Com uma aposta séria nas obras de Grégory Panaccione, que este ano já nos deu três belíssimos livros (Um Oceano de Amor, Alguém Com Quem Falar e este novo livro que hoje vos trago), a ASA editou mais recentemente O Homem de Negro, que conta com argumento de Giovanni Di Gregorio e que foi originalmente lançado no seu mercado de origem em 2024. Há pouco tempo, portanto.
Esta é uma história bastante marcante, que ressoa em nós já depois de finalizarmos a sua leitura e que reafirma a qualidade de Panaccione enquanto autor de banda desenhada. "Cada tiro, cada melro" e, pela terceira vez, estamos perante um emocionante livro que, neste caso, se preocupa em falar-nos do abuso a menores.
A história centra-se na vida do pequeno Mattéo, um rapaz que, aparentemente, tem uma vida absolutamente normal. Tem dois pais que o amam, tem um cão, Tommy, de quem é inseparável, e ainda tem um amigo que o acompanha nas atividades na escola, seja na sala de aula, seja a jogar futebol no recreio. O contexto socio-económico em que está inserido também tem tudo de normal.
Porém, Mattéo é uma criança atormentada e, quando a noite cai e é hora de ir para a cama, tem pesadelos com um homem de negro que o faz urinar na cama e procurar abrigo no quarto dos pais. E o que poderia parecer um "excesso de mimo" ou uma simples incapacidade motora é, na verdade, consequência direta do abuso perpetrado por um(a) adulto(a) que assume essa posição que a nós, adultos, nos repugna, mas que, para as crianças, mais frágeis e inseguras, pode representar um autêntico pesadelo que as impede de prosseguir com a sua vida e saudável crescimento. Um autêntico trauma.
E como em todos os traumas, por mais difíceis que possam ser, a atitude certa a fazer é enfrentá-los de frente, com coragem. Assim, também Mattéo percebe que a única forma de se libertar das garras do(a) "homem de negro" é enfrentá-lo(a) de frente. Este confronto não é apenas físico ou literal; trata-se, isso sim, de uma batalha emocional e psicológica que marca a transição do medo à coragem. A narrativa desenvolve-se, pois, de forma a que o leitor acompanhe o crescimento interno do protagonista, tornando a experiência empática e envolvente. É impossível, com o nosso olhar de adultos sãos, não sentirmos pena desta personagem frágil face ao abuso de que é vítima.
Esta é uma história que nos mantém sempre colados à mesma, querendo saber o seu desfecho. Desfecho esse que, devo dizer, naturalmente não será aqui relevado embora fique bastante claro logo a meio da leitura. O que acaba por ser, quanto a mim, uma fraqueza.
O tema central da obra, que é o abuso a crianças por parte de gente adulta, é tratado de forma subtil, mas eficaz. E embora o abuso em questão seja bastante implícito, nunca nos é revelado de forma direta ou gráfica. Isso não invalida que seja, porém, menos chocante ou que o nó na barriga não se nos instale. Esta abordagem subtil permite que o livro seja adequado para leitores mais jovens, enquanto consegue manter, ao mesmo tempo, profundidade suficiente para adultos, mostrando a capacidade dos autores em abordar temas perversos sem um choque visual gratuito.
Tenho lido por essa internet fora muita a gente a dizer que este livro deve ser mantido fora do alcance das crianças. Ora, eu não poderia discordar mais disso. Pelo contrário, considero ser perfeitamente ajustado para crianças. Não digo que seja apenas direcionado a um público infantil, digo que as crianças também o devem ler. É claro que leitores adultos também irão beneficiar da leitura - e se calhar a um nível mais intenso -, mas a forma como a história é construída permite que crianças percebam o caráter errado do abuso e a necessidade de denunciar comportamentos abusivos. E tudo isto devido a esta tal abordagem subtil já mencionada. A narrativa consegue, assim, cumprir uma função educativa e preventiva, sem recorrer a cenas explícitas.
Neste sentido, o livro possui um caráter didático muito relevante. Ensina que qualquer forma de abuso não é normal e deve ser confrontada. Este tipo de mensagem é extremamente pertinente no contexto escolar e familiar, oferecendo aos mais jovens ferramentas cognitivas e emocionais para reconhecer situações de perigo e compreender a importância da denúncia e da proteção pessoal.
