Foi há poucas semanas que António Jorge Gonçalves - um nome grande da banda desenhada e ilustração portuguesa, com a sua obra mais marcante, quiçá, a ser a Trilogia Filipe Seems - nos fez chegar o seu mais recente livro, intitulado O Tempo do Cão, em que faz parceria com o escritor angolano Ondjaki.
E embora seja apresentado pela editora Caminho enquanto "novela gráfica", este pequeno livro de bolso está mais perto de ser um híbrido entre a poesia - ou a prosa poética - e a ilustração. Com alguns bons momentos, é certo, e com uma premissa com bastante potencial, o livro apresenta-se de tal forma abstrato que a sua leitura - quer na componente textual, quer na componente imagética - se torna difícil , chegando à exasperação em vários momentos.
A história até parte de um facto verídico e histórico bastante interessante. Entre as várias lutas travadas pelo célebre Che Guevara, uma delas foi no Congo, onde o revolucionário argentino ajudou os independentistas congoleses a lutarem pela sua libertação do regime opressivo que controlava as lides do país. Particularmente, rezam os relatos, quando Che Guevara esteve junto ao lago Tanganica, um cão vagabundo apareceu do nada e caiu nas boas graças de Che Guevara que prontamente o adoptou. Ora, é a partir daí, desse relacionamento entre homem e cão, que Ondkaji parte para uma narrativa curiosa e interessante, que tinha tudo para agradar a um vasto número de gente.
Infelizmente, O Tempo do Cão é um livro que, tentando aventurar-se por um terreno filosófico e alegórico interessante, com a narrativa a dar voz ao discurso de Che Guevara e do cão em simultâneo, acaba por se perder na sua própria ambição. A proposta de associar a figura de Che Guevara a um cão – símbolo de fidelidade, revolução e instinto – poderia render à obra uma narrativa instigante, mas, ao longo das páginas, o que se vê é um texto que tropeça na sua própria complexidade e se torna excessivamente abstrato, sem oferecer ao leitor um fio condutor suficientemente claro. Há momentos em que a narrativa parece mais uma colagem de ideias soltas do que uma história coesa.
Com efeito, a relação entre Che Guevara e o cão, que poderia ser um dos elementos mais interessantes da obra, acaba por se diluir num texto que se recusa a estabelecer qualquer linearidade. A figura revolucionária de Che Guevara perde-se num labirinto de abstrações, tornando-se um mero conceito vago em vez de uma presença forte e significativa, que nos possibilite uma nova camada de interpretação sobre a mítica figura histórica. Está-se sempre à espera de chegar a algo grandioso que, lamentavelmente, acaba por nunca chegar.
Para tal, as ilustrações de António Jorge Gonçalves também não contribuem positivamente, diga-se em abono da verdade. Feitos com tinta branca sobre páginas de cor azul, relembrando os desenhos arcaicos a corretor que os adolescentes do meu tempo faziam nos muros da escola secundária, os desenhos do autor seguem a mesma linha do texto: um abstracionismo que, em vez de ampliar o impacto da narrativa, torna a experiência ainda mais hermética.
Há alguns momentos de beleza visual, onde as formas sugerem atmosferas oníricas e instigantes - gostei especialmente do "cão-homem" ou do "homem-cão" - mas, no geral, a escolha estilística contribui pouco para a compreensão da obra. São vários os exemplos em que não se percebe, sequer, o que representa determinada ilustração. Em vez de dialogar com o conteúdo de maneira mais clara, as imagens parecem apenas uma divagação artística, reforçando a sensação de que o livro se preocupa mais com a sua estética autoral do que com a comunicação efetiva com o leitor. É legítimo, claro(!), que um autor faça aquilo que lhe dá prazer. Mas a consequência disso - e igualmente legítima - é que a obra se torne de alcance diminuto. Como é o caso.
A falta de equilíbrio entre forma e conteúdo, ao nível do texto e, especialmente, do desenho, também prejudica a experiência de leitura. Há algumas páginas visualmente belas, com frases que poderiam ser lidas como poemas, mas que, inseridas dentro do contexto da narrativa, não contribuem para um desenvolvimento sólido da trama. O livro torna-se, pois, num exercício de estilo que não se sustenta narrativamente.
A edição da Editorial Caminho é em capa dura, com bom papel, boa impressão e encadernação. O livro apresenta um formato bastante pequeno, cabendo na palma de uma mão adulta.
Em suma, a sensação final que o livro deixa é a de um projeto que tinha potencial, mas que se perdeu na necessidade de ser excessivamente autoral. A preocupação em criar algo profundamente simbólico e filosófico acabou por se sobrepor ao prazer primitivo e etéreo da leitura. No fim das contas, O Tempo do Cão é uma obra que tenta ser mais do que consegue sustentar. A sua proposta alegórica e premissa têm força, mas a sua execução tropeça no excesso de abstração e na falta de uma estrutura envolvente.
NOTA FINAL (1/10):
4.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Tempo do Cão
Autores: Ondjaki e António Jorge Gonçalves
Editora: Caminho
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 124 x 174 mm
Lançamento: Fevereiro de 2025