quarta-feira, 26 de junho de 2024

Análise: O Homem Que Sonhou o Impossível

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books
O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira

Mário Freitas tem o condão de, em O Homem que Sonhou o Impossível, fazer, ele próprio, algo digno dessa aparente impossibilidade adjacente ao título da obra: o simples ato de prestar uma sentida e documentada - embora não linear - homenagem a essa figura maior dos comics americanos - e, por arrasto, de toda a banda desenhada mundial - que foi Jack Kirby. E, ao fazê-lo, o autor português brinca com as próprias idiossincrasias da 9ª arte, fazendo um eficiente uso da própria linguagem da banda desenhada. E, quanto a mim - e mesmo reiterando que belas homenagens a figuras relevantes da banda desenhada são sempre bem-vindas - é essa a maior valência desta obra: a de, criativamente, tirar partido das oportunidades que um estilo, um género, um modus operandi, como a banda desenhada possibilita.

E essa boa e singular utilização da forma enquanto meio, começa logo pelo formato deste O Homem Que Sonhou o Impossível que, se não inédito em edições portuguesas, será certamente caso raro. Utilizando o formato gigante americano, denominado Treasury, este livro tem dimensões enormes. Pensando em livros de banda desenhada recentemente publicados em Portugal, tomem como exemplo O Burlão nas Índias ou o mais recente O Inferno de Dante. É, portanto, um tamanho muito grande para um livro de BD. E o que é mais positivo, é que este O Homem Que Sonhou o Impossível não é grande "só porque sim", ou por uma questão de capricho. Ao invés, o livro utiliza esse formato com sapiência, de forma a tornar a experiência do leitor mais agradável e, primordialmente, com o propósito de melhor servir a narrativa visual.

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books
Logo no início da história, na primeira página dupla que a mesma nos oferece, em que Sherm e Mike deambulam pelo lar onde decorre a ação, o leitor é presenteado com uma verdadeira masterclass de como se pode aproveitar uma página dupla em banda desenhada. As duas personagens mostram-nos “os cantos à casa” enquanto nos introduzem na história que teremos pela frente. Tudo é feito com uma grande sensação de movimento, com a legendagem a nunca nos fazer sentir perdidos - embora, no início, até possa dar essa impressão. Por si só, esta dupla página já seria para mim uma referência da qualidade e engenho de Mário Freitas, mas cingir-me a este ponto, quando falo de O Homem que Sonhou o Impossível, seria redutor. Até porque, em mais três ou quatro situações, há mais bons exemplos desta capacidade de narrativa gráfica e de boa utilização da prancha. E, já que falo em boa utilização da prancha, ou do espaço, a própria forma como a história começa, com utilização da primeira badana e guarda do livro - que num filme poderíamos considerar como uma breve cena introdutória para nos ambientar para o que daí viria - é apenas mais um dos múltiplos exemplos demonstrativos de que Mário Freitas se apresenta especialmente inspirado neste O Homem Que Sonhou o Impossível.

Mas estou a meter as mãos pelos pés. Comecemos pelo início.

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books
A história que nos é proposta tem como pano de fundo um lar. É aí que decorre a ação. Jack King é um dos residentes habituais desse espaço de repouso. E, como em quase todas as velhices, o protagonista desta história também se encontra já longe do fulgor da sua jovialidade, em que as ideias fervilhavam e as opções pareciam infinitas. No tempo atual, Jack é apenas uma pálida sombra dessa existência e parece sucumbir gradualmente a essa ausência de sede de vida que outrora lhe escorria dos poros. Mas isso começa a mudar a partir do dia em que chega ao lar um novo auxiliar, Mike, que, pelo seu interesse na vida de Jack, acaba por lhe restituir alguma da sua chama de vida que se encontrava extinta. A partir deste ponto, vamos mergulhando na existência mundana que se vive no lar, onde, para os amantes de banda desenhada, não faltam personagens facilmente identificáveis.

Para além da presença de Jack Kirby - que aqui recebe o lisonjeador nome de Jack King - são inúmeras as presenças de outras figuras proeminentes dos comics americanos como Stan Lee, Steve Ditko, Wally Wood, Gene Colan ou Bill Everett. Quem conhece Mário Freitas, sabe o quão defensor ele é da arte e obra de Jack Kirby que, infelizmente, muitas vezes acabou eclipsada pela (omni)presença de Stan Lee. Esta não é, ainda assim, uma biografia de Jack Kirby, mas antes uma homenagem à sua indelével relevância, não só para os comics americanos, como também para toda a banda desenhada mundial.

