terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Análise: A Polaroid em Branco

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
A Polaroid em Branco, de Mário Freitas

Em outubro de 2022 história foi feita quando Mário Freitas, um conhecido autor e editor de banda desenhada da nossa praça, lançou A Polaroid em Branco, a primeira obra portuguesa feita através – ou com – Inteligência Artificial. E este é um daqueles casos em que, a priori, e independentemente do quão bom ou mau o livro pudesse ser, já representava algo histórico para a banda desenhada nacional.

E também por todo o debate que a Inteligência Artificial tem gerado nos últimos meses, é difícil falar de A Polaroid em Branco, fugindo a esse tema. São muitas as vozes que defendem cegamente a utilização da IA, mas também são muitas as vozes que defendem que a utilização deste tipo de tecnologias é em tudo menos ética, especialmente tendo em conta que, aparentemente, estes softwares recolheram o estilo de ilustração de muitos autores e o sintetizaram virtualmente. E quando alguém pede à máquina, através de um prompt, para criar determinada imagem, a máquina está a “roubar” os estilos de outros autores que não são remunerados por tal. A apropriar-se da arte de outrem, vá. No outro lado da barricada, os defensores da IA contra-argumentam que mesmo quando é o homem o desenhador, este também está, de forma consciente ou não, a apropriar-se de estilos e técnicas já perpetrados no tempo por outros autores.

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
Sou-vos sincero: ao contrário de muita gente que é "totalmente contra" ou "totalmente a favor", eu não tenho, ainda, uma opinião muito formada sobre o tema. Como é algo novo, tenho estado atento a todos os argumentos e acho que percebo as diferentes fações. Simplesmente, e por agora, é-me difícil ser totalmente a favor ou totalmente contra neste assunto. Tendo em conta que sou alguém que não sabe desenhar, gosto de olhar para a IA como uma ferramenta que me permitirá desenhar ou, pelo menos, chegar ao desenho que eu quero. Bem o sei, e neste livro, Mário Freitas refere-o, não é a máquina que faz tudo. Depois é preciso tratar as imagens, alterando-as a bel gosto do autor. A máquina não faz, por isso, a papinha toda.

Não obstante, e porque sou alguém que respeita a criação do autor original, também não sei se não será uma apropriação não ética da criação de outros autores. Preocupa-me que o criador original de algo não seja remunerado – ou, no mínimo, creditado ou bonificado – pela sua criação visto que, sem ele, essa criação não existira. Mas, dito isto, entra em cena a fação “pró-IA” e diz: “ah, mas nenhuma criação é totalmente original. Somos sempre influenciados por toda a envolvente e é humanamente impossível, creditarmos todas as nossas influências”. Pois, como vêem, o assunto dá pano para mangas.

Eu acredito que, se usado como ferramenta e tentando acautelar a criação dos autores humanos da melhor forma possível (não me perguntem qual), a IA pode ser algo muito positivo. Já quanto àquele argumento do “ah… mas isto vai tirar trabalho aos desenhadores”, não concordo tanto. Quanto a mim, estas máquinas representam apenas mais uma forma de fazer algo. Admito que a IA possa até fazer com que mais argumentistas se aventurem a fazer um livro de BD (ou ilustrado) que, de outra forma, não conseguiriam. Todavia, continuará a ser necessário o trabalho humano. 

Na música, as mesas de loops de ritmo também iriam acabar com os bateristas, não era? Ou os ProTools e as suas enormes bibliotecas de instrumentos em MIDI também iriam acabar com os instrumentistas não era? Também se dizia que os condutores da UBER iriam acabar com os taxistas e continuo a ver táxis em todo o lado, certo? As coisas novas geram sempre algum medo, mas daí a dizermos que uma tecnologia, ainda por cima artística, vai exterminar com uma profissão já existente… vai uma longa distância. 

