Desde o seu lançamento, em 2021, quando foi originalmente publicada pela BOOM! Studios, que este As Muitas Mortes de Laila Starr despertou o meu interesse. Em primeiro lugar, porque reunia o nome do português Filipe Andrade a Ram V – um autor indiano que tem vindo a trilhar o seu caminho com um sucesso crescente. Além disso, e como se não bastasse, o crescente sucesso e aceitação da obra, que conquistou uma rápida aclamação internacional, ainda mais adensou o meu interesse. Com efeito, As Muitas Mortes de Laila Starr acabou por ser nomeado para alguns dos prémios mais relevantes do género, dos quais se destacam os Eisners. Como tal, foi difícil, mas acabei por resistir à tentação de o ler na língua original – o inglês. Decidi, como sempre tento fazer, esperar pela edição portuguesa, que nos foi trazida pela G. Floy Studio, há umas semanas.
E depois de ler este tão esperado livro, posso dizer-vos que compreendo o hype da obra e que me junto ao coro das vozes que aclamam este belo livro, a roçar a poesia em banda desenhada. A história é profunda e carregada de beleza, e as ilustrações de Filipe Andrade são verdadeiramente encantadoras. Não obstante, também acho que o livro, especialmente ao nível do argumento, apresenta algumas fraquezas – ou inconsistências – que, se acauteladas pelos autores, poderiam ter tornado a obra em algo perfeito. Não o sendo, é um livro magnífico e que já pode figurar entre os livros mais relevantes da banda desenhada nacional. Ou de origem nacional, vá.
As Muitas Mortes de Laila Starr apresenta-nos uma história onde se misturam, de forma airosa, os temas do drama, da fantasia e das reflexões sobre a vida, sobre a morte e sobre o próprio renascimento depois da morte. Como cada um dos capítulos parece poder ser lido de forma independente, quase como se o livro fosse constituído por cinco mini-histórias autocontidas, não posso deixar de dizer que muitas vezes me veio à memória o fabuloso livro Daytripper, dos autores brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá - publicado em Portugal pela Levoir. Aliás, isso até se torna ainda mais curioso, se tivermos em conta que este As Muitas Mortes de Laila Starr abre com um prefácio do próprio Fábio Moon. Além desta referência, também senti omnipresente a influência de Neil Gaiman e da sua obra-prima Sandman. Mas, atenção, ao dizer isto não posso deixar de referir que, embora estas referências estejam, por ventura, demasiado óbvias na história imaginada por Ram V, este As Muitas Mortes de Laila Starr tem a sua própria personalidade, não sendo “mais do mesmo”.
E, já agora, permitam-me uma outra ressalva: se é verdade que os cinco capítulos que compõem esta história são aparentemente independentes entre si, é lógico que há um fio condutor e que a soma das cinco partes nos leva a uma reflexão e compreensão maiores da história, claro está.
A trama passa-se em Bombaim, na Índia, e gira em torno de Laila Starr, que não é mais do que um corpo, uma carcaça, que a personagem Morte adota já depois de ter sido despedida da sua função de ceifar vidas. Sim, a premissa é mesmo essa. Depois de se perceber que acaba de nascer um bebé (Darius) que será o descobridor/inventor da imortalidade, a tarefa da Morte deixa se ser relevante e a personagem vê-se relegada a uma vida mortal. Claro que não está satisfeita por ter perdido a sua função, a sua ocupação, que cumpria com tanto zelo, e procurará assegurar que esse bebé, que acaba de nascer, não dure muitos anos. Há, pois, uma tentativa de alterar o futuro previamente estabelecido, que acabará por levantar pertinentes questões e obrigar Laila a ver-se confrontada com questões sobre a natureza da vida e da morte, e a possibilidade de encontrar um significado mais profundo na sua própria existência divina.
A história examina temas como a mortalidade, o propósito da vida, o desejo humano de evitar a morte e o valor das experiências efémeras. Ram V tece uma narrativa complexa que questiona as ideias convencionais sobre a morte e a imortalidade. A premissa deste As Muitas Mortes de Laila Starr é verdadeiramente apaixonante. E verdadeiramente apaixonante é também a escrita do autor indiano que, rapidamente, consegue impactar o leitor. Chega a parecer um misto de poesia e filosofia o texto que nos é dado por Ram V que, além de escrever bem, ainda nos oferece excelentes formas de narrar a sua história. Não só apreciei especialmente o modo como vamos ficando a conhecer o que acontece, de forma muito bem doseada, como há momentos verdadeiramente brilhantes como o do cigarro, entre outros. (Não digo mais nada, para não estragar a surpresa).
Mas se a premissa é excelente, se a escrita é muito boa e se a história é tecida com complexidade, é nessa mesma complexidade que a história se torna periclitante e frágil. Quase ao ponto de afundar a sua própria premissa base. Bem, talvez não a “afunde” por completo, mas certamente, acaba por apresentar inconsistências e pontas soltas que a impedem de ser perfeita ou ainda mais marcante e bela.
Senão vejamos: como primeiro ponto, se a Morte é destituída da sua função, como é que as pessoas no mundo continuam a morrer? Ninguém se lembrou de que isto poria em causa o próprio conceito chave da história? Se a Morte deixa de estar no ativo quem é que está, portanto, a ser responsável pelas mortes das pessoas? Qual é, pois, a lógica para a Morte ser despedida tanto tempo antes do próprio obsoletismo da sua função? E se Laila Starr morre várias vezes – creio que isso não será um spoiler se tivermos em conta o próprio nome da obra – quem é que está, portanto, a ser o responsável pelas suas mortes, tendo em conta que o seu posto foi extinto? Já para não falar que, partindo do princípio que a história se passa na Índia, onde a religião hindu é hegemónica, não deveria Laila reencarnar em corpos diferentes, sendo desta forma mais fiel ao que a religião defende? Porque motivo a reencarnação da morte é sempre feita no mesmo corpo de Laila Starr? São perguntas óbvias que ficam sem resposta, infelizmente, e que podem deixar no ar a ideia de que o passo foi maior do que a perna na criação da premissa da obra.
