Quem pôde visitar o Amadora BD deste ano, certamente não ficou indiferente a uma das exposições do evento, que era dedicada a Companheiros da Penumbra, o mais recente trabalho do autor português Nunsky. Por um lado, pela qualidade da exposição, que nos remetia para um ambiente urbano, negro, sujo e punk, que acabava por ser bastante impactante. Por outro lado, porque não eram precisos muitos segundos para que nos saltasse à vista a qualidade das pranchas ali expostas.
Foi uma obra parcamente anunciada pela editora, Chili com Carne, e, talvez também por isso, apanhou muita gente desprevenida até ao dia do seu lançamento, no Amadora BD. Mas agora, depois de lido este grande livro, com mais de 300 páginas, posso dizer-vos que este é um dos livros do ano, em termos do lançamento de banda desenhada nacional.
O que Nunsky, autor de Erzsébet, nos traz neste Companheiros da Penumbra é simples em termos de história, mas verdadeiramente complexo e admirável em termos da dimensão e detalhe visual com que essa mesma história simples nos é dada.
A síntese é linear: esta obra procura ser um quase livro de memórias, em que o autor nos convida a (re)viver os anos 90 portuenses, com especial destaque para o aparecimento da cena gótica. Lembram-se da malta do secundário que se vestia de preto, com enormes botas Doc Martens, crucifixos e pentagramas pendurados ao pescoço? É sobre esta tribo urbana e toda a cultura que lhe é tida como adjacente que se baseia este livro. Ler Companheiros da Penumbra é uma viagem a um passado relativamente recente em que a música, o cinema, as festas e os convívios entre góticos ganhavam expressão nos centros urbanos. Particularmente em Lisboa e no Porto. Mas o livro centra-se no Porto, e em toda a cena gótica da cidade, em particular.
Em termos de história, acompanhamos as aventuras de várias personagens, mas o principal enfoque é em Alex Nogueira e no próprio Nunsky (Paulo) que, tendo interesses comuns, começam por formar uma banda que procura tocar rock gótico. Não é de admirar que bandas como Siouxsie and the Banshees, Joy Division, The Cure ou, especialmente Bauhaus, sejam referências óbvias para a música que a banda de Paulo e Alex, a quem se juntam Igor e Marco, quer fazer.
A partir daqui, acompanhamos o início da caminhada da banda que dá pelo nome de "The Ids". Desde a procura pelo nome, aos primeiros ensaios, às entradas e saídas de membros do coletivo, até aos primeiros concertos. Mas este não é apenas um livro sobre a formação de uma banda de rock gótico. Diria que a questão da banda será apenas parte da caminhada destes amigos, já que, ao volante de um Fiat Uno – esse automóvel tão característico dos anos 90 -, vamos conhecendo aquilo que será mais uma história nostálgica de uma amizade entre jovens que nutrem gostos e preferências semelhantes do que, apenas e só, a história de uma banda de garagem. A banda aparece porque é parte dessa amizade e dessa caminhada. Os relacionamentos amorosos com as raparigas, que começam a seguir a banda, também marcam presença, bem como as festas no mítico Heaven’s, a rodagem de filmes ou os grandes feitos ou fracassos nos variados projetos artísticos destes jovens.
Para o bem e para o mal, fica-se com a ideia que nos é oferecido por Nunsky um conjunto de episódios datados nos anos 90. E todo o livro é como se fosse uma manta de retalhos de memórias. Se, por um lado, é verdade que não há um fio condutor claro que possa ligar com mais detalhe alguns episódios que parecem ser avulsos, por outro lado, também não se pode dizer que a história não vá tendo uma ligação, mesmo que ténue, entre si. Porque vai. Simplesmente, senti falta de uma narrativa mais coesa nesse ponto.
Estando a história carregada de referências reais, também parece haver um grande conjunto de elementos ficcionais o que, quanto a mim, até ajuda a criar uma certa aura de misticismo e de interesse aumentado nestas figuras. Se pesquisarmos por várias das coisas que acontecem neste Companheiros da Penumbra, veremos que algumas delas aconteceram mesmo. Já quanto a outras, como o nome da própria banda The Ids, por exemplo, não encontramos qualquer referência na internet. Aprecio essa ficção bem inserida numa história carregada de elementos reais.
Mas se a história traz consigo uma viagem bem aprofundada e detalhada à cena gótica portuense dos anos 90, é nas ilustrações que Nunsky mais consegue impressionar.
Em primeiro lugar, comecemos por abordar a dimensão da obra que temos em mãos. Com mais de 300 páginas, não surpreende que este livro tenha demorado mais de 5 anos a ser feito. Isto porque, e convém não esquecer, não estamos a falar de um estilo de ilustração que seja simples e rápido de fazer. Ao invés, o traço fino e virtuoso de Nunsky é realista e pleno de detalhe.
