Foi no passado mês de Setembro que a editora ASA nos fez chegar a segunda obra da autora belga Alix Garin, de quem a mesma editora já por cá tinha editado o belíssimo Não Me Esqueças, que acabou mesmo por vencer o VINHETA D'OURO para a categoria de Melhor Álbum Estrangeiro em 2023.
Eram, portanto, muitas as minhas expectativas para este segundo trabalho da autora, intitulado Impenetrável. Estive recentemente no Museu da Banda Desenhada em Bruxelas, o que me deu a oportunidade de conhecer um pouco mais a fundo a feitura deste trabalho de grande fôlego da autora, que conta com mais de 300 páginas.
E é nessas três centenas de páginas que mergulhamos numa obra profundamente pessoal e autobiográfica, na qual Alix Garin relata, sem filtros, a sua experiência pessoal com o vaginismo que a afetou durante dois anos. Para quem não sabe - e acredito que hoje em dia ainda seja muita gente - o vaginismo é uma disfunção sexual que, devido a causar dores insuportáveis, impede que as mulheres consigam tolerar a penetração. A narrativa centra-se, pois, na reconquista do seu corpo e do seu desejo, por parte de Alix Garin, e mostra como a dor física se pode transformar em sofrimento emocional e psicológico. Imagino que seja um tema muito complexo e frustrante para, em primeiríssima instância, as mulheres, claro, mas também para os seus parceiros sexuais, já que um problema do foro sexual é sempre algo que afeta não uma, mas - pelo menos - duas pessoas. A autora conduz-nos por uma viagem íntima, na qual cada passo da sua recuperação é permeado por vulnerabilidade, coragem e reflexão sobre normas sociais, expectativas e relações afetivas.
Afirmo que a auto-biografia íntima e sexual em banda desenhada parece ser uma tendência mais frequente no meio, pois recordo que ainda ontem vos falei sobre Extases, de JeanLouis Tripp, onde, relembro, nos é mostrada, através de um relato autobiográfico, a forma como o autor viveu/vive a sua vida sexual.
Agora, eis-nos novamente perante uma nova autobiografia em banda desenhada onde somos convidados a conhecer a vida sexual de Alix Garin.
Vida sexual essa que, como podem imaginar, praticamente não existiu durante um longo período de três anos já que, embora Alix tivesse um namorado, Lucas, a sua vida sexual estava congelada, em stand by, devido a esta disfunção denominada vaginismo. Embora, à época, a autora nem tivesse um nome, uma palavra, para aquilo do qual padecia.
Obviamente, a dificuldade de manter relações sexuais provocou-lhe frustração, culpa e isolamento, o que também expõe facilmente o peso que a sociedade atribui à sexualidade feminina e à necessidade de corresponder a certos padrões. Bem, diria que neste barco, as mulheres não estão sós. Embora de forma diferente, também a sexualidade masculina está carregada de expectativas e de uma necessidade de acompanhar os padrões ditos "sãos" e "normais".
Este percurso de descoberta e recuperação de Alix Garin não é linear, mas é narrado com uma honestidade desarmante que cria empatia imediata no leitor. Pelo menos na primeira parte da obra.
Isto porque, mais ao menos a meio do livro, o vaginismo dá lugar à necessidade de Alix se libertar de certas amarras que a prendiam à relação com Lucas. Deste modo, o livro também explora o lado mais amplo das relações humanas e do desejo, não se limitando ao distúrbio físico, mas questionando também como nos relacionamos com o outro, com o amor e com nós próprios. A autora apresenta a tensão entre dependência emocional e autonomia, mostrando que a cura não passa apenas pelo corpo, mas também pelo entendimento e aceitação de limites, desejos e expectativas.
Alix Garin expõe-se de forma arrojada, oferecendo um relato detalhado da sua vida íntima e da forma como o vaginismo tornou a sua intimidade sexual impossível. A dor física, aliada ao peso da culpa e das expectativas sociais, criou em si uma sensação de impotência e frustração que é explorada neste Impenetrável de maneira sensível e crua.