Até porque o facto de uma tecnologia assegurar que eu consigo ter desenhos para ilustrar as minhas histórias, não pressupõe que, depois, os leitores as apreciem. A palavra final, em termos comerciais, cabe sempre ao mercado. E se, por ventura, os leitores preferirem ilustrações feitas por humanos, então essas serão mais apreciadas e valorizadas, comercialmente falando. Aliás, e tal como já escrevi anteriormente, continuo a achar que a grande razão da polémica pela utilização de ilustrações geradas por IA é o facto de o resultado final ser verdadeiramente impressionante. Estou certo que se a qualidade do output da IA não fosse tão boa, não haveria qualquer polémica.

Portanto, e como julgo ter deixado claro, ainda me é difícil ter uma opinião fechada sobre o tema. Pelo menos, para já.

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
E focando-me mais em A Polaroid em Branco, há que dizer que Mário Freitas merece, em primeiro lugar, o meu louvor pela tentativa, pela coragem e pelo passo em frente que deu, ao atirar-se para fora de pé e proporcionar-nos esta primeira BD feita com o auxílio da Inteligência Artificial.

Este é um curto livro de 16 páginas em que o autor nos convida a uma divagação narrativa – chamemos-lhe assim - de teor onírico sobre a procura de uma identidade e a tentativa de rutura com aquilo que é suposto ser, só porque é o pré-estabelecido. Aquilo que os outros esperam de nós e aquilo que nós mesmos queremos ser. É um bom mote, diria.

A partir daí, o autor leva-nos para um mundo abstrato, onde o bigode e a posterior ausência e procura pelo mesmo simbolizam esta tal sede de autoconhecimento e de identidade. Ao longo da caminhada do protagonista, surge uma peculiar e algo sinistra Fada dos Bigodes que, narrativamente falando, funciona bem, ao permitir ao protagonista interessantes diálogos e a presença de um metatexto naquilo que nos é dado, não só pela personagem principal como, e especialmente, pela própria Fada dos Bigodes.

Em termos de argumento, e sabendo de antemão que foram as experiências visuais de Mário Freitas que o levaram a construir, posteriormente, uma história que ligasse todos os pontos, acho que este A Polaroid em Branco encerra em si um belo exercício criativo. Logicamente, isto também faz com que, de certo modo, a história possa parecer algo "amarrada" e que navega ao sabor da corrente visual.

Talvez por isso, a história deste A Polaroid em Branco acabe por ser, e como o próprio autor o admite, no início do livro, um certo devaneio narrativo. O texto é bom e bem tecido, e está carregado de mensagens subliminares e vários piscares de olhos. Alguns deles, como algumas frases que parecem autobiográficas ou a referência a Tintin, são mais facilmente percetíveis. No entanto, há depois um conjunto de afirmações ou referências que, certamente, por serem mais abstratas ou menos lineares, servirão muito mais como capricho criativo do próprio autor do que como reais complementos à história que nos é dada.

Visualmente, temos a presença de todo um universo imagético que achei deveras interessante. Fica clara a inteligência do autor em ter sabido fazer uma história que pudesse navegar ao bom sabor, algo do fantástico e do abstrato, que as imagens nos passavam. A história encaixa bem nas imagens e as imagens encaixam bem na história, por assim dizer.

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
Em termos de desenho, podemos então dizer que o resultado é muito interessante. Estranho, mas no bom sentido da palavra. Estranhamente interessante ou interessantemente estranho. Há vários casos em que os bigodes parecem tão reais e palpáveis, que parecem feitos a partir de colagens, remetendo-me, por exemplo, para alguns trabalhos de Dave Mckean. Também em termos de cor, onde predominam os amarelos e os laranjas, a obra assume um tom bastante surrealista. 

Posso dizer que o grande desafio de utilizar um software de Inteligência Artificial para gerar uma história em banda desenhada será, sem sombra de dúvidas, o alcance – ou não – de um fio condutor imagético, isto é, que de umas imagens para outras fiquemos com a noção de que estamos a ler uma história com princípio, meio e fim, e com uma sequência constante em termos visuais. Acho que, bem vistas as coisas, Mário Freitas consegue com este A Polaroid em Branco, superar essa dificuldade maior.