Sendo completamente a preto e branco, torna-se claro e impressionante o belo domínio do autor nos mais variados níveis da ilustração: as personagens são verossímeis e as suas expressões e linguagem corporal são representadas de forma muito realista pelo autor. Os cenários também recebem belos detalhes que dão profundidade cénica a toda a experiência visual. Uma nota de espanto e admiração tem que ser dada à forma como, por vezes, o autor nos presenteia com uma ilustração mais dramático-poética que torna a experiência muito gratificante para o leitor. É incrível o virtuosismo de Nunsky nas ilustrações. Um verdadeiro talento.
Se há uma única coisa que, em termos de desenho não me agradou tanto, foi que tive dificuldade em distinguir as personagens demasiadas vezes. Todas elas são muito bem desenhadas, mas difíceis de distinguir em vários momentos. Os penteados podem ajudar um pouco, mas como estamos a falar de uma tribo que se vestia de forma idêntica, o que fazia com que tivesse um aspeto semelhante entre si, acaba por ser algo que impacta a fluidez da leitura. Mas, enfim, é apenas uma queixa num trabalho tão grandioso do autor.
Não costumo falar muito de balonagem e legendas, a menos que seja algo muito positivo ou muito negativo para a minha experiência enquanto leitor.
E, em Companheiros da Penumbra, a legendagem é, por si só, uma outra "personagem" que se impregna nas numerosas cenas musicais. Dito por outras palavras, para nos dar a ideia de que há música a tocar, sempre que as personagens estão no Heaven’s, por exemplo, conseguimos percecionar as músicas de fundo através das legendas com letras garrafais que nos dizem que música é.
A esse propósito, no final do livro há uma lista com todas as músicas que foram apresentadas ao longo do livro. É um bom complemento embora me pareça que talvez tivesse sido preferível que cada música e banda recebessem uma breve nota no final de cada prancha. Assim tornar-se-ia mais automático para o leitor saber que música era aquela, daquela página, e que banda tornou esse tema célebre, sem ter que saltar até à cábula da última página.
Finalmente, também fiquei admirado com a capacidade do autor em conseguir dar-nos – pelo menos, em termos visuais pois, em termos de argumento talvez isso não aconteça tanto – uma enorme diversidade de momentos. Temos, portanto, uma planificação dinâmica, com planos e enquadramentos vários que fazem com que a leitura visual da obra não se torne repetitiva ao longo de tantas páginas. Já em termos de história, senti alguma redundância em alguns momentos (demasiado?) mundanos na vida destas personagens.
A edição da Chili com Carne é em capa mole, com generosas badanas, e um papel que, embora competente, poderia ser mais robusto e menos frágil. No final da obra temos ainda um texto de Alex Nogueira – uma das pessoas que inspirou a história –; a tal lista de músicas que já referi acima; e quatro páginas em que são traduzidas para português algumas falas que ao longo do livro nos foram dadas em inglês ou em castelhano.
Em suma, esta obra é uma autêntica tour de force de Nunsky. Não descurando tudo aquilo que o autor já nos deu em obras passadas, é com este Companheiros da Penumbra que o autor esculpe com letras gordas o seu nome no panteão da banda desenhada nacional. Imprescindível e uma das melhores BD’s portuguesas do ano.
NOTA FINAL (1/10):
9.1
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Companheiros da Penumbra
Autor: Nunsky
Editora: Chili com Carne
Páginas: 318, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 19 x 26 cm
Lançamento: Outubro de 2022
Tenho a felicidade de ser um dos retratados neste álbum de BD e posso garantir que os Ids existiram. Tudo está tal e qual a minha memória mo mostra, os trejeitos e maneirismos dos personagens são fiéis à realidade, os locais eram, ou são ainda, tal e qual o autor nos mostra, e os eventos, ou pelo menos aqueles em que estive presente, pouco têm de ficção nesta representação. Da minha parte só me resta dizer que esta obra é uma fotocópia da realidade com muito pouco de degradação face ao original. Daqui o meu obrigado e os meus parabéns ao autor
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário e pela sua partilha! Esta é, de facto, uma obra que retrata com precisão a época em questão! Cumprimentos!
EliminarEstou neste momento a ler, comprado ontem na Feira do Livro de Lisboa. Gostei da critica e revejo-me nela. De uma forma geral, tenho pena que um livro tao grande, denso, ambicioso, bem desenhado e, ainda por cima, passado no meu Porto, tenha uma historia tao vaga e pouco palpavel. Ainda assim, como experiencia, vale muito a pena espreitar este Companheiros da Penumbra!
ResponderEliminarConcordo. Não sendo perfeito é, ainda assim, um belo livro e um marco na banda desenhada nacional. Obrigado pelo comentário.
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