Cada vez estou mais satisfeito com as novas propostas editoriais que a editora Devir nos tem trazido. E refiro-me especialmente a obras do género mangá onde, de há uns tempos para cá, a editora nos tem presenteado com obras direcionadas a um público mais adulto. Repito as vezes que forem necessárias que acho ótimo e bem-vindo que se lancem obras para um público mais infanto-juvenil. Contudo, e até mesmo para alargar o espectro do mangá a um público mais maduro, também é pertinente e salutar que se lancem obras mais adultas. Como Monster, de Naoki Urasawa; como Sunny, de Tayo Matsumoto; e como este Boa Noite, Punpun, de Inio Asano, que hoje vos trago.
E a primeira coisa curiosa nesta obra é que, aparentemente, até pode parecer para um público mais infantil, já que o relato aparenta ser um simples e linear conto de infância de uma criança, com todas as dificuldades inerentes. E a maneira como a narrativa vai avançando, até pode dar a (falsa) ideia de ser uma história leve. Mas são múltiplas as camadas profundas que habitam nesta Boa Noite, Punpun, com personagens complexas e temas que nos revolvem o interior.
A história segue a criança Punpun Punyama que, visualmente falando, é retratada como uma caricatura de pássaro, feita de uma forma bastante linear, como se fosse um desenho de criança, enquanto que as restantes personagens - excetuando as da família do jovem protagonista - são representadas num desenho de estilo bastante realista.
A história explora a vida, relacionamentos e o tumulto interno que enfrenta Punpun ao crescer numa família disfuncional e ao ter que lidar com várias lutas pessoais.
São vários os temas aqui presentes, sendo que a questão da saúde mental, com a demonstração da depressão, da ansiedade ou da vivência de experiências traumáticas, como a violência doméstica, é representada de forma subentendida.
Esta é fundamentalmente uma história de amadurecimento, destacando a transição da inocência infantil para as complexidades e, muitas vezes, duras realidades da vida adulta. Essa transição é retratada com brutal honestidade, capturando a confusão, o desgosto e a desilusão que frequentemente a acompanham. Punpun acaba por ser uma personagem com que nos identificamos bastante, por ser docemente ingénua perante as relações interpessoais e amorosas, e perante a própria sexualidade. Além disso, Asano explora questões existenciais sendo as reflexões da personagem Punpun sobre a vida, o propósito e o seu lugar no mundo centrais para a narrativa.
A isso alia-se ainda à importância das dinâmicas familiares disfuncionais, que acabam por ser um foco significativo, retratando o impacto da violência doméstica, negligência parental e a busca por uma conexão genuína. Os relacionamentos de Punpun com amigos, interesses românticos e membros da família são complexos e frequentemente problemáticos. A oscilação entre a esperança e o desespero é um tema recorrente. Apesar da visão muitas vezes sombria, são-nos dados, amiúde, alguns momentos de esperança, enquanto também recebe destaque a resiliência do espírito humano.
O estilo de ilustração de Asano é verdadeiramente belo. Como já referi, esta obra tem a particularidade de representar graficamente o protagonista como um pássaro. Será algo inusitado, sim, mas que se compreende como forma de simbolizar a fragilidade emocional e experiência periclitante de Punpun. Por outro lado, isso também permite ao leitor uma identificação direta com a personagem, que acaba por funcionar como um avatar direto para que aqueles que leem a obra se sintam imediatamente ligados ao protagonista.
O que, quanto a mim, não funciona tão bem, é que haja mais personagens que também são representadas como um pássaro. Reconheço que pode ter que ver com alguma ramificação narrativa à qual ainda não cheguei com a leitura deste livro, mas parece-me que isto acaba por canibalizar a própria poesia da opção estética. Quanto a mim, apenas Punpun deveria ser representado como um pássaro.
Além desta característica, o estilo realista do desenho é muito bem representado pelo autor, dando-nos personagens com uma expressividade bastante marcante, em especial Aiko, a rapariga por quem Punpun se começa a apaixonar.
A edição da Devir apresenta capa mole com badanas, papel decente e uma boa encadernação e impressão. No final, há ainda duas páginas que são usadas para se fazer uma antevisão ao próximo volume da série.
Em suma, a Devir brinda-nos com mais um belo mangá destinado a um público mais maduro que terá nesta obra uma profunda fonte de reflexão, de preocupação e de tristeza. Eis um livro que, lido com a sensibilidade que o mesmo reclama, nos dá vários murros no estômago sob a forma de toques de borboleta, e que expande com mestria os limites que, preconceituosamente, muita gente ainda gosta de impor ao mangá.
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Boa Noite, Punpun #01
Autor: Inio Asano
Editora: Devir
Páginas: 428, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Maio de 2024
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