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books
O exercício acaba por ser grandioso: aquele de querer relembrar o verdadeiro criador, em detrimento daquele que recebe os louros por essa mesma criação. Um exercício nobre, diria, de tentar reescrever a História ou, talvez ainda mais forte que isso, restituir a História. São públicas as opiniões de Mário Freitas sobre o açambarcamento criativo de Stan Lee - que aqui tem o nome de Martin Flask - mas, neste livro, em forma de conto ficcional onde até há espaço para uma certa poesia e reflexão, os intentos de Mário Freitas acabam mais bem alcançados e regrados do que em comentários nas redes sociais. É que esta é uma história possível de Jack Kirby, Stan Lee e outros criadores de comics, mas bem que pode – e deve - ser explanada para outras áreas da criação artística. Só para dar uma referência possível do que acabo de afirmar, posso admitir que, enquanto lia este O Homem Que Sonhou o Impossível, várias vezes fui remetido para o igualmente belíssimo e, de certa forma, assustador Olhos Grandes (Big Eyes), filme realizado por Tim Burton.

Voltando à história do livro, há ainda espaço para a entrada em cena de Bolt Bisley - AKA Walt Disney - que aparece de forma bastante(!) demoníaca para arrecadar as criações dos outros, com vista ao seu enriquecimento pessoal. A história desemboca, depois, para uma luta entre o bem e o mal, entre o criador original e o açambarcador de criações, levando Jack a uma última batalha criativa que fará o seu espírito criativo ressoar novamente. Devo dizer que, neste ponto mais over the top da história, cheguei a temer que a narrativa se perdesse um pouco, com uma certa divagação no enredo, ao qual o autor não consegue fugir. No entanto, e felizmente, Mário Freitas sabe depois, já perto do final do livro, unir bem esses pontos mais soltos de forma a que o todo fique coeso e a experiência seja gratificante.

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books

Se Mário Freitas nos dá aqui um dos seus melhores trabalhos - que poderá rivalizar (ou mesmo superar) Fósseis das Almas Belas - também o brasileiro Lucas Pereira está à altura, dando-nos belos desenhos "cartoonescos" que encaixam bem no espírito americano da obra, com uma planificação verdadeiramente dinâmica e cheia de ritmo visual. E isso, claro está, assenta bem no próprio cerne “americanizado” da obra. O desenho e as cores são muito do meu agrado e, como já referido, a capacidade de ilustrar diferentes tipos de desenhos para dar boa resposta ao musculado ritmo narrativo imposto por Mário Freitas, revelam a rica valência do autor brasileiro. Diria que o casamento criativo de Mário Freitas com Lucas Pereira foi um verdadeiro sucesso. Gostaria de, no futuro, ler mais livros desta dupla criativa.

O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books


A edição da Kingpin Books apresenta capa mole com agrafos. A capa é baça, com detalhes a verniz e badanas. À boa maneira americana, também há duas capas diferentes, sendo as duas muito belas e apresentando um belo grafismo. A contracapa tem uma breve citação de Mike Royer, arte-finalista de Jack Kirby que, de alguma forma, acaba ele próprio inserido dentro da própria história. Mais, não digo.

Em jeito de conclusão, O Homem que Sonhou o Impossível é uma das bandas desenhadas portuguesas do ano, conseguindo um belo equilíbrio entre ser um livro de clara homenagem a um dos principais criadores de banda desenhada de sempre - em que não faltam inúmeras referências ao universo da 9ª arte - e, ao mesmo tempo, oferecer-nos uma história que consegue funcionar per se e relembrar-nos da relevância que determinadas criações artísticas têm na sociedade, não deixando de ecoar na consciência coletiva, mesmo depois da morte dos autores dessas mesmas criações. Como se isso fosse um sonho impossível que alguém ousa sonhar.


NOTA FINAL (1/10):
9.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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O Homem Que Sonhou o Impossível, de Mário Freitas e Lucas Pereira - Kingpin Books

Ficha técnica
O Homem que Sonhou o Impossível
Autores: Mário Freitas e Lucas Pereira
Editora: Kingpin Books
Páginas: 32, a cores
Encadernação: Capa mole com agrafos
Lançamento: Maio de 2024

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