O livro da famosa saga de François Bourgeon, Os Passageiros do Vento, intitulado O Sangue das Cerejas (Tomo 2) que a Ala dos Livros publicou há umas semanas, pode muito bem ser a grande desilusão das minhas leituras de 2023. E é com pena que digo isto, já que esta é uma série de banda desenhada que marcou bastante a minha adolescência. Mas, convenhamos, se tivermos a frieza de fingir que não é o nome de François Bourgeon que consta na capa do livro enquanto autor nem, tampouco, que se trata de um volume de Os Passageiros do Vento, essa série marcante da banda desenhada europeia, pelo menos em termos de história/narrativa/enredo, este é um livro mal concebido.
É certo que muitas vezes as (des)ilusões estão muito interligadas com a expetativa que temos para algo. É assim com tudo na vida, aliás. E, sim, as minhas expetativas eram altas. Até porque esta é uma série longa, com quase 10 tomos, que já nos deu muito. Relembro que Os Passageiros do Vento se pode dividir em 3 ciclos. O primeiro deles tem 5 tomos (e é o melhor) e foca-se na escravatura do século XVIII. O segundo ciclo, A Menina de Bois-Caïman, com 2 tomos, centra-se na Guerra da Secessão Americana. E o terceiro ciclo, este O Sangue das Cerejas, também é constituído por dois tomos, que tem a sua ação a decorrer em Paris no período de tempo em que a sociedade de então esteve dividida pela Comuna de 1871.
Já aquando o lançamento do primeiro volume do díptico, em 2020, percebi que havia algumas questões no livro que não estavam executadas da forma a que autor nos habituou. Mesmo assim, pelo renovado cariz político ou das interligações entre as personagens, que me pareciam aliciantes, acabei por ficar com uma sensação positiva perante a obra. Também gostei particularmente do ambiente boémio da cidade de Paris e das personagens Zabo (ou Clara) e Klevi.
Mas as primeiras 20 páginas deste segundo tomo quase me fizeram desistir de o ler. São confusas, com informações completamente “all over the place”, em que se tenta contextualizar as personagens – sem que se tenha sucesso na tarefa – e em que se procura dar também um enfoque a questões políticas, mas não sem que isso seja feito de forma algo atabalhoada. Há inúmeras referências ao primeiro ciclo da série, especialmente, mas parecem metidas “a martelo” na história.
Em termos de história, continuamos a acompanhar o percurso de Zabo/Clara, mergulhando no drama que a mesma viveu quando, depois de abrigar um soldado jovem, acabou por ser violada pelos soldados do regime que não a deixaram sem que visse (ou ouvisse) o assassinato do seu próprio bebé. Entretanto, Zabo é deportada, juntamente com muitos outros presos políticos.
Indo ao âmago da história, o enredo até é simples. Mas Bourgeon parece fazer questão de complicar o simples. É que uma coisa é ser-se confuso pelo facto do tema ou da trama serem complexos e intrincado, outra coisa é ser-se confuso por má expressão escrita ou por frases proferidas de forma vaga e sem conexão. Se este não fosse o último álbum da série, ainda poderíamos congeminar que talvez o autor estivesse propositadamente a deixar pontas soltas para as fechar mais tarde, noutro livro. Agora, como não é isso que aqui acontece, a sensação é menos positiva.
Temos muitos diálogos desnecessários como, por exemplo, quando as personagens conversam sobre os horários dos comboios que, depois, nem sequer dão origem a nada de relevante para a história. Além de que tudo o que é dito, é dito de forma muito palavrosa e com um texto bastante redundante. Sei que os balões e legendas carregados de texto sempre foram uma tendência do autor, mas, no caso concreto deste livro, parece que Bourgeon abusou mais desta característica do que nos álbuns anteriores da série. E isso faz com que os diálogos não adquiram a verosimilhança desejável e que se tornem aborrecidos. É um livro difícil de ler. Porque ninguém fala como estas personagens falam.
