Bem, não será a série completa, pois parte importante da mesma está contida na obra Pulsar, já analisada aqui no Vinheta 2020, mas será sobre a restante parte desta saga extraída da mente de Brian Michael Bendis de que hoje vos falo. Esta era uma série que eu já tinha lido "aos bocados", à medida em que os volumes iam sendo publicados por cá pela G. Floy Studio, mas que recentemente recebeu uma leitura completa da minha parte. Li, portanto, os dois grandes arcos da história: o primeiro, em quatro volumes, denominado Alias, e o segundo, composto pelos três volumes: Sem Limites, Os Segredos de Maria Hill e O Regresso do Homem Púrpura.
O primeiro arco, Alias, surgiu como uma espécie de "manifesto" da linha MAX da Marvel que procurava oferecer aos seus leitores histórias mais adultas, violentas, cruas e desprovidas da moral típica que costumamos encontrar nas histórias clássicas de super-heróis. Refrescante, portanto! Jessica Jones, uma ex-heroína fracassada, tenta sobreviver como investigadora privada, metendo-se em casos que a arrastam para os meandros do universo Marvel. Não é uma narrativa linear de ascensão heroica, mas sim de sobrevivência psicológica. Assim sendo, o leitor depara-se mais com o resultado negativo de se ser super-herói, do que com as coisas boas do que daí poderiam chegar, lembrando, por isso, algumas das reflexões que nos foram dadas em Watchmen, de Alan Moore, por exemplo.
Jessica Jones é uma personagem que tenta lidar com o peso do passado, com traumas irreparáveis e com uma sensação de alienação constante. As investigações de Jessica entrecruzam-se com conspirações e com figuras maiores da Marvel, mas a essência da série está sempre centrada nela: uma mulher a tentar encontrar algum equilíbrio numa vida dominada por erros, vícios e memórias insuportáveis.
Já no segundo arco, apenas denominado de Jessica Jones, Bendis expande o mundo de Jessica, oferecendo-nos uma personagem ainda mais real e plausível, que, além de investigadora privada desencantada, também é mãe, parceira e alguém com responsabilidades afetivas reais. O peso emocional aumenta, sobretudo porque o passado continua a bater-lhe à porta. A intrusão de figuras como Maria Hill e o regresso inevitável do carismático vilão Homem Púrpura - um belo vilão, deixem-me que vos diga - servem para mostrar que, mesmo tentando construir uma vida normal, Jessica não pode nunca escapar totalmente da sua história e do seu passado. Será que algum de nós o pode fazer?
Particularmente, O regresso do Homem Púrpura, o último dos 7 livros de que vos falo, marca o auge dramático da história de Jessica, levando a que a personagem se confronte com o trauma que moldou a sua vida e, ao mesmo tempo, oferecendo ao leitor uma exploração intensa da natureza do abuso psicológico. O tom é ainda mais denso e mais íntimo e acaba por conseguir causar impacto nos leitores.
É justo dizer que um dos maiores méritos da série é a criação de uma protagonista profundamente humana. Jessica Jones não é apenas uma ex-super-heroína; é uma mulher cheia de falhas, de vícios, de traumas e de momentos de autodestruição. Essa fragilidade aproxima o leitor, que facilmente se identifica com problemas tão mundanos como a solidão, as dificuldades financeiras ou as relações falhadas.
Bendis tem aqui um raro talento: criar uma narrativa de super-heróis onde o “super” quase desaparece. O foco está na personagem, não nos poderes. É nesse sentido que Jessica se torna mais interessante do que muitas figuras clássicas da Marvel, pois a sua humanidade é o que a define. Outro mérito da série é a forma como Bendis insere Jessica no universo Marvel sem nunca a deixar perder individualidade. As suas interações com figuras conhecidas (como Luke Cage ou Maria Hill, entre várias outras) não a reduzem a secundária, mas antes reforçam a sua posição única: alguém que vive nesse universo, mas nunca se confunde com ele.
Porém, essa insistência numa narrativa tão fechada sobre si própria (também) traz alguns problemas. A história por vezes parece circular, como se rodasse em torno do mesmo trauma sem conseguir avançar realmente. Há uma intencionalidade nisso, pois afinal de contas o trauma é algo cíclico, mas narrativamente gera uma sensação de estagnação que pode cansar o leitor. Especialmente se fizerem como eu fiz e (re)lerem os 7 volumes de uma só vez.
Outro ponto problemático está na repetição de certos gimmicks narrativos. Bendis utiliza extensivamente diálogos longos, repartidos em múltiplas vinhetas quase idênticas, com variações mínimas na expressão das personagens ou nos enquadramentos utilizados. Visualmente, esta técnica remete para o cinema independente, criando uma cadência muito natural que nos faz amá-la, pela sua originalidade, nas primeiras vezes. Mas, por ser usada em excesso, perde frescura e torna-se, quanto a mim, enfadonha.
