A mais recente aposta conjunta das editoras Arte de Autor e A Seita dá pelo nome de Peter Pan de Kensington, do autor José-Luis Munuera, de quem a editora Arte de Autor já havia publicado os livros A Corrida do Século e as adaptações para banda desenhada dos clássicos da literatura Bartleby, o Escriturário e Um Conto de Natal.
Desta feita, A Seita junta-se à Arte de Autor para a edição de mais um livro do autor espanhol que, no caso em questão, adapta para banda desenhada Peter Pan, de J.M. Barrie. Mas, convém não deixar de referir, esta não é a história de Peter Pan que todos conhecemos.
Na verdade, Peter Pan de Kensington, originalmente apresentado em O Pequeno Pássaro Branco (1902) e depois publicado separadamente como Peter Pan in Kensington Gardens (1906), conta a história de um Peter muito diferente do herói aventureiro que voa até à Terra do Nunca. Peter é um rapaz que deambula pelos jardins de Kensington à noite, onde criaturas mágicas - fadas, pássaros falantes e espíritos assombrados - convivem longe do olhar dos adultos.
A história acompanha a pequena Maimie Mannering, perdida à noite num parque que se transforma num território encantado e perigoso. É nesse espaço onde a imaginação suplanta a realidade que ela encontra fadas ameaçadoras, criaturas fantásticas e, claro, Peter Pan. Somos presenteados com um sentimento de deslocamento de Peter, que não pode regressar completamente ao mundo dos humanos nem integrar-se por inteiro no universo fantástico das fadas, com José-Luis Munuera a oferecer-nos, por isso, um misto de melancolia e encanto, enquanto nos revela um Peter vulnerável, solitário e eternamente suspenso entre dois mundos.
A partir deste ponto, Maimie e Peter encontram-se com a Rainha das Fadas e com um enigma que precisam resolver. Enigma esse que acaba por funcionar como o motor da aventura, impondo um limite temporal claro - o amanhecer - que acentua a tensão da narrativa.
Começo por dizer-vos que este não foi um livro que me agradou logo no início. No começo da leitura e até metade, até o estava a achar um pouco "trapalhão" em termos narrativos, já que a história parecia feita de pequenos momentos algo desconexos da trama principal, parecendo ter sido ali colocados de modo algo aleatório. No entanto, este é um daqueles livros em que o fim consegue salvar toda a história. Continua a não ser um livro perfeito no argumento, mas consegue chegar a uma conclusão satisfatória.
E um dos grandes méritos desta obra de Munuera é trazer ao leitor um Peter Pan inspirado diretamente no material de Barrie anterior ao romance homónimo mais famoso. Desta forma, Munuera resgata um Peter menos cristalizado pela cultura popular, permitindo que a obra se destaque de adaptações que repetem a mesma história conhecida. É uma versão diferente, mais próxima do espírito inaugural e mais estranha, mas no melhor sentido da palavra "estranha".
A alternância entre encanto e escuridão é uma das marcas mais interessantes do livro. Para além das fadas ameaçadoras, há criaturas fantasmagóricas e atmosferas carregadas que tornam esta incursão pelos Jardins de Kensington menos inocente do que à primeira vista se poderia pensar. Munuera abraça, pois, a vertente mais sombria da fantasia de Barrie, sem nunca a tornar opressiva. Não será uma história tão boa, pesada ou densa como a adaptação - ainda mais livre - de Régis Loisel, mas este livro de Munuera também consegue ter vida própria e, por isso, merecer alguma reflexão.
Para equilibrar o tom sombrio da abordagem, o autor insere momentos de humor que quebram a tensão e tornam a leitura mais leve. Embora se perceba claramente a intenção de trazer ritmo com esta opção, também se sente que há vários destes momentos que se aproximam de fillers narrativos, como se Munuera estivesse a esticar uma história que, na sua essência, talvez fosse mais curta e direta.
Ainda assim, a obra consegue manter interesse graças à forma como integra subtilezas temáticas, sobretudo a reflexão sobre a infância eterna. Embora, a determinada altura, fique claro porque é que Peter Pan, afinal de contas, não cresce, permanecendo criança para sempre, gostei da alegoria que aqui nos é trazida, dando talvez até, mais maturidade a uma história que já era bonita mas que, deste modo, pode ser encarada de outra forma pelos adultos que a lerem, podendo a figura de Peter ser reinterpretada à luz de um simbolismo mais profundo.
Essa perspectiva mais adulta não rouba a leveza do conto, mas dá-lhe uma camada emocional que sustenta o impacto do final. E mesmo com alguns tropeções ao longo do caminho, com pequenas quebras de ritmo ou soluços na transição entre episódios, a história acaba por desembocar em algo sólido que deixa uma boa - embora triste - sensação ao leitor quando terminada a leitura.
Visualmente, o livro é muito bonito. Os desenhos de Munuera são expressivos, fluidos e cheios de personalidade, revelando um domínio notável da linguagem da BD. Já tinha apreciado bastante o seu trabalho nos livros anteriormente editados pela Arte de Autor que já mencionei acima, e volto a ficar muito satisfeito com a componente visual deste livro. As personagens, com traços mais "cartoonescos", contrastam de forma muito feliz com os cenários, que se aproximam de uma estética mais realista e poética. E nas partes mais fantásticas e humorísticas, até encontramos personagens com uma estética demarcadamente caricatural. Este casamento cria uma sensação que poderá ser um pouco inusitada, mas que, a meu ver, acaba por funcionar muito bem.
As cores de Sedyas complementam muito bem o traço de Munuera, acrescentando-lhe profundidade, beleza e textura. Além de que os jogos de luz e sombra, especialmente nas cenas nocturnas, reforçam o sentimento de maravilhamento e perigo, elevando a qualidade visual do livro.
A única crítica que posso fazer no plano gráfico poderá recair na caracterização de Peter Pan: os seus traços apresentam-se excessivamente andrógenos e - talvez por isso - com uma expressividade menos bem conseguida, por vezes. Há cenas em que o rosto de Peter parece menos vivo e menos convincente do que o restante elenco, causando uma pequena dissonância visual. Não é nada de excessivamente grave, mas é uma nota que deixo.
Em termos de edição, o trabalho da Arte de Autor e d' A Seita apresenta-se muito agradável aos olhos. A capa do livro é dura, com textura aveludada e com detalhes a verniz localizado. No miolo do livro, encontramos bom papel baço, boa encadernação e boa impressão. Há ainda um texto introdutório de Richard Comballot e, no final, encontramos um epílogo escrito por um tal de Sir James Hook. Estão a ver quem poderá ser?
Concluindo, no conjunto, Peter Pan de Kensington é uma obra muito bonita e inspirada, especialmente na forma original como nos convida a conhecer uma outra abordagem ao célebre rapaz que não crescia, apoiada pelos textos originais de J.M. Barrie. É um voo que, em termos de argumento, encontra alguns tropeções, admito, mas que acaba por não se deixar cair e apresentar-nos um final que, mesmo sendo triste, nos deixa perante uma bela e profunda reflexão sobre Peter Pan.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Peter Pan de Kensington
Autor: José-Luis Munuera
Baseado na obra original de: James Matthew Barrie
Editoras: Arte de Autor e A Seita
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Setembro de 2025
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
Sem comentários:
Enviar um comentário