Como tal, esta minha análise algo negativa da minha parte, acaba por me doer bastante ter que escrever. Porque é claro e inegável que o autor consegue – ou, pelo menos, conseguia – construir uma obra tão melhor. E é isso que dói. Imaginem que vão ao vosso restaurante preferido e são confrontados com um prato que está tantos furos abaixo do que normalmente vos apresentam nesse restaurante, que ficam incrédulos. Os Passageiros do Vento até pode não ser a minha série de BD preferida, mas, mesmo assim, está facilmente, quanto a mim, entre um conjunto não muito alargado das melhores séries de BD franco-belga. Portanto, se não fosse esta uma das séries mais aclamadas da banda desenhada europeia em todo o mundo, talvez a coisa passasse mais de “fininho”. Além de que, tendo também em conta que este é o final para uma série de culto com mais de quarenta anos, ou o autor foi muito negligente – não ouvindo opiniões/sugestões alheias, pois tenho a certeza que não posso ser só eu a apontar “o elefante na sala” – ou não teve inspiração e capacidade de terminar a série da merecida forma.
Se a relação entre Zabo e Klevi até sustentou bem o primeiro tomo do díptico, este segundo tomo mete “as mãos pelos pés”, baralha mais do que resolve e tem diálogos incrivelmente grandes para aquilo que efetivamente importa dizer. Até porque a densidade histórica que pontua o relato, parece não ter o equilíbrio certo entre algo educativo e algo meramente de enquadramento. Ou seja, se Bourgeon não pretende ser tão educativo assim, porquê introduzir tanta informação histórica? Ou, por outro lado, se o objetivo é que o livro seja educativo, para quê colocar as coisas de forma tão vaga e tão desenquadrada? Fica-se pelo meio.
Em termos de ilustração, acho que o livro funciona bem e mantém os níveis desejáveis. O estilo do autor com cuidadosos pormenores ao nível do desenho dos cenários, das personagens, da indumentária das mesmas, ou dos animais, quando aparecem, é digno de louvor. Não será o melhor livro do autor, pois são várias as expressões das personagens que parecem meio toscas e talvez precisassem de mais aprumo visual por parte de Bourgeon, mas, mesmo assim, funcionam bem e remetem-nos, de forma inequívoca, para o estilo conhecido do autor. Não é aí que o livro falha, quanto a mim. E também seria injusto da minha parte não admitir que, apesar de algumas personagens apresentarem expressões, como já disse, algo atabalhoadas, também há exemplos opostos onde determinadas expressões ou gestos das personagens adquirem uma realidade impressionante, parecendo que o autor retirou um frame concreto das expressões que fazemos na nossa vida. E isso humaniza as personagens, claro.
De resto, e recuperando o que já havia escrito para o primeiro tomo deste O Sangue das Cerejas, com uma tónica clássica na execução, diria que o desenho “se trata de uma arte, quiçá, mais destinada a um público mais maduro e com uma cultura de banda desenhada franco-belga já bem presente. A maneira como o autor desenha os cenários, as personagens ou as situações que se vão passando com o desenrolar da história, é muito convincente e atenta ao detalhe.”
Quanto à edição, o trabalho da Ala dos Livros é irrepreensível. O livro tem capa dura brilhante, com papel couché de boa qualidade. A impressão e a encadernação também são boas. Uma nota para a legendagem que é particularmente custosa de ler – como, aliás, tem sido apanágio na obra de Bourgeon. Embora, isso seja algo a que a Ala dos Livros é alheia, uma vez que a legendagem original, quer ao nível da font, quer ao nível da balonagem, é exatamente igual.
Em suma, e com muita pena minha, pois estava muito empolgado com este último volume de Os Passageiros do Vento, este livro fica muito aquém do expectável, com um enredo desnecessariamente complexo, que se perde a si mesmo e que faz com que a apoteose que se poderia esperar de uma série tão relevante como esta, seja, de certo modo, um "tiro no pé" de um autor tão inquestionável como Bourgeon. É como se a montanha tivesse parido um rato. E é pena que assim seja.
NOTA FINAL (1/10):
6.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Os Passageiros do Vento – O Sangue das Cerejas – Livro 2
Autor: François Bourgeon
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Outubro de 2023
PARABÉNS!...Luís Botelho
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