O tema do vaginismo é especialmente relevante e bem-vindo, diria, pois é pouco discutido, ainda mais em banda desenhada. Impenetrável é bem capaz de ser, salvo erro, a primeira obra de grande fôlego de banda desenhada a abordar o tema, tornando visível um distúrbio que afeta muitas mulheres e sobre o qual há pouco conhecimento público e, também, contribuindo para a desmistificação do assunto, ao mesmo tempo que procura oferecer um recurso valioso para quem procura compreensão ou identificação com o tema.
Até porque, e isso é outra das conclusões que podemos aferir aquando da leitura da obra, o livro revela como, em termos médico-clínicos, muitas vezes a própria classe profissional não está preparada para lidar com distúrbios pouco comentados, como disso é exemplo o vaginismo. Talvez por isso se tenha tornado tão difícil a Alix Garin ter encontrado uma voz profissional que a pudesse ajudar e guiar para uma crua tão eficiente quanto possível face a este distúrbio. Mesmo assim, convenhamos que com ou sem apoio externo, o caminho de autodescoberta e autoajuda é sempre essencial.
Narrativamente, a obra é rica e complexa. Alix Garin consegue equilibrar momentos de introspeção, humor e conflito emocional, mantendo o leitor atento à evolução da história. É um daqueles livros que, embora tenha 300 páginas, se lê muito depressa, pois queremos saber aonde nos leva o percurso da autora.
A transição do tema do vaginismo para questões mais amplas sobre relações abertas e autonomia emocional mostra que a narrativa não se limita a um distúrbio, mas expandindo-se além do tema central para refletir sobre escolhas amorosas e crescimento pessoal. E isso leva-me àquele que considero ser o ponto menos positivo na obra: é que o tema do vaginismo, embora central, não recebe, quanto a mim, um fecho narrativo muito concreto. De repente, parece que está tudo bem e que a autora ultrapassou o problema, mas essa revelação é-nos dada com pouco critério, parecendo que a recuperação física e emocional da autora funciona mais como catalisador para mudanças na forma de se relacionar com Lucas. Ainda assim, reconheço, este desfecho também pode ser visto como uma conclusão catártica do ciclo pessoal da autora, oferecendo uma sensação de esperança e continuidade, mesmo que não resolva tudo de forma explícita.
Visualmente, Alix Garin evolui bastante em relação ao seu trabalho anterior, Não Me Esqueças. É verdade que o seu traço se mantém simples, rápido e empático, em linha com o livro anterior, mas ganha bastante mais dinamismo e expressividade. A planificação das pranchas, a ilustração dos estados de espírito da protagonista e as magníficas páginas duplas tornam a leitura mais envolvente e intensa, revelando uma autora mais madura e com mais opções gráfico-narrativas. Os seus desenhos expressivos e apelativos contribuem para transmitir a experiência emocional e física da autora de forma impactante.
Sou, portanto, muito apreciador dos belos desenhos da autora, que geram facilmente empatia com os leitores e que são extremamente expressivos, modernos e carregados de um estilo muito próprio. O tal "signature style", de que tanto falo. Nota ainda para o belo trabalho de cores que, sendo diversas, nuns casos, através de páginas muito coloridas e garridas e, noutras situações, com fundo preto e traço a branco, funcionam sempre muito bem, tornando o livro ainda mais apelativo do ponto de vista gráfico.
A edição da ASA é em capa mole brilhante, com badanas, à semelhança do que fora feito em Não Me Esqueças. No miolo, o papel é baço e de boa qualidade, tal como de boa qualidade também é a encadernação e a impressão da obra.
No seu conjunto, Impenetrável é uma obra corajosa, sensível e visualmente impressionante, afirmando-se como (mais) uma bela aposta da editora ASA, que parece acertar em quase tudo o que ultimamente tem editado. Alix Garin consolida-se neste livro como uma autora de banda desenhada de enorme potencial, mostrando maturidade artística e narrativa. Apesar de alguns pontos em aberto, o livro é um testemunho poderoso, especial e belo, que combina experiência pessoal, reflexão social e qualidade visual, tornando-se, sem dúvida, um dos destaques do ano e um título essencial para quem se interessa por histórias de superação, sexualidade e relações humanas. Recomenda-se!
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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