quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Análise: A Cor das Coisas

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir
A Cor das Coisas, de Martin Panchaud

Se há algo que preciso referir em primeiro lugar, é que a aposta da editora Levoir na recentemente lançada obra A Cor das Coisas, do suíço Martin Panchaud, merece o meu aplauso, já que revela coragem, audácia e vontade de fazer diferente. Embora vencedor ou finalista de inúmeros prémios por essa Europa fora, este é um livro que, pela sua abordagem visual, pode afastar muita gente. Especialmente os que não gostam de surpresas ou de saírem da sua zona de conforto. 

De facto, A Cor das Coisas parte de uma premissa gráfica que poderia, à primeira vista, desagradar a muitos adeptos de banda desenhada. É que todo o universo nos é revelado numa perspetiva zenital, ou seja, como se fosse uma planta. Todo o mundo, todos os cenários, todos os ambientes, nos são dados como vistos de cima. Naturalmente, também personagens são representadas dessa forma, enquanto meros pontos coloridos. Estão a ver como é que o célebre videojogo GTA (Grand Theft Auto) começou por ser nas suas primeiras edições? Ou lembram-se dos videojogos Micro Machines para a velhinha consola Sega Mega Drive? É mais ou menos assim que vemos este mundo.

Se esta aposta visual pode parecer quase improvável para sustentar um livro com mais de 200 páginas, deixem-me que vos diga que rapidamente o livro se transforma numa engrenagem narrativa sólida, envolvente e cheia de nervo. 

Se a história não fosse boa, este livro também não o seria. Mas isso pode ser dito de todos, ou quase todos, os livros.

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir
A história de Simon, um adolescente obeso de 14 anos marcado pelo bullying e por uma estrutura familiar frágil, ganha contornos inesperados quando o jovem decide, após conselho de uma vidente, apostar num cavalo de corrida todas as poupanças do seu pai sem que este, ou alguém, o saiba. E o improvável acontece e a aposta de Simon passa a valer o prémio astronómico de 16 milhões de libras. O problema? Simon é menor e não pode levantar o dinheiro. E é precisamente a partir desta frustração inicial que tudo se começa a desmoronar… e a ganhar densidade, com a narrativa a obrigar-nos, de modo algo inesperado, a um mergulho emocional. 

De um momento para o outro, a mãe de Simon entra em coma, o seu pai desaparece e o rapaz vê-se forçado a atravessar um território desconhecido, feito de decisões difíceis que nenhum miúdo da sua idade deveria ter de tomar. Martin Panchaud constrói este percurso, em estilo de thriller, com uma mestria impressionante, equilibrando drama, humor, suspense e uma crítica social subtil, mas constante. 

Há qualquer coisa de profundamente humano nesta narrativa. Simon não é um herói, nem sequer um anti-herói. É apenas um rapaz perdido num mundo demasiado grande e indiferente, onde os adultos falham sucessivamente. E é nesse espaço, entre a negligência e o acaso, que A Cor das Coisas encontra a sua força. A história agarra-nos não por ser espetacular, mas por ser verosímil,- ou possível, pelo menos - e emocionalmente honesta.

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir
Importa sublinhar algo essencial: o que mais gostei neste livro foi o facto de a história ser especialmente cativante. Ao ponto de arriscar dizer que, mesmo que A Cor das Coisas fosse uma obra desenhada de qualquer outra forma, a narrativa continuaria a ser relevante, excitante e difícil de largar. Há aqui uma espinha dorsal narrativa forte que não depende exclusivamente do artifício visual para funcionar.

E depois há "o elefante na sala" ou melhor, os círculos de cor na página. Não vos posso dizer que é um livro bonito para observar. Não, não o é. Martin Panchaud tenta que as páginas não sejam sempre iguais umas às outras - e, de algum modo, até o consegue - mas, naturalmente, quando colocado ao lado de grandes livros de banda desenhada de ilustradores consagrados, A Cor das Coisas ficará aquém em termos visuais, pois é um autêntico alien no meio da banda desenhada.