Assim, se querem que vos diga, considero que este livro deveria ser comentado e debatido nas escolas portuguesas. Primárias e preparatórias. A forma como aborda o medo, o abuso e o empoderamento pessoal oferece múltiplos pontos de discussão: compreensão de emoções, mecanismos de defesa, confiança em adultos de referência e a importância de enfrentar situações adversas. Um debate estruturado pode, portanto, potenciar ainda mais o valor educativo deste livro.
O trabalho de Panaccione em O Homem de Negro é absolutamente soberbo. A sua arte consegue equilibrar, com uma mestria rara, uma estética bela e delicada, empática ao universo infantil que envolve a vida de Mattéo, com momentos de grande densidade emocional e tensão visual. As cores garridas e o traço rápido e nervoso do autor conferem ao quotidiano do protagonista uma aura de inocência e serenidade, que contrasta de forma magistral com a opressão das cenas em que surge o(a) famigerado(a) "homem de negro". Nesses momentos, o artista não recorre a qualquer excesso gráfico; o horror é sugerido, nunca mostrado, mas sente-se de forma plena através da extraordinária expressividade das personagens, em especial de Mattéo, cujo olhar e postura denunciam medo, impotência e, mais tarde, coragem.
A planificação de Panaccione também é igualmente notável. As ilustrações de dupla página amplificam o dramatismo das cenas mais intensas, criando pausas visuais que mergulham o leitor na dimensão emocional do protagonista. Não é um livro fácil de ilustrar, parece-me, pois exige o domínio do tom e da sugestão, mas o autor supera as dificuldades com nota máxima, demonstrando um controlo absoluto da narrativa visual. E tudo começa, desde logo, com a capa, uma peça gráfica de enorme impacto: elegante no uso do espaço negativo, visualmente harmoniosa e, ao mesmo tempo, cheia de simbolismo, pois antecipa o tom da obra.
Um ponto que talvez pudesse ter sido mais bem orquestrado é, conforme já referi, o desfecho da história do livro que é perceptível bastante cedo, o que diminui o impacto do suspense. É um daqueles casos em que o plot twist so o é para quem estivesse muito distraído mesmo. Talvez os autores pudessem ter explorado este final de forma mais inesperada, reforçando o efeito psicológico da história sobre o leitor.
Outro ponto menos bom é que o final é demasiadamente explicativo. Os adultos percebem facilmente o que ocorreu com Mattéo sem necessidade de tantos detalhes em voz off. Julgo que isso até acaba por quebrar a emoção que passa para o leitor. As explicações extensas são, portanto, mais direcionadas a leitores infantis, para que compreendam a história sem ambiguidades, o que reforça a minha ideia de que o livro (também) é adequado para públicos infantis. Que tenham uma maturidade mínima e uma idade a partir dos 9/10 anos, claro.
Seja como for, não são estas duas questões que impedem este livro de ser mais uma excelente aposta por parte da ASA. Fica, quanto a mim, alguns furos abaixo das outras duas obras do autor por cá editadas até à data, mas continua a ser um livro que recomendo fortemente.
Em termos de edição, e contrariamente a Um Oceano de Amor e Alguém Com Quem Falar, este O Homem de Negro apresenta capa dura. No miolo, o livro tem papel brilhante, de boa qualidade, e uma boa impressão e encadernação.
Em suma, estamos perante uma obra que consegue abordar temas complexos como o abuso e o medo de forma sensível e educativa. A narrativa é suficientemente subtil para crianças, mas suficientemente profunda para adultos, sendo muito mais do que uma história sobre medos infantis ou pesadelos recorrentes: é uma metáfora poderosa sobre o trauma e o silêncio, transformando o terror íntimo de Mattéo num espelho do sofrimento de muitas crianças que vivem situações de abuso e não sabem como pedir ajuda. Assim, esta obra é, sobretudo, um grito por ajuda dirigido à sociedade, lembrando-nos da urgência de reconhecer, ouvir e proteger as vozes mais frágeis.
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Homem de Negro
Autores: Panaccione e Di Gregorio
Editora: ASA
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 205 mm
Lançamento: Setembro de 2025
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