Foi já no final do ano passado, já depois do término do Amadora BD - que, historicamente, costuma apresentar as últimas grandes apostas editoriais de banda desenhada -, que a Ala dos Livros editou de surpresa este A Adopção, dos autores Zidrou e Monin.
Saber disto, foi uma ótima surpresa para mim. Zidrou é um autor cheio de contemporaneidade nos temas que aborda nos seus livros. Mas falar de temas atuais não quer dizer - ou não deveria - escrever apenas algo que seja "mais do mesmo". Que apenas apele à tendência comercial. Não, no caso de Zidrou nada disso acontece. Zidrou tem um cunho muito pessoal na forma como escreve, nas personagens que cria e nos enredos que desenvolve. Consegue ir às profundezas dos temas e trazer consigo uma consciencialização e reflexão que ficam impregnadas nas mentes dos leitores.
Talvez por isso, sou um grande fã do autor e considero que o mesmo já atingiu um lugar especial no pedestal dos grandes argumentistas da banda desenhada europeia.
Aparentemente, as editoras e público portugueses concordam comigo pois trata-se de um autor que já parece ter um público relevante em Portugal. A Arte de Autor publicou a série completa de Verões Felizes, a editora A Seita publicou A Fera. Sabe-se que ambas as editoras irão co-editar mais três obras do autor, nomeadamente, Naturezas Mortas, de Zidrou e Oriol; Emma G. Wildford, de Zidrou e Edith; e Lydie, de Zidrou e Jordi Lafebre. Talvez por isso, foi com surpresa – mas enorme satisfação – que me chegou a notícia de que a Ala dos Livros também iria publicar Zidrou.
E que bom isso é. Acho, aliás, que do ponto de vista do leitor português, interessa é que as (boas) obras sejam publicadas por cá. Não interessa tanto quais são as editoras que o fazem.
E ter este A Adopção publicado, com qualidade, em português é algo com que devemos ficar contentes.
O tema é simples: uma família francesa decide adotar uma órfã peruana de 4 anos. E, naturalmente, essa iniciativa causa um turbilhão de mudanças nessa mesma família. E, em particular, na vida de Gabriel. Este, é já idoso, e a verdade é que nunca teve tempo para ser pai. Havia demasiado trabalho para fazer e contas para pagar, e teve que ser a sua mulher a fazer as vezes de mãe e pai para com os filhos de ambos. Agora que o seu filho decide adotar Qinaya, não será Gabriel, portanto, a pessoa mais apta para esta nova função de avô. Ainda para mais, de uma criança que já traz um background social pesado e uma cultura diferente da sua.
Mas, surpresas das surpresas, passado algum tempo de rejeição inicial, Gabriel e a pequena Qinaya, começam, gradualmente, a criar laços entre si. A vida é mesmo assim. Nem tudo é linear e, por vezes, todos nós somos surpreendidos por aquilo que nos acontece e pela forma como reagimos a esses mesmos acontecimentos.
Se esta história poderá parecer algo clichet para os leitores que me lêem, desenganem-se. A meio do livro, há um acontecimento abrupto que muda a história do avesso. Portanto, se a história parecia incidir apenas sobre a possibilidade que a vida nos dá para criar laços inesperados com pessoas que, à partida, são muito diferentes, é muito mais do que isso.
Vou ter cuidado com as palavras, a partir de agora, para não estragar a o prazer da leitura do livro àqueles que estiverem a ler este meu texto. Como dizia, acontece algo que afasta Qinaya do seu (novo) avô Gabriel e que fará com que a história abandone, sem olhar para trás, a sua premissa inicial de relacionamento avô-neta, e se foque apenas na personagem de Gabriel e na sua demanda pessoal.
Já falei com várias pessoas sobre este livro e tenho escutado posições muito díspares sobre esta mudança abrupta a meio da história: há quem adore e há quem deteste.
No meu caso, gosto de ser surpreendido e gosto de autores audazes. E Zidrou mostrou ser isso tudo neste livro. É preciso coragem para avançar para uma história que muda tanto e, com isso, corre o risco de deixar algumas expetativas defraudadas.
