Se há modas e tendências a que é impossível fugir, a recente aposta no mangá por parte das editoras portuguesas, é um desses fenómenos.
Por cá, foi, durante muitos anos, a editora Devir a reinar sozinha no que à edição de mangá diz respeito, tendo sido, praticamente, a única editora portuguesa a lançar obras deste género, durante muito tempo. No entanto, e mesmo mantendo o trono de forma inequívoca para já, a Devir já não está sozinha na edição de mangá em Portugal.
Foram muitas as editoras que, ao longo dos últimos dois, três anos, foram entrando neste mercado. A Seita, a Gradiva, a ASA, a Levoir, a Presença, lançaram, em pouco tempo, um conjunto alargado de obras de mangá. A própria Sendai Editora, é uma jovem editora que se tem especializado no lançamento de obras de mangá.
Também é verdade que algumas das editoras têm apostado em séries que não são produzidas no Japão, mas sim em França ou na Coreia. Às obras de estilo mangá lançadas por autores destes países, costuma-se chamar “manfra” ou “manwha”. Seja como for, e nomenclaturas à parte, creio que a palavra “mangá” é boa para, pelo menos, permitir-nos averiguar qual é o estilo de ilustração – não obstante o facto de os próprios mangás apresentarem, por vezes, estilos de ilustração diferenciados, claro está.
Mas, se há muita gente que já está totalmente embrenhada na leitura de mangás, outros há que se mostram mais relutantes em conhecer obras deste género. Dizem que “mangá não presta”, que “mangá é para putos”, que “as histórias dos mangás são demasiado infatiloides”. Devo dizer que, não concordando necessariamente, até compreendo estes comentários. Claro que, em primeiro lugar, estes comentários surgem devido ao desconhecimento do género. Mas há algo mais: é que o universo do mangá é tão vasto e tão diverso que a dificuldade se coloca logo, nesse ponto: na escolha da obra certa para agradar a novos leitores.
Aliás, se tivermos em conta que existem inúmeras subcategorias de como classificar, por idade e género, as diversas obras, ficamos logo com uma visão muito clara de como o mangá pode ser gigante e, por conseguinte, dissuasor para new comers. Só para dar um lamiré da coisa, relembro que temos as seguintes subcategorias: kodomo (mangá destinado a crianças de tenra idade); shonen (mangá destinado a rapazes adolescentes), shoujo (mangá destinado a raparigas adolescentes), seinen (mangá destinado a homens jovens e adultos) e josei (mangá destinado a mulheres jovens e adultas). Só de escrever isto, a pessoa fica cansada.
Diga-se que, cada vez mais, considero as subdivisões por género obsoletas e redutoras. Isto porque é perfeitamente legítimo que uma mulher aprecie uma história de aventura e de fantasia, e que um homem aprecie um romance. Concedo que, tendencialmente, certos tipos de histórias possam apelar mais a um género concreto, mas ter uma subcategoria parece-me demasiado. Aliás, pergunto-me se as Brigadas WOKE que há por aí, já se insurgiram contra esta questão. Se não o fizeram, será uma questão de tempo.
Mas, adiante, a categoria de idade é que me parece mais relevante. Mais uma vez, sou o primeiro a não gostar muito deste tipo de nomenclaturas. Lá por uma pessoa ter 80 anos, não quer dizer que não possa apreciar um livro do Cebolinha. Ou do Tio Patinhas. Ou do One Piece. Ou do Dragon Ball. Mesmo assim, e especialmente no estilo mangá, a questão da idade parece-me deveras relevante. É que as séries que mais têm sido publicadas em Portugal pela Devir (Demon Slayer, Naruto, One Piece, My Hero Academia, Death Note, Spy X Family, entre muitas outras) são pertencentes ao chamado subgénero shonen, ou seja, são pensadas para um público jovem. Nada contra. Aliás, tenho tudo a favor em relação a uma aposta em banda desenhada que possa chegar às camadas mais jovens.
