempos! :)

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