Na minha opinião, esta mudança traz dinamismo e surpresa à história. E isso agrada-me. Não obstante, pareceu-me que, talvez pela brusquidão da mudança no enredo, também houve algumas pontas soltas e questões que ficaram por dar, que o autor poderia ter fechado melhor. Ou seja, por outras palavras, apreciei a mudança radical, mas também é verdade que essa mudança abrupta, levantou outras questões que se afastaram do tema original, sem que isso tenha sido necessariamente bom ou que tivessem ultrapassado em termos de envolvência a ideia inicial da história.
Mas bem, A Adopção não é sobre um avô e a sua neta. Se acharem isso, talvez se desiludam com o livro pois, na verdade, A Adopção é sobre um homem de idade já avançada e de como este dá por si a descobrir que a vida não é estática nem fechada em si mesma. De vez em quando, e sem que o esperemos, há certas faíscas na nossa vida que servem como a ignição para a mudança em nós. Por vezes, são coisas tão fora do nosso controlo que mal nos dão tempo para nos habituarmos às mesmas. Quando damos por isso já somos pessoas diferentes. Mas a vida é assim. Não pede licença a ninguém para acontecer. Simplesmente acontece. Quem acha que tem controlo absoluto sobre a sua vida está mais enganado do que julga. E este livro prova-o de forma sublime.
Se Zidrou é um belo argumentista, também há algo que é ponto assente: sabe sempre rodear-se de bons ilustradores para as suas histórias. E Arno Monin não é exceção. Os desenhos que habitam este livro são verdadeiramente belos, empáticos e ternurentos nas expressões. De um estilo a que chamo o “novo franco-belga” que se foca muito nas expressões faciais e num estilo de cores suaves, que bem acentuam o cariz humanístico da história. Como exemplos de estilos de ilustração, por cá lançados recentemente, e para os quais fui remetido, poderia dizer que o estilo de ilustração de Monin sendo, naturalmente, original e com personalidade própria, anda de mãos dadas com o estilo de Jordi Lafebre em Verões Felizes, com o estilo de Victor Pinel, em O Mergulho, Julen Ribas em Santa Família ou até mesmo de Rodolfo Oliveira em O Infeliz Pacto de George Walden. É um estilo que muito me agrada, reconheço.
E focando-me mais uma vez naquilo que Monin nos dá neste A Adopção, devo dizer que saltam à vista as maravilhosas expressões faciais das personagens – com destaque para a doce Qinaya -, a bonita caracterização dos cenários, os belos planos de detalhe cénico e as irresistíveis cores que dão vida aos belos desenhos, de traço descontraído, de Monin. Não há aqui nada que falhe. Este é um livro lindíssimo da primeira à última página.
Quanto à edição, também não há nada que se possa apontar ao belo trabalho da Ala dos Livros. Capa dura e baça, papel brilhante de excelente qualidade, e ótima impressão e encadernação. Destaque para o facto de, no final do livro, haver um caderno de extras com 10 páginas, onde nos podemos maravilhar com mais algumas belas ilustrações de Monin. Nota ainda para o facto de a editora portuguesa ter optado (e bem) por publicar uma edição integral da história em vez de a lançar em dois tomos, tal como foi feito originalmente.
Uma nota mais pessoal sobre a escolha da ilustração para a capa. É uma bela capa, mas admito que prefiro as outras versões de capa que já vi. E não o digo apenas baseado numa questão de estética. Digo-o porque considero que passam mais coisas e, por esse motivo, me parecem mais emotivas. Não obstante, e isso também é relevante, talvez(?) a escolha desta ilustração seja mais fiel à história que nos espera do que as demais capas. Se isto foi pensado pelos editores (acredito que sim) até merece as minhas vénias com o cuidado editorial.
Concluindo este texto que já vai longo, A Adopção é mais um dos grandes livros dos últimos meses. Com uma história que nos faz sorrir e chorar, Zidrou volta a pegar no nosso coração, a agitá-lo como se fosse um shaker de cocktail, e a deixar-nos com um gosto agridoce na boca. É óbvio que é obrigatório.
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Adopção - Edição Integral
Autores: Zidrou e Monin
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 320 mm
Lançamento: Outubro de 2022
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