Dizendo-o – ou escrevendo-o – de forma sintética, é muito simples: Mau Género é um dos livros do ano! Disso não tenho dúvidas! E é, até agora, a proposta mais certeira em banda desenhada por parte da editora Iguana!
Mas vamos por partes.
Esta obra da autora francesa Chloé Cruchaudet – que até esteve por cá, no último Amadora BD para o lançamento deste livro – até foi originalmente lançada no mercado franco-belga em 2013. Mas, infelizmente, só chegou até nós passados dez anos, pelas mãos da Iguana. Mas, como em tudo o que é bom, vale mais tarde do que nunca.
Mau Género é inspirado em La Garçonne et l'Assassin, dos historiadores Fabrice Virgili e Danièle Voldman, que, num programa de rádio, deram esta história insólita a conhecer à própria autora Chloé Cruchaudet que rapidamente percebeu que o tema merecia uma adaptação livre para banda desenhada.
Sendo Mau Género originalmente lançado em 2013, talvez isso seja justificativo suficiente para que as questões de identidade de género que aqui são abordadas o sejam feitas de forma bem mais madura e sociologicamente profunda, face a muitas das obras mais atuais que também tratam o tema da sexualidade ou do género, mas que aparentam fazê-lo de forma mais panfletária ou navegando a onda deste assunto, quer se queira, quer não, trendy para leitores e, por conseguinte, para autores e editoras. Mau Género vai muito, muito, mas mesmo muito, mais além nos temas que aborda. E, portanto, considero que a obra deve ser convenientemente separada das demais, pois independentemente daqueles que me lerem se identificarem mais ou menos com obras que tratam o assunto da identidade de género, Mau Género é uma obra obrigatória. Avancem para a compra sem medo!
A história que a autora nos propõe é baseada na história verídica de Paul e Louise que, tal como tantos outros casais, se conhecem, se apaixonam e se casam. Estamos em Paris, no período que antecede a Primeira Guerra Mundial e, quando esta realmente eclode, Paul é mobilizado para ingressar na frente de combate, deixando a sua mulher à sua espera. Uma vez nas trincheiras, o inferno e drama com que se depara é tanto que, sabendo que não é talhado para este tipo de vida – mas quem o será?, diria eu - Paul decide escapar dali a todo o custo. Nem que tenha que se tornar num desertor.
Mas os castigos para os desertores de guerra são enormes (pagam-se com a vida) e, como tal, depois de fugir da frente de combate, Paul terá que permanecer escondido, nas sombras, sem que ninguém saiba da sua existência. Refugia-se então num quarto de hotel onde recebe visitas da sua mulher. Mas estar tanto tempo recluso num só espaço fechado não é fácil, o que leva Paul a encontrar uma solução para poder sair à rua. Passa então a vestir-se de mulher, ocultando deste modo a sua identidade. Numa primeira fase, fá-lo de uma forma algo atabalhoada, mas, à medida que vai entrando na nova personagem por si criada, a que chama Suzanne, Paul vai-se tornando cada vez mais feminino, parecendo também – a si e aos outros - mais verosímil a personagem que cria.
O que é absolutamente interessante do ponto de vista de estudo social é que, às tantas, talvez esta forma de vida que Paul encontra para ultrapassar um problema, seja mais agradável do que aquilo que ele imaginaria numa primeira instância. Às tantas, esta sua nova identidade fá-lo sentir-se melhor consigo mesmo. E fá-lo querer experimentar certas coisas, quer do âmbito sexual, quer do âmbito de sociabilização, que, até então, não lhe passariam pela cabeça – ou será que passariam?
E mesmo já depois da Guerra ter terminado e já depois de ter sido dada amnistia a todos os desertores de guerra, quererá Suzanne voltar a ser Paul? E quererá Louise, a esposa, ter nos seus braços o mesmo homem com quem casou? Ou já será este casal um casal diferente por tudo aquilo que superou em comunhão?