No entanto, no caso do mangá, parece-me que é esta a primeira causa para que o público nacional mais adulto e, portanto, mais habituado a leituras mais maduras – quer do franco-belga, quer dos comics americanos - tarde em apostar no mangá. Com efeito, a grande maioria do mangá que tem sido publicado em Portugal, destina-se a um público demasiado jovem. E, lá está, no caso do mangá para jovens, os temas das histórias que vou lendo, são mesmo histórias bastante superficiais e “para putos”, como às vezes oiço. Se é verdade que poderíamos dizer que também os comics americanos - ou mesmo algum do franco-belga clássico - apresentam histórias para jovens, também é verdade que, ainda assim, são obras que têm várias camadas de leitura que podem – e devem – ser lidas por jovens e adultos. Por exemplo, se um Astérix é um livro que apela a um público infantil, as suas camadas de interpretação permitem que a obra seja bem apreciada por um público maduro. O mesmo pode ser dito em relação a alguns livros de super-heróis, com os do Batman, por exemplo.
Mas, no caso do mangá, parece-me que as obras para jovens… são mesmo para jovens! Atenção! Volto a referir que não me faz espécie ou problema nenhum que uma pessoa adulta leia um livro como Naruto ou My Hero Academia. Era só o que faltava! Se lhe dá prazer, deverá fazê-lo e acabou a conversa. Mas estou apenas a dizer que é natural que a grande maioria do público maduro não tenha tanta “paciência” para esse tipo de histórias.
Felizmente, isso tem vindo a ser alterado. E, desde logo, pela própria Devir que, de forma espaçada, tem apostado em livros para um público mais maduro. Obras como a antologia de contos de terror, Best of Best, de Junji Ito, bem como Sunny, de Taiyo Matsumoto, ou os livros da coleção Tsuru (com obras de Jiro Taniguchi e Shigeru Mizuki) são exemplos de uma aposta em títulos mais adultos por parte da editora. Dentro dessa aposta mais madura, devo dizer que uma das séries mais esperadas por mim é Monster, de Naoki Urasawa, que a Devir já anunciou que vai editar. Aliás, por falar neste Monster, aqui há uns anos tive oportunidade de ler um dos seus volumes, em inglês, e, não só adorei, como me pareceu o mangá certo para introduzir leitores que não lêem mangá a este género.
E sinto o mesmo em relação a Jiro Taniguchi. E, diga-se em abono da verdade, não foi só a Devir que publicou este autor. De facto, até foi a Levoir que lançou primeiramente o autor em Portugal, através da sua primeira coleção de novelas gráficas. Mais recentemente, a editora publicou D’Artagnan e os Três Mosqueteiros e, num futuro próximo, prepara-se para lançar a série Gotas de Deus. A Sendai Editora também parece ter uma aposta em mangá mais direcionada a um público mais maduro. O que é bom.
As outras editoras parecem estar a querer ter uma fatia do tal público jovem que (já) consome muita mangá. A Gradiva já lançou inúmeras séries como City Hall, Good Game, Versus Fighting, Team Phoenix ou Crueler Than Dead. A ASA tem publicado as séries Cagaster, Stray Dog e a sua aposta mais recente é Horion. A Presença, por sua vez, tem duas séries no seu catálogo que me parecem diferenciadas: Solo Leveling, por ser a cores, apela (ainda) mais aos amantes de anime. Já A Menina que veio do Outro Lado, a mais recente aposta da Presença, parece-me ser para um outro tipo de público. Mas, pelo menos até à data deste artigo, ainda não pude ler a obra, pelo que faço apenas menção à sua existência.
A Seita tem apostado em duas séries até agora: Kyo Kara Zombie e Butterfly Beast. Sendo que esta última, me deixou muito bem impressionado. A editora prepara também algumas novas obras, entre as quais se destacam o aclamado O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata.