Mas é precisamente aí que reside o seu grande trunfo. Nesta mudança de paradigma visual, quase agressiva na sua diferença, está o grande statement da obra. Panchaud prova que a banda desenhada não é um território exclusivo de quem domina o desenho clássico, virtuoso ou academicamente “bonito”. Qualquer pessoa pode fazer um grande livro de BD. Haja talento e, sobretudo, criatividade.

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir
A narrativa contada sempre com este ponto de vista, estilo planta, e com personagens representadas por círculos de cor, mais próximas de infografias ou mapas do que de figuras humanas, é uma decisão radical. E radical no melhor sentido possível. Obriga o leitor a participar ativamente na leitura, a reconstruir espaços, movimentos e emoções. Não é uma leitura passiva. É um exercício constante de atenção e envolvimento.

Logicamente, compreendo perfeitamente quem, ao folhear o livro pela primeira vez, sinta algum afastamento. A abordagem visual pode parecer demasiado complexa, fria ou até intimidante. O preconceito — ou pré-conceito, se preferirem desmontar a palavra — toca-nos a todos. Também a mim. Mas basta ler algumas páginas deste livro para que algo mude subitamente. E isso acontece pela história, que impacta e que nos convoca a entrar neste mundo visualmente diferente daquilo a que estamos habituados em banda desenhada.

E assim que nos acostumamos a esta nova forma de representar pessoas e figuras, tudo se torna surpreendentemente fluido. Começamos a reconhecer cores, padrões, trajetos. Começamos a “ver” personagens onde antes só víamos formas geométricas. E isso é absolutamente fascinante. A leitura deixa de ser um esforço e passa até a ser um vício. Este é um daqueles livros que, quando tinha que fazer uma pausa na leitura, me deixava com muitas ânsias de voltar à leitura. 

A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir
Prémios "valem o que valem", bem sei, mas não é por acaso que A Cor das Coisas foi amplamente aclamado pela crítica e premiado em festivais tão relevantes como Angoulême, onde venceu o Fauve d’Or de Melhor Álbum. Estes prémios não surgiram por exotismo, mas porque estamos realmente perante uma obra que empurra os limites da linguagem da banda desenhada sem nunca perder o foco naquilo que realmente importa: contar uma boa história.

A edição da Levoir é em capa dura baça, com bom papel baço no miolo. O trabalho de impressão e encadernação também está bem conseguido. A capa do livro é ligeiramente diferente, em termos visuais, pois em vez de apresentar uma tira a preto com a inscrição "Novel Gráfica" como é assinatura da editora, opta por não ter essa inscrição e por ter a referida tira na cor roxa. Acaba por dar um aspeto mais diferenciado ao livro. 

Há livros que se destacam pelo desenho, outros pelo argumento, outros ainda pela ousadia formal. A Cor das Coisas consegue, de forma rara, equilibrar estes três elementos, mesmo quando parece estar deliberadamente a negar um deles. É uma obra que desafia expectativas, hábitos de leitura e até preconceitos estéticos profundamente enraizados.

E, no fim, ficamos com a sensação de ter lido algo verdadeiramente único. Um livro que não se parece com mais nenhum, que não tenta agradar a todos, mas que recompensa generosamente quem aceita o desafio. A Cor das Coisas não é apenas uma grande banda desenhada. É uma prova viva de que o meio ainda tem muito espaço para surpreender, reinventar-se e - acima de tudo - emocionar. Adorei e é o livro do ano da Levoir.


NOTA FINAL (1/10):
9.7

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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A Cor das Coisas, de Martin Panchaud - Levoir

Ficha técnica
A Cor das Coisas
Autor: Martin Panchaud
Editora: Levoir
Páginas: 232, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Outubro de 2025

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