Há que lembrar que, há mais de 100 anos, a forma como a sexualidade era encarada era, naturalmente, muito mais fechada do que nos tempos atuais. E isso permite à autora Chloé Cruchaudet explorar de forma bem certeira todas estas dicotomias vividas pelo casal formado por Paul/Suzanne e Louise.
Mas Mau Género não é apenas um livro sobre as questões do género e da sexualidade. É muito mais que isso! Aborda a guerra e o trauma que a mesma traz para todos aqueles que a têm de viver na primeira pessoa, deixando marcas para toda uma vida, por um lado, e, por outro, também aborda a questão da violência doméstica já que, de portas para dentro, Paul tem um comportamento abusivo e violento para com Louise.
O livro assume, portanto, uma aura negra e pesada que muitas vezes nos deixa impressionados, tristes ou felizes, mas nunca indiferentes.
Não se procura justificar, perdoar ou promover qualquer tipo de comportamento. Quer seja o comportamento padrão ou o comportamento desviante. Apenas se pretende passar para o leitor um relato sensível, com uma forte componente humanista de algo que aconteceu. Não me admiro nada pelo facto de Mau Género ter conquistado vários prémios aquando o seu lançamento original. São devidos, sem dúvida!
Se a história é extremamente original, bem concebida, e bem narrada pela autora, a componente visual deste Mau Género é verdadeiramente bela e poética. Os desenhos das personagens são bastante expressivos, assumindo um registo que se fica entre o "cartoonesco" e, ao mesmo tempo, entre o desenho de época. O resultado é muito charmoso e belo.
Raramente as vinhetas aparecem divididas pelas tradicionais linhas que as delimitam, mas, mesmo assim, a leitura é escorreita e linear, conseguindo um belo efeito em termos visuais. A autora também se permite arriscar ainda mais em algumas páginas onde nos oferece ilustrações onde nem sequer há separação visual entre as mesmas. Mas isto também não faz com que se gere uma certa anarquia visual. Pelo contrário, parece sempre haver uma harmonia e uma delicadeza visual em Mau Género.
E também as cores encaixam que nem uma luva de cetim neste livro, alterando entre um registo a preto e branco e um registo a sépia onde, ocasionalmente, entram os tons avermelhados para dotar a componente visual em algo mais dinâmico e artístico.
Para já, é esta a grande obra da editora Iguana! É certo que, mais recentemente, a editora pertencente ao grupo Penguin Random House, tem apostado em número e em qualidade, em várias bandas desenhadas, mas é, quanto a mim, e até agora, Mau Género o melhor livro da editora que merece, portanto, uma palavra de louvor pela aposta bem conseguida.
De resto, o livro apresenta capa dura baça e bom papel brilhante. Na minha opinião, e tendo especialmente em conta o tipo de traço de Chloé Cruchaudet, a escolha por um papel baço (mate) teria funcionado melhor do que o papel brilhante (couché) que nos é dado. Mas fica apenas o comentário. A impressão e a encadernação apresentam boa qualidade.
Nota ainda para o facto de o livro trazer um dossier de extras com mais de 30 páginas, onde nos é permitido aprofundar o nosso conhecimento sobre a história que nos é dada, através de excertos dos arquivos originais do advogado de Louise - já que todo este caso chegou aos tribunais como, aliás, é visível nesta banda desenhada - bem como a introdução de belíssimas ilustrações de Chloé Cruchaudet. É uma bela edição, portanto.
Em suma, Mau Género assume-se como o melhor livro da editora Iguana e uma das melhores bandas desenhadas editadas em Portugal durante este ano. A história é (verdadeiramente) impactante, dando luz às questões que, realmente, importam ao nível da identidade de género - que nem sempre são as questões “da moda”. E, enquanto isso, também consegue ser um excelente documento histórico, baseado em factos reais, que apresenta uma magnífica ilustração elegante e charmosa que nos embala neste doce, embora por vezes triste, relato. Notável e obrigatório!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Mau Género
Autora: Chloé Cruchaudet
Editora: Iguana (Penguin Random House)
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2023
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