De notar que esta editora, através da sua chancela Comic Heart, lançou recentemente a obra Quero Voar, da autora portuguesa Kachisou, onde o mangá é uma forte e clara influência. Dentro das autoras nacionais, destaco também os trabalhos de Patrícia Costa, com Crónicas de Enerelis, e de Joana Rosa, com The Mighty Gang.
De resto, o mangá está tão em voga que não me espanto se, em poucos dias ou semanas, este artigo ficar obsoleto por, entretanto, ter sido publicado mais um punhado de novos mangás.
É algo bom, parece-me, mas também acho que fará sentido que as editoras portuguesas que agora se arriscam neste mercado, ponderem bem as suas apostas. Até para que a bitola de qualidade das novas obras seja a mais tida em conta por parte das editoras, em detrimento se a série tem potencial comercial ou não. É que há coisas que vendem bem e são fracas… mas também há coisas que vendem bem e são boas.
Voltando-me de novo para o lado dos leitores, penso que o grande desafio agora, que há lançamentos de mangá em Portugal a torto e a direito, é encontrar mangá para um público mais adulto, que o possa iniciar no género e perceber o quão bom e maduro pode ser o mangá, mesmo para as pessoas que, normalmente, leem franco-belga ou comics.
Como tal, preparei uma breve lista de cinco obras que, a meu ver, são maduras, são boas e são perfeitas para se mergulhar no mangá. Se Monster ou O Preço da Desonra já tivessem sido lançadas, facilmente constariam na lista. Por agora, cinjo-me a algumas das minhas preferências em termos de mangás publicados em Portugal.
A lista pode ser encontrada, mais abaixo:
5. Terror na Montanha, de Vários Autores
Surgindo de uma aposta da pequena editora Sendai, este Terror na Montanha reúne um conjunto de histórias de autores relevantes do mangá. Estes contos têm em comum o facto de se passarem na montanha e de terem um pendor de horror. Contamos com os contributos de autores como Junji Ito, Akihito Yoshitomi, Daisuke Imai, Akemi Inokawa ou Mimika Ito e são histórias simples e curtas, que se leem bem e que, por todos estes motivos, podem ser uma boa porta de entrada para aqueles que não estão habituados ao mangá.
4. Coleção de Contos Best of Best, de Junji ito
Sendo este livro uma coletânea de histórias curtas de um dos grandes mestres do horror em mangá, diria que pode ser uma boa porta de entrada para leitores que não estão habituados a ler mangá. Especialmente, se forem adeptos de histórias de horror. No total, o livro tem dez histórias que foram sendo editadas ao longo do tempo pelo autor Junji Ito e que apresentam sempre premissas e enredos algo inusitados, mas que nos prendem à leitura por essa mesma razão. Além de que é um livro com uma bela edição, o que ainda pode atrair mais facilmente o interesse de alguém que, geralmente, não lê mangá.
3. Butterfly Beast, de Yuka Nagate
Eis uma aposta muito inteligente da editora A Seita. Não é que Butterfly Beast seja a melhor banda desenhada de sempre. Mas é algo que se lê muito bem e que tem a forte potencialidade de ser uma obra iniciática no género do mangá. Porque é terra-a-terra. A história é simples na abordagem, mostrando-nos a caminhada de uma prostituta que é assassina contratada durante a noite. Além de que os desenhos são absolutamente magníficos. As cenas de combate também são um mimo para os olhos. E há boas notícias: a editora continuará a publicar o próximo arco da história.
2. Sunny, de de Taiyo Matsumoto
Eis um dos melhores mangás que li nos últimos tempos! Sunny coloca-nos no centro de um pequeno orfanato e convida-nos a testemunhar as vidas das crianças que ali são deixadas. Abandonadas à sua sorte, sem o apoio e o cuidado daqueles que as puseram no mundo, estas crianças terão que fazer pela vida, enfrentando os pequenos problemas do quotidiano e as grandes dificuldades da existência. Por vezes arrebatador, deixa-nos triste. Noutras vezes, faz-nos rir por nos mostrar que as crianças têm a sua própria forma de lidar com o mundo. São destas obras que precisamos para “calar” todos aqueles que dizem que o “mangá não presta”. Parabéns à Devir pela aposta.
