segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Análise: Extases - Livros 1 e 2

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Embora já tivesse lido uma breve parte desta obra em pdf, só mais recentemente pude comprar e ler os dois volumes de Extases, que compõem uma impactante obra biográfica onde o seu autor, JeanLouis Tripp, responsável por outros trabalhos magníficos como Armazém Central, O Meu Irmão ou Un Père, nos conta a sua caminhada sexual. E, posso dizer-vos que, para não fugir à regra, Extases (também) é verdadeiramente fantástico!

Isto porque estamos perante uma autobiografia gráfica sem precedentes, um mergulho profundo e desarmante na vida íntima e sexual de alguém. A história começa com as primeiras descobertas do autor, ainda adolescente, quando o corpo e o desejo começam a ser território de fascínio e curiosidade. Tripp relata as suas experiências iniciais de autodescoberta, as primeiras masturbações, as primeiras fantasias e o confronto entre o prazer e a culpa, temas universais mas raramente tratados com tanta franqueza e serenidade.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
JeanLouis Tripp vai ao fundo da questão, não descrevendo apenas o que fez, mas aquilo que sentiu quando o fez. Começamos pelos primeiros tempos em que, na adolescência, explorava o seu corpo, até à sua primeira namorada mais "a sério", e em idade adulta, que já conhecemos de O Meu Irmão, Caroline, com quem, naturalmente, o autor vive momentos tórridos de experimentação. 

Com o avançar da narrativa, o leitor acompanha o jovem JeanLouis no seu percurso de amadurecimento sexual: as primeiras namoradas, os primeiros encontros verdadeiramente íntimos, e o modo como o sexo se vai tornando não apenas uma prática física, mas também um espaço de aprendizagem emocional e existencial. Tripp mostra-se sempre honesto, por vezes cru, outras vezes ternurento, nunca fugindo ao desconforto que o confronto com o próprio desejo pode provocar.

Com Caroline - nome fictício que, por sua vez, também o era em O Meu Irmão - o autor mergulha em experiências de liberdade sexual, desde as práticas a dois até aos encontros coletivos, passando por fetiches e dinâmicas pouco convencionais. É nesse terreno que Extases começa verdadeiramente a distinguir-se: não há julgamento, não há moralismo, há apenas a vontade sincera de compreender e narrar a própria vida.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Essas experiências culminam num ponto alto que, curiosamente encerra cada um dos dois livros, que é a participação em orgias, momentos que percebemos ser transformadores e fundadores da sexualidade adulta de Tripp. Há um "antes" e um "depois" a partir da primeira vez em que, de um modo quase inesperado, Tripp participa com a sua namorada numa orgia entre amigos. 

Naturalmente, e conforme a sensibilidade e experiência de cada leitor, muitas das cenas retratadas nesta obra serão excitantes de acompanhar, embora não me pareça, ainda assim, que a preocupação do autor seja a de criar desejo no leitor, mas sim a de comungar, a de partilhar a sua intimidade. Há um certo humor a pontuar tudo aquilo que nos é contado, embora também haja momentos de algum sufoco onde certas situações nos deixam desconfortáveis. Assim é a vida, diria, e a sexualidade, por conseguinte.

A narrativa ganha, pois, um tom quase filosófico, com o autor a questionar o significado do desejo, o peso da fidelidade, a noção de partilha e até o próprio limite entre amor e prazer. Em termos de estrutura narrativa, os dois volumes funcionam como um contínuo, uma espécie de díptico confessional. O primeiro volume centra-se mais na juventude e na descoberta, e o segundo mergulha na maturidade e nas questões da liberdade, da identidade e da partilha. 

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
É uma aposta verdadeiramente ousada, não apenas por ser uma banda desenhada sobre a vida sexual de alguém - algo já menos invulgar nos dias de hoje - mas pela forma como o autor a concebeu, que revela uma honestidade quase desconcertante. Enquanto muitos autores se expõem ao falar de traumas familiares, doenças ou perdas, Tripp abre o véu sobre a sua intimidade sexual com um detalhe e uma lucidez raros. 

O resultado é uma obra que, ao mesmo tempo, desconforta e conforta. Há momentos em que o leitor se sente cúmplice, outros em que se sente intruso. Mas é justamente esse vaivém entre proximidade e distância que confere a Extases o seu poder. A vulnerabilidade de Tripp torna-se espelho para a vulnerabilidade do leitor, e o sexo - tantas vezes tabu - revela-se um território de comunhão, não de escândalo.

Não é um livro sobre o amor, como o próprio autor sublinha, mas sobre o sexo. Não obstante, em cada página, respira-se uma humanidade profunda, pois a nudez é mais espiritual do que física. Apesar de encontrarmos corpos em todas as suas formas - há uma quantidade enorme de seios, pénis, vaginas, rabos, esperma, pelos púbicos, neste livro - a obra nunca é pornográfica. Nem sequer erótica. O erotismo existe, sim, mas como consequência da verdade do relato, não como artifício para provocar excitação. Não esperem, portanto, performances sexuais fantásticas das personagens, dignas de um filme pornográfico, ou mamas ou pilas de tamanho gigante - a não ser nas alturas em que o órgão sexual masculino está propositadamente exagerado para fins humorísticos ou narrativos.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Um dos aspetos mais notáveis de Extases é o equilíbrio entre humor e desconforto. Há situações caricatas, embaraçosas, que o autor retrata com uma auto-ironia saudável, sem nunca cair na vulgaridade. Outras passagens, contudo, são intensas e tocantes, sobretudo quando expõem momentos de dúvida, de rejeição ou de desorientação emocional. Tripp entende que a sexualidade não é linear nem serena. Ao invés, ela é contraditória, e é dessa contradição que nasce a sua autenticidade.