Mesmo assim, estas inconsistências que podem parecer irrelevantes ao leitor mais incauto, não destroem a obra, nem nada que se pareça. Simplesmente a afastam da perfeição que, convenhamos, estava perto de ser alcançada. Até porque me pareceu que Ram V acabou por saber fechar bem a história, com um bonito e profundo final, que é acompanhado com bom texto – daqueles que também conseguem ser “quotable” e que tanto procuro sempre enaltecer.
Mas se, até este ponto, me tenho focado em Ram V, não há forma de falar neste As Muitas Mortes de Laila Starr sem fazer uma veemente menção ao trabalho de Filipe Andrade. É que, na verdade, o autor português parece acertar em tudo o que faz. Os seus desenhos, muito estilizados, rabiscados, confiantes, modernos e fluídos, adequam-se que nem uma luva ao ambiente pictórico da história e, ao mesmo tempo, conseguem imprimir a valência metafísica e poética que a história pedia.
O estilo de Filipe Andrade é único e traz uma certa misticidade à atmosfera da obra, oferecendo-nos um universo deslumbrante e emotivo, onde a planificação é cinematográfica, as personagens são impactantes e as belas cores vibrantes e vivas são a cereja em cima do bolo. Visualmente, As Muitas Mortes de Laila Starr é maravilhoso e verdadeiramente original. Sem patriotismos desmesurados, posso dizer que não foi apenas Filipe Andrade que teve a sorte de trabalhar com um autor excelente como Ram V. Na verdade, parece-me que ainda foi maior a sorte de Ram V em encontrar Filipe Andrade para ilustrar a sua história.
A edição da G. Floy Studio apresenta capa dura baça, com bom papel brilhante. A nível de impressão e de encadernação, o trabalho da editora também revela qualidade. Destaque para um generoso e bem conseguido dossier de extras com 20 páginas. Nele estão incluídos posfácios de Ram V e Filipe Andrade, breves textos explicativos sobre as várias fases de criação da obra, arte conceptual por parte de Filipe Andrade e, ainda, o conjunto das 5 capas dos vários capítulos. Como nota pessoal, embora menos relevante, já que é apenas uma questão de gosto, considero que há duas ilustrações (a segunda e a terceira) que teriam funcionado melhor para a capa deste livro. Mas, lá está, é uma questão de gostos. E diga-se que também gosto da capa deste livro. Embora, não tanto.
Concluindo, As Muitas Mortes de Laila Starr (já) é, por vários motivos, um livro incontornável na banda desenhada portuguesa. Ou de origem portuguesa, como preferirem. Porque nos dá uma história ambientada num tema e cenário pouco habitual, porque nos dá uma bela e sensível reflexão sobre a vida e sobre este passeio efémero que ela é e, por último, porque se assume como uma obra icónica e relevante para o autor português Filipe Andrade, que tem um enorme talento e merece a exposição e louvores que tem recebido em todo o mundo!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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As Muitas Mortes de Laila Starr
Autores: Ram V e Filipe Andrade
Editora: G. Floy Studio Portugal
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 18 x 27,5 cm
Lançamento: Maio de 2023
A história é deveras excelente e recomendo mas continuo sem perceber porque é que a G.Floy alterou toda a tipografia de balonagem original para um tipo uniforme e sem personalidade, isto já para não falar das situações onde é usada caligrafia desenhada sobre objectos, aqui também sem respeitar o desenho original. Continua a não haver designers para estas empresas? A tipografia está condenada a ser o parente pobre da edição nacional?...
ResponderEliminarPois. Sou da opinião que se deve respeitar a versão original ao mais ínfimo detalhe. Porém, como não tenho a versão original, não posso fazer comparações.
EliminarCaro Hugo, como nota adicional, li a versão original em formato digital e a comparação é legítima. Provavelmente, para a maioria dos leitores, a questão passará ao lado, mas para quem entende que esta é uma parte integral e essencial de um livro de BD, não passa. Como diz, a G.Levoir tem o dever/obrigação de oferecer ao leitor nacional edições que respeitem na íntegra o original e este desleixo parece-me pouco aceitável.
EliminarQuiz dizer "... a G.Floy tem..."
EliminarPois, concordo que as edições nacionais devem respeitar a obra original na íntegra. Tanto quanto possível. É uma questão fundamental!
EliminarIndo ao encontro do tema da legendagem, acho curioso como é que o Hugo Jesus vem mencionado como autor da legendagem. Acho estar errado pois ele não a fez de raíz. A legendagem de raíz no original foi feita por uma empresa de design.
ResponderEliminarCaro anónimo (era bom que as pessoas se identificassem...), julgo que que em relação á legendagem/balonagem nem sequer recorreram a uma empresa especializada. A minha opinião é que, salvo honrosas excepções, a maioria das editoras nacionais "corta" na parte do design tipográfico - e isto foi-me dito por um dos responsáveis de editora nacional na Amadora BD, há cerca de 2 anos. Este é um "fenómeno" transversal a todas as editoras, infelizmente...
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