Apesar disso, esses diálogos extensos são também uma das marcas mais fortes da série em termos estilísticos, reconheço, pois aproximam a banda desenhada da oralidade, permitindo que as personagens ganhem voz própria, quase audível.
A colaboração de Michael Gaydos é essencial para o efeito. O seu traço, que privilegia a sombra, a textura e o realismo das expressões faciais, coloca a narrativa num registo noir. Os ambientes urbanos, sombrios e quase claustrofóbicos reforçam a sensação de isolamento de Jessica.
A comparação com Sean Phillips, ilustrador de séries como Criminal ou Reckless é, pelo menos para mim, inevitável: ambos os artistas trabalham uma estética noir com foco na densidade emocional das personagens. Tal como Phillips, Gaydos não se interessa pelo espetáculo visual, mas pela atmosfera. O olhar cansado das personagens, as rugas, as sombras projetadas... tudo isso acaba por comunicar mais do que qualquer cena de ação.
É precisamente esse minimalismo que sustenta o tom realista da série. Ao abdicar de grandes explosões visuais, Gaydos aproxima a banda desenhada da linguagem do cinema de autor, por um lado, e, por outro, acaba por criar uma estética própria que serve como contraponto à tradição colorida e vistosa da Marvel.
Entre o primeiro e o segundo arco nota-se uma clara evolução: se no primeiro ciclo a narrativa está quase inteiramente centrada no trauma de Jessica e na sua tentativa de sobrevivência pessoal, no segundo há uma expansão para temas de maternidade, intimidade e responsabilidades afetivas, que tornam a personagem mais tridimensional. Bendis amadurece a escrita, explorando menos a origem do trauma e mais as suas consequências no presente, enquanto Gaydos mantém a estética noir, mas com maior fluidez narrativa, conferindo às páginas um ritmo mais coeso. É como se, no primeiro arco, conhecêssemos a ferida e, no segundo, víssemos as cicatrizes a moldar a vida de Jessica.
Em termos de edição, todos os livros apresentam capa dura baça, bom papel brilhante no interior e uma boa encadernação e impressão. Alguns livros incluem capas variantes como extras e outros incluem textos introdutórios ou conclusivos de Bendis, bem como alguns esboços de Gaydos.
Em conclusão, os sete livros de Bendis e Gaydos sobre a história de Jessica Jones formam uma das obras mais adultas e consistentes da era moderna da Marvel. O arco inicial em Alias estabelece as bases de uma personagem realista, traumatizada e fascinante e o arco final da série aprofunda ainda mais essa complexidade, sobretudo no confronto com o Homem-Púrpura. Apesar das repetições narrativas e de alguns excessos estilísticos, o resultado é uma obra marcante, que alia introspeção psicológica, estética noir e um olhar profundamente humano sobre o mundo dos super-heróis, sem que seja uma BD especialmente direcionada para os fãs de super-heróis. É bem mais do que isso, acreditem.
NOTA FINAL (1/10):
8.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens dos álbuns. www.instagram.com/vinheta_2020
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Jessica Jones - Alias - Vol. 1
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 216, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Junho de 2016
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Novembro de 2016
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Agosto de 2017
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Novembro de 2017
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Janeiro de 2019
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Agosto de 2019
Autores: Brian Michael Bendis e Michael Gaydos
Editora: G. Floy
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Novembro de 2019
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ResponderEliminarDizer que o Bendis procura criar uma voz com as personagens, por muito que uns achem que é verdade e é bom, eu acho que ele é um péssimo argumentista.
ResponderEliminarDo ponto de vista técnico, não faz qualquer sentido essa brutalidade de nº de balões de fala. Já vi falar sobre isso em diversos livros, mas lembro-me do Will Eisner falar com o Miller como duas vinhetas é um momento e que devia fazer parte de um pergunta + resposta + pergunta (ou combinações) no máximo.
E além da péssima técnica que destrói a arte com balões que não param, o bom diálogo não serve só para caracterizar as personagens. Quando se compara o Bendis com o Tarantino, está-se a esquecer que o Tarantino avança a narrativa com o diálogo. Parece ser shit-chat, mas os mais atentos vão ficar tensos, rirem ou chorem porque os diálogos são apontados a um final que não sabemos qual é.
O diálogo à Bendis é jogar ao telefone riscado - sou o Alberto. quem é que disseste mesmo que eras? O Roberto? Não. O Alberto o primo da Rute. A Rute. Há. Já sei. Está a chover.
Enfim... E se o Bendis quisesse fazer estes diálogos bem feitos, como seria? Com um breakdown das vinhetas, em que terias naturalmente mais vinhetas, as personagens teriam de estar a fazer coisas (o Tarantino mete as personagens a comer por ex, a dançar, etc).
Pois.