O desenho é franco, expressivo, com um traço a preto e branco semi-caricatural que combina o humor e a melancolia. Bem ao jeito daquilo que o autor nos oferece nas suas obras O Meu Irmão e Un Père. Os desenhos diretos criam uma sensação de proximidade, como se estivéssemos a ouvir um amigo a contar-nos a sua história, num tom de confidência, que funciona muito bem. 

Posso dizer que as duas coisas menos positivas que posso apontar à obra é que, no segundo livro há uma certa sensação de repetição no relato, aqui e ali, e que o final de cada um dos livros poderia ser mais marcante, deixando-nos um bocado, e já que falamos de sexo, sem o "final feliz" que todos os leitores gostariam. Mas são coisas pequenas numa obra que faz tanto e tão bem.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp
Outro tema que me merece comentário é que esta é uma obra que vai de uma forma incrivelmente profunda ao âmago da sexualidade masculina. Numa altura em que tantas obras - de literatura, de banda desenhada, de cinema, de música... you name it - tentam perceber, respeitar e homenagear o universo íntimo feminino e as suas lutas travadas - e que bom isso é! - também é bom ver que há obras (pelo menos esta!) que mostram o lado masculino da equação e o dessa "força da sexualidade masculina" que não é mais do que, quase sempre, um conjunto de inseguranças e fraquezas mascaradas de "forças". Se tivermos em conta que "os homens não falam deste tipo de coisas" este Extases até é capaz de consistir numa das maiores aberturas da caixa de pandora sobre a sexualidade masculina nos mais diversos meios artísticos. Homens que lerem Extases identificar-se-ão, sem o admitirem, com um sem número de coisas deste livro; e mulheres que lerem Extases ficarão certamente boquiabertas ao tomarem contacto com uma miríade de novas coisas sobre a sexualidade masculina que, provavelmente, não ousariam sequer imaginar. 

Falar da sexualidade, com tanto detalhe e pormenor, incluindo fetiches, incapacidades, ou revelando aventuras que muitos de nós - passando por elas - não teríamos a coragem de o fazer nem a melhores amigos, revela algo de ousado. Algo que, espero, os leitores portugueses estejam dispostos a abraçar quando estes dois livros forem editados em Portugal. E espero que o sejam. Não há qualquer confirmação, pelo menos por agora, de que tal vá acontecer, mas deixem-me manter vivas as minhas esperanças. É, aliás, a minha (nova) bitola para aferir a maturidade de um mercado de banda desenhada. Quando me disserem: "O mercado deste país ou daqueloutro está muito desenvolvido...", o meu comentário seguinte será: "Sim, sim... mas nesse mercado desenvolvido de que falas já publicaram o Extases do Tripp?". É preciso termos leitores e editores evoluídos, para termos este livro publicado.

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Do ponto de vista cultural, Extases representa, portanto, um marco na banda desenhada europeia contemporânea. Ao tratar o sexo com esta frontalidade e profundidade, Tripp eleva o género autobiográfico e desafia os limites do que se considera “publicável” ou “aceitável”.

Falando de edição, o trabalho da francesa Casterman é em cama mole, com badanas, e um bom tratamento de verniz localizado. No interior, o papel é baço, de boa qualidade, e há textos introdutórios do autor em ambos os livros.

Concluindo este texto que já vai longo, Extases é, no fundo, uma celebração da vida. Um tour de force narrativo e artístico que nos lembra que a sexualidade é um dos fios mais poderosos que tecem o ser humano. JeanLouis Tripp oferece-se ao leitor por inteiro - corpo, alma e traço - e o resultado é uma das obras mais sinceras, desconcertantes e, paradoxalmente, mais reconfortantes da banda desenhada contemporânea. O autor convida-nos, assim, a olhar para o sexo como parte essencial da experiência humana, não como um apêndice ou uma vergonha a esconder. Extases mostra-nos que o prazer é também uma forma de conhecimento de nós próprios, do outro e do mundo. É um percurso de aprendizagem, feito de erros, descobertas, fantasias, e, acima de tudo, de uma curiosidade insaciável pela vida. Consequentemente, ler Extases é, de certa forma, confrontar a nossa própria relação com o desejo. Há quem se identifique, quem se choque, quem ria ou se emocione. O livro não procura consensos... procura sinceridade. E é precisamente por isso que funciona tão bem: porque é impossível sair dele indiferente.

NOTA FINAL (1/10):
9.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Fichas técnicas
Extases #1
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 248 páginas, a preto e branco
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 18.7 x 26 cm
Lançamento: Setembro de 2020

Extases - Livros 1 e 2, de JeanLouis Tripp

Extases #2
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 368 páginas, a preto e branco
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 18.7 x 26 cm
Lançamento: Novembro de 2020

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