quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Análise: O Meu Amigo Kim Jong-Un

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
O Meu Amigo Kim Jong-Un, de Keum Suk Gendry-Kim

A Iguana editou há algumas semanas o mais recente trabalho da autora coreana Keum Suk Gendry-Kim, intitulado O Meu Amigo Kim Jong-Un, que se apresenta como uma incursão documental e gráfica sobre a figura controversa do líder norte-coreano Kim Jong-Un. A autora - cujas obras Erva, A Espera, A Árvore Despida, e Alexandra Kim, Filha da Sibéria já por cá foram editadas (e aqui analisadas) - volta a explorar as feridas da península coreana, mas agora com um enfoque mais direto na biografia e no simbolismo político de Kim Jong-Un. 

O ponto de partida é ambicioso: compreender que tipo de homem se esconde por detrás do ditador, e, através dessa compreensão, lançar uma reflexão mais ampla sobre o poder, a manipulação e o destino dividido das Coreias. Algo que, de um ponto de vista diferente, embora igualmente interessante, também podemos analisar na obra O Ditador e o Dragão de Musgo, de Fabien Tillon e Fréwé, editado recentemente pela ASA. 

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
A narrativa deste O Meu Amigo Kim Jong-Un combina entrevistas, testemunhos e reflexões pessoais da autora, num formato que oscila entre o jornalismo gráfico e a memória subjetiva de algumas personalidades com que a autora se cruzou. Keum Suk Gendry-Kim entrevistou figuras muito distintas, desde jornalistas e amigos de infância de Kim Jong-Un, até desertores e o próprio ex-presidente sul-coreano Moon Jae-In. Essa variedade de vozes confere amplitude ao relato, permitindo perceber as múltiplas camadas que compõem a perceção do regime norte-coreano e de uma forma que procura não ser demasiadamente panfletária, mostrando - ou tentando mostrar - os dois lados da questão. 

No entanto, essa multiplicidade narrativa também é a origem de uma das maiores fragilidades do livro: a ausência de um fio narrativo unificador. De facto, O Meu Amigo Kim Jong-Un dá frequentemente a sensação de ser um livro de fragmentos. Cada capítulo apresenta um tema ou testemunho interessante, mas a ligação entre eles é, por vezes, ténue ou mesmo inexistente. A autora opta por uma estrutura quase episódica, que resulta numa leitura desigual: ora fascinante, ora dispersa. Por exemplo, a incrível história de Pepino, a criança levada clandestinamente para a Colômbia na mochila de um soldado - que, quanto a mim, merecia, por si só, um livro sobre o assunto - é um dos momentos mais cativantes da obra, carregado de emoção e simbolismo. Contudo, surge e desaparece sem grande continuidade, meio perdido neste livro fragmentado.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Em contraste, a longa entrevista com Moon Jae-In quebra o ritmo e o interesse narrativo. A conversa, ainda que politicamente relevante, é apresentada de forma excessivamente literal e sem a densidade emocional que caracteriza os melhores trabalhos de Keum Suk Gendry-Kim. Falta-lhe dinamismo e a leitura torna-se, em certos momentos, monótona, parecendo mais próxima de uma transcrição jornalística do que de uma obra literária ou artística. Esse contraste entre capítulos vibrantes e outros mais áridos reforça a sensação de irregularidade nesta obra.

Além disso, a autora introduz também reflexões sobre a sua própria vida conjugal e a experiência de viver entre a Coreia e a Europa. E embora estas passagens tragam alguma humanidade e proximidade ao relato, acabam por parecer algo forçadas, levando, novamente, a uma quebra com o foco principal da obra. O leitor é constantemente deslocado entre o retrato do ditador, as recordações pessoais e as entrevistas, sem que exista uma linha emocional ou conceptual forte que una tudo.

Outro aspeto que distingue O Meu Amigo Kim Jong-Un das obras anteriores da autora é a sua componente visual. Mas, neste caso, pelas melhores razões. Aqui, Keum Suk Gendry-Kim revela um domínio gráfico mais leve e equilibrado. O uso da cor é uma clara evolução face ao negro dominante e pesado das já supramencionadas obras da autora editadas previamente em Portugal. Neste caso, as páginas respiram melhor, as figuras ganham expressividade e a leitura torna-se visualmente mais acessível. É um livro mais luminoso, mesmo tratando temas sombrios, o que demonstra um amadurecimento estético evidente da autora.

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House
Visualmente, portanto, este é talvez o trabalho mais apelativo da autora. A cor é usada não apenas como elemento decorativo, mas também como ferramenta narrativa: distingue tempos, espaços e emoções com subtileza. As composições de página são mais abertas, o traço mais livre e a disposição gráfica convida o leitor a permanecer em cada vinheta. Continua fiel àquilo que já conhecemos da autora, claro, mas aqui o desenho ganha mais protagonismo, tornando-se a principal força de coesão num livro que, narrativamente, e conforme já referi, nem sempre encontra o seu equilíbrio.

Mas, claro, apesar das fragilidades narrativas, o livro mantém o valor de ser um testemunho gráfico de um tema de relevância mundial. A tentativa de compreender Kim Jong-Un não através do sensacionalismo, mas de uma abordagem humana e contextual, é louvável. Keum Suk Gendry-Kim não procura justificar o ditador, mas entender as condições que o moldaram, e, ao fazê-lo, recorda-nos que a história da Coreia continua a ser uma história de feridas abertas e de divisões que persistem no imaginário coletivo.

A edição da Iguana é, tal como em Erva ou A Espera, em capa mole, brilhante, com badanas. No interior, encontramos bom papel baço e uma boa impressão e encadernação. A edição inclui ainda um posfácio da autora.

Em suma, O Meu Amigo Kim Jong-Un é uma obra ambiciosa, visualmente refinada, mas narrativamente irregular. Falta-lhe a coesão e o impacto emocional de outras obras da autora. Ainda assim, é um livro importante dentro da trajetória de Keum Suk Gendry-Kim. É uma leitura que, mais do que esclarecer quem é Kim Jong-Un, nos confronta com as complexidades da Coreia contemporânea e com o desafio permanente de compreender o outro lado. E, no fim, o que permanece é a “mensagem de urgência pela paz” que a autora explicitamente reivindica.


NOTA FINAL (1/10):
6.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

O Meu Amigo Kim Jong-un, de Keum Suk Gendry-Kim - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
O Meu Amigo Kim Jong-un
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana
Páginas: 288, a cores
Encadernação: Capa mole com badanas
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Setembro de 2025

Sem comentários:

Enviar um comentário