É verdade que há alguns casos onde a arte visual talvez mude de forma mais abrupta do que aquilo que seria recomendável. Contudo, e como o autor teve a inteligência de escolher uma história do universo onírico e surrealista, acaba por ser mais fácil de aceitar esta certa heterogeneidade gráfica. Estes desenhos não serviriam para contar uma história mais mundana, mais terra-a-terra. Mas servem bem para navegarmos por este universo abstrato.

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
Mas se Mário Freitas consegue nesta obra um bom equilíbrio entre argumento e ilustrações oníricas, devo dizer que foi na forma como a obra foi planificada - e, com isto, refiro-me ao desenho das páginas - que me senti mais defraudado. Especialmente porque sei que o autor muito valoriza este tipo de questões. 

Explico: são muitas as páginas onde - inexplicavelmente, diria - Mário Freitas opta por não colocar divisões ou margens entre vinhetas e creio que isso faz com que haja uma menor orgânica entre as mesmas, ficando a parecer que as ilustrações foram ali coladas sem grande preocupação. No par de páginas em que a Fada dos Bigodes se dá a conhecer, o autor colocou (e bem) margens brancas entre as vinhetas. E é nestas duas páginas que o arranjo de página melhor funciona. Infelizmente o autor não o volta a fazer. E aquilo que mais temos são largas margens pretas verticais, mas sem margens entre vinhetas. Ou quando há divisão entre vinhetas, aparece apenas um fino traço preto. Faz com que tudo pareça muito “all over the place”, claustrofóbico e desarrumado. 

Conhecendo o autor como conheço, e a sua (bendita) preocupação com o detalhe, custa-me a crer que este desenho das páginas não tenha sido bem pensado por Mário Freitas. Talvez tenha sido um experimento seu ou talvez tenha pretendido passar algo ao leitor, que eu não fui capaz de alcançar. Seja como for, é a minha principal “queixa” em relação ao livro.

A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books
Em termos de edição, o livro apresenta capa mole com agrafos e um bom papel couchê. Convém dizer também que este é o livro que inaugura uma nova chancela do autor, intitulada Mário Breathes Comics. Aparentemente, o autor terá outras ideias de histórias curtas de banda desenhada para lançar nos próximos tempos. Que venham elas.

Ainda sobre a edição, posso dizer que achei curiosa a não tão breve explicação que o autor dá sobre a forma como usou a Inteligência Artificial nesta obra. Tendo em conta o processo pioneiro para o mercado português, acho que foi uma boa explicação mesmo que, de certa forma, o autor me parecesse estar a justificar-se. Não creio que o autor o tivesse que fazer. É legítimo - e digno de respeito - o trabalho do autor neste livro.

Em suma, acredito que este A Polaroid em Branco vale mais pelo statement que traz consigo e por ser um livro que, aconteça o que acontecer, ficará na história da banda desenhada portuguesa como a primeira BD ilustrada com o auxílio da IA. Aparte esse grande feito, é bom que o autor Mário Freitas, que andava meio afastado da criação enquanto argumentista, volte ao lançamento de novas histórias. Devido ao seu carácter experimental, não será um livro perfeito. Mas, tal como tudo aquilo que é pioneiro, traz consigo essa mesma valência de ser o primeiro em algo o que, certamente, influenciará novas tentativas de outros autores no futuro. Que assim seja.


NOTA FINAL (1/10):
7.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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A Polaroid em Branco, de Mário Freitas - Kingpin Books

Ficha técnica
A Polaroid em Branco
Autor: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Páginas: 16, a cores
Formato: 16,5 x 23,5 cms
Lançamento: Outubro de 2022

1 comentário:

  1. Projecto projectomas acho que faria mais sentido numa antologia com outros autores nacionais do neste "magro" opúsculo. No entanto percebo a intenção do Mário Freitas...

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