Depois do fantástico Companheiros da Penumbra, uma das minhas bandas desenhadas portuguesas preferidas dos últimos anos, eis que Nunsky, o autor, regressou recentemente ao lançamento de nova banda desenhada.
Desta vez, decidiu adaptar para BD o conto clássico The Wendigo, da autoria de Algernon Blackwood, publicado originalmente há bem mais do que 100 anos, em 1910, no volume The Lost Valley and Other Stories.
A narrativa desta curta história situa-se nas remotas florestas do norte do Ontário, no Canadá, num cenário severo, gelado e solitário, onde a natureza é selvagem e indiferente à presença do Homem e em que o sobrenatural vai(?), pouco a pouco, erodindo a sanidade das personagens que aí procuram fazer uma expedição para caça aos alces.
Os protagonistas são Simpson, um jovem estudante de teologia, o seu tio, o Dr. Cathcart, chefe da expedição, os guias Hank Davis e Joseph Défago e o cozinheiro índio, Punk, que permanece no acampamento principal enquanto os restantes quatro homens se dividem para prosseguir a caça ao alce.
O ambiente é taciturno, sombrio e os silêncios são entrecortados pelo barulho de alguns animais não tão distantes assim, o que convida ao medo e à insegurança, especialmente do protagonista Simpson. A viagem torna-se, pois, cada vez mais inquietante, quando os quatro homens se separam em dois grupos: Simpson e Défago por um lado, e Hank Davis e o Dr. Cathcart por outro.
A escuridão que persegue os homens é meio convite andado para que eles se percam, claro. E a meio duma noite, assombrado pelas sensações de algo estranho, como odores e estranhos sons no vento, bem como vislumbres ou pressentimentos, Défago levanta-se e sai da tenda onde dormia para tentar confrontar esses chamamentos que parece estar a receber. Uma abordagem clássica de conto de horror, diria. Mas importa dizer também que todas estas coisas estranhas, pródigas em histórias de terror, são-nos dadas de um modo pouco definido e nunca totalmente explicado. São apenas meras sugestões. O que aumenta o clima de suspense que impregna toda a história e que me agradou especialmente.
Défago acaba por desaparecer misteriosamente durante algum tempo, o que leva ao aumento da sensação de sufoco vivida pelo protagonista. Contudo, é quando Défago regressa que as coisas ficam ainda mais estranhas, já que o homem parece estar mentalmente abalado, quase sem memória e profundamente modificado (física e psicologicamente) pelo que viu ou experienciou. Terá encontrado a criatura de Wendigo ou não passará isso de uma mera "história da carochinha"? Um mito sem fundamento? Mais não digo, para não estragar surpresas a eventuais interessados que se iniciem na leitura da obra depois de lerem o meu texto.
Mas posso reforçar que aquilo que mais aprecio nesta obra é que a mesma funcione mais em em torno da atmosfera do que duma história mais do foro da fantasia. Acaba por ser mais madura e ter mais capacidade de "aterrorizar" o leitor - pelo menos, na minha opinião - esta forma de deixar o temor por algo a pairar no ar, atrasando ou anulando tudo o que é explícito. É um horror “sussurrado” que perturba mais pela sugestão do que pelo visível.
Através de uma adaptação com uma centena de páginas, Nunsky consegue captar muito bem essa ideia de terror ambiental e sugerido da obra original, o que será um dos maiores feitos desta obra. Era fácil adaptar esta obra em, por exemplo, 40 páginas de banda desenhada. Menos de metade da proposta de Nunsky. Mas não tenho dúvidas que os sentimentos experenciados pelo leitor dessa opção não seriam tão impactantes como nesta boa solução de Nunsky que, utilizando todas estas páginas, permite que ação seja pausada e que o clime de insegurança sentido pelas personagens e pelo leitor, aumentem uma boa leitura envolvente.
De resto, e no que respeita à fidelidade ao conto original, Nunsky respeita muito bem as principais linhas de Blackwood, tais como o cenário remoto, a natureza como protagonista indireta, a relevância das personagens dos guias, o progresso gradual do horror, a ambiguidade do sobrenatural. Acaba por ser uma tradução visual da narrativa, sem a transformar ou reinterpretar de modo radical, deixando que o leitor conheça a história de Blackwood através de imagens e ritmo gráfico, mas mantendo o mesmo tom sombrio e introspectivo.
Visualmente, o preto e branco utilizado por Nunsky volta a ser um dos pontos mais fortes da obra. O uso de contrastes fortes, sombras densas, silhuetas, neve, árvores, penumbra, e o ambiente gelado da floresta são bem captados pelo seu virtuoso traço. A ambientação visual dos seus desenhos reforça deste modo o suspense, a estranheza e a sensação de que algo está além do visível. O estilo de Nunsky continua a mostrar uma grande maturidade visual e uma dosagem certa entre detalhe e economia gráfica.
Se me posso queixar de algo nesta bela adaptação foi que, como é uma história muito sombria, os desenhos também são logicamente escuros e isso leva a que pareça que toda a ação se desenrola de noite quando, na verdade, isso não acontece, já que a passagem do dia para a noite tem relevância do ponto de vista narrativo. Talvez o autor devesse ter conseguido, através da luminosidade das cenas, ter trabalhado melhor esta questão que, mesmo assim, não é algo que possamos considerar como gritante.
E seja como for, Wendigo, como obra gráfica, é mais um exemplo do bom trabalho que Nunsky tem feito. Neste caso em concreto, não só nos oferece o seu domínio da ilustração em banda desenhada, como tem o mérito de nos trazer uma obra clássica com qualidade estética e literária para o público português.
A edição da Chili com Carne é cuidada e bonita, tendo o livro capa mole, em estilo flexicover, o que dá um certo requinte à edição. No interior, o livro apresenta bom papel baço e uma boa encadernação e impressão.
Sendo o trabalho do Nunsky de tanta qualidade, a única coisa que lamento é que a distribuição dos seus livros seja curta em qualidade e quantidade, tornando as suas obras difíceis de encontrar e apenas disponíveis para uma pequena franja de público que poderia ser bem maior... caso o livro chegasse a mais pessoas, claro está.
Em suma, Wendigo de Nunsky é uma adaptação sólida e fiel do clássico de Blackwood, que consegue transpor a tensão e o suspense da narrativa original para a linguagem da banda desenhada sem perder a sua essência. O traço a preto e branco é cuidado, apelativo e eficaz na criação da atmosfera, reforçando o horror psicológico e o isolamento da floresta canadiana, confirmando o autor português como um criador consistente e confiável no panorama da BD portuguesa, merecendo sem dúvida maior visibilidade.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Wendigo
Autor: Nunsky
Editora: Chili com Carne
Páginas: 104, a preto e branco
Encadernação: Capa mole (flexicover)
Formato: 16,5 x 23 cm
Lançamento: Maio de 2025
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