1. O Diário do Meu Pai, de Jiro Taniguchi
Se há livro que, sendo um mangá, apresenta um estilo bastante europeu, este O Diário do Meu Pai é um ótimo exemplo! É simples. É marcante. É bonito. É um livro que nos ensina verdades inegáveis sobre a vida. E sobre como a nossa opinião sobre a mesma coisa, vai mudando à medida que nos vamos sentando em diferentes "cadeiras de observação" na nossa vida. Com 20 anos, certamente olhamos para uma mesma coisa de forma diferente, daquela que olhamos quando temos 30, 40 ou 50 anos. E conseguir transpor isso para a banda desenhada é algo de mágico. Um casamento perfeito e uma maravilha de livro. Quanto a mim, este livro tem que constar sempre entre qualquer lista com os melhores mangás.
Com raras excepções 99,9% da BD de origem japonesa (vulgo mangá) publicada em Portugal destina-se a um público juvenil/adolescente. Existe, pois, uma grave lacuna de autores que abordem temas mais adultos ou com obra diferenciada em relação às séries massificadas destinadas ao grande público. Os formatinhos e papel em que são disponibilizadas são igualmente indicadores para quem se orientam estas coleções. Quase todas as editoras procuram explorar o "filão" da mangá juvenil mas ignoram tudo o resto, ou seja, deixam de fora as obras e autores mais relevantes e, dessa forms, prestam um mau serviço á BD. É pena...
ResponderEliminarOlá, António. Concordo totalmente com o fato de quase só se editar mangá para jovens em Portugal. A pouco e pouco vão surgindo exceções mas, de facto, ainda há muito por publicar.
EliminarViva Hugo. A questão será saber se há vontade ou saber para querer editar outro tipo de obras. Como afirmei boa parte das editoras que disponibilizam mangá nos seus catálogos nem sequer são editoras de BD - compram as licenças para entrar num mercado que adivinham pode ser lucrativo, mas apenas isso. Quanto ás tradicionais, com algumas excepções, pouco diferem do anterior. Compreende-se que licenciar algumas das obras e autores mais significativos seja complicado, quando não oneroso, mas há que haver um pouco mais de critério na seleção de títulos. Abraço.
EliminarEstamos de acordo, António. Um abraço
EliminarUm grande dissuasor da edição e compra de manga (e não só) em Portugal, é a continuidade da publicação de séries que muitas vezes são longas. Independentemente do tema, a verdade é que muitas vezes as propostas não pegam e quem fica prejudicado, é quem começou a coleção e fica pendurado com apenas alguns dos números. Veja-se o exemplo da JBC: editaram apenas o 1° volume do Akira, ficando cinco para completar a reedição em versão original. Depois, a temática da maioria das apostas editoriais ser de caráter juvenil (para não dizer infantil) o que dificulta ainda mais, porque a escolha é reduzida para o público adulto. E do pouco que se edita para adultos, muitas vezes é focado na temática do horror. Ou seja, entre estes dois extremos, horror-juvenil, pouca variedade há.
ResponderEliminarBom comentário. Sim, resume muito bem o que se passa. E a questão da continuidade também deve ser tida em conta para que o público volte a confiar no compromisso das editoras.
EliminarAonde está a lista de comics para leitores de manga? Quanto ão Jiro a estréia em Portugal com a versão ocidental do Homem que caminha da Ðevir \cm em 2006.
ResponderEliminarA lista de comics par leitores de mangá também é uma boa ideia. Mas, para isso, é necessário que se voltem a publicar mais comics! Não tinha ideia que O Homem que Passeia tinha sido editado por cá em 2006. Achei que esse livro só tinha sido editado pela Devir em 2017.
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