quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Análise: Céleste e Proust

Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet - Iguana - Penguin Random House

Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet - Iguana - Penguin Random House
Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet

Se há apostas ganhas pela (ainda) recente editora Iguana, a decisão de editar as obras da autora francesa Chloé Cruchaudet pode muito bem ter sido o passo mais bem dado pela editora. Chloé Cruchaudet já nos havia impressionado (e muito!) com o espetacular Mau Género e volta a fazê-lo com este Céleste e Proust, que hoje vos trago.

Este livro é inspirado em factos verídicos e apresenta-se como uma delicada e comovente homenagem a Céleste Albaret, a mulher que acompanhou o escritor Marcel Proust durante os últimos anos da sua vida. A autora francesa recupera uma figura que, apesar de discreta, foi indispensável para a criação da monumental obra literária Em Busca do Tempo Perdido. Sendo mais do que uma narrativa biográfica, esta obra é um retrato sensível da cumplicidade entre dois seres que, à sua maneira, se completam. Por um lado, temos o génio introspectivo e frágil, quase irritante, de Proust; por outro lado, somos brindados com a presença silenciosa, firme e devota de Céleste, a governanta do escritor.

Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet - Iguana - Penguin Random House
Chloé Cruchaudet opta por não seguir uma cronologia demasiado rígida neste Céleste e Proust, nem se prender aos factos biográficos, preferindo uma abordagem emocional e intimista. A história não procura, portanto, dissecar a figura de Proust como o escritor consagrado, mas explorar o microcosmos doméstico em que a sua arte (re)nasceu. É nesse espaço, entre frascos de remédios, chávenas de chá e pilhas de papéis, que se revela a força de Céleste. Fica no ar a ideia de que a rotina e o cuidado, gestos aparentemente banais, podem tornar-se fundamentais para a criação artística.

O papel de Céleste é, assim, duplo: toma conta do quotidiano da vida mundana de Proust, assegurando as várias tarefas domésticas, mas também toma conta da própria obra de Proust, incentivando-o, questionando-o e, por vezes, provocando-o criativamente. Inicialmente, Céleste até se apresenta como uma figura submissa aos caprichos de Marcel. Mas, paulatinamente, vai conquistando o seu lugar, impondo as suas próprias regras e tornando-se indispensável na vida do escritor. A sua paciência e compreensão moldam o ambiente de isolamento em que Proust escreve, e é essa dedicação silenciosa que Cruchaudet procura celebrar. Ao colocar Céleste no centro da narrativa, a autora reequilibra o olhar da história literária, lembrando-nos de que por detrás de muitos génios há (sempre?) figuras invisíveis que lhes permitem existir e superar-se.

Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet - Iguana - Penguin Random House
Gostei especialmente dos diálogos deste livro, onde a autora se revela exímia em conseguir captar o tom e o ritmo das conversas entre mestre e governanta, sem nunca cair na caricatura nem na rigidez literária. Há uma naturalidade nas trocas de palavras que revela tanto o humor subtil de Proust como a ternura de Céleste. As pausas, os silêncios e as entrelinhas tornam-se parte da narrativa, permitindo que o leitor sinta a intimidade dessa convivência ao nível de um amor platónico.

Se a história é agradável e cativante, em termos visuais ainda fiquei mais bem impressionado, pelo espetáculo de delicadeza que emana dos desenhos de Chloé Cruchaudet. O traço caricatural e expressivo das personagens contribui para a empatia imediata com o leitor. Mesmo com poucos traços, Cruchaudet tem o mérito de conseguir transmitir uma enorme carga emocional. As expressões de Céleste, entre o afeto e a exaustão, e o olhar febril de Proust, perdido nas suas dores e devaneios, são de uma humanidade desarmante. A simplicidade do desenho é o que lhe confere profundidade. É difícil, diria, encontrarmos desenhos tão belos, sendo igualmente tão simples.


Para esse espetáculo visual, também contribuem as belíssimas aguarelas de Cruchaudet que têm uma leveza que reflete perfeitamente o universo introspectivo e sensível de Proust. As tonalidades suaves, as transparências e as transições fluídas entre cenas criam uma atmosfera quase etérea, como se estivéssemos a folhear as memórias desvanecidas do escritor. Cada página é um exercício de elegância e equilíbrio que merece as minhas vénias.

A autora arrisca também na composição das páginas, evitando os limites convencionais das vinhetas. As imagens fluem de uma para outra, sugerindo o ritmo de uma memória que se dissolve. Há um sentido onírico em muitas pranchas, especialmente nas que evocam os sonhos, o cansaço ou o processo de escrita de Proust , que eleva o livro a um plano poético raro na banda desenhada.

A forma e o conteúdo entrelaçam-se de modo natural, e é nesse ponto que o livro atinge a sua verdadeira genialidade. Cruchaudet não conta apenas uma história sobre Proust... ela recria, graficamente, o espírito da sua escrita.

Céleste e Proust, de Chloé Cruchaudet - Iguana - Penguin Random House
A edição da Iguana, junta num só volume os dois tomos em que a obra foi originalmente lançada, o que é uma escolha bem vinda por parte da editora portuguesa. De resto, a edição é muito bonita, com o livro a apresentar capa dura, texturada. No miolo, o papel utilizado é bom e brilhante - embora, quanto a mim, o tipo de ilustração de Chloé Cruchaudet pedisse mais um papel baço do que um papel brilhante. De resto, a encadernação e impressão são de boa qualidade e há ainda, no final, um texto sobre Marcel Proust e Céleste Albaret, acompanhado de fotografias, aumentando o cariz histórico da obra.

Em síntese, Céleste e Proust é uma leitura profundamente sensível e visualmente arrebatadora que adorei e recomendo totalmente! Chloé Cruchaudet constrói uma homenagem discreta, mas poderosa, à mulher que esteve à sombra de um dos maiores escritores da modernidade. Ao fazer de Céleste a protagonista, a autora repara uma injustiça histórica e convida-nos a refletir sobre a importância do cuidado, da paciência e da presença feminina na arte. É uma obra que, tal como Em Busca do Tempo Perdido, nos lembra que o essencial, muitas vezes, se encontra nos detalhes e nos silêncios. Excelente aposta e, possivelmente, a melhor BD do ano por parte da Iguana!


NOTA FINAL (1/10):
9.6

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica
Céleste e Proust
Autora: Chloé Cruchaudet
Editora: Iguana
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2025


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