Não sei bem como, nem porquê, mas este Bartleby, O Escriturário, de José-Luis Munuera, publicado pela Arte de Autor, tem passado despercebido a muitos. E isso deixa-me especialmente espantado, pois considero esta obra como uma das melhores bandas desenhadas do ano, publicadas até agora em Portugal!
Bartleby, o Escriturário resulta da adaptação da obra original de Herman Melville – autor amplamente conhecido pela obra Moby Dick – que nos conta a história de Bartleby e da sua forma indecorosa, embora educada, de dizer: “Preferiria não o fazer”.
Aliás, é sobre esta expressão e o que ela encerra – essa liberdade para se dizer que não a algo, mesmo quando esse algo é um pedido de uma chefia – que toda esta obra se apoia. Como se fosse um exercício de sociologia que, por mais simples que possa ser, tenha o potencial para abanar os alicerces de toda uma sociedade criada à semelhança do Homem. É um exercício verdadeiramente delicioso!
A trama passa-se em Wall Street, Nova Iorque, o coração do capitalismo mundial, e é centrada em Bartleby, um misterioso e taciturno escriturário que é contratado por um advogado para trabalhar no seu escritório. Mas depressa se torna evidente que o comportamento do protagonista é enigmático e cheio de ambiguidade. Por um lado, parece um bom trabalhador e uma pessoa respeitosa. Mas, por outro lado, a partir do momento em que responde ao seu patrão com a já mencionada frase “Preferiria não o fazer”, tudo começa a tornar-se embaraçoso.
O mundo dos homens é um mundo de regras e de papéis sociais. Todos nós, de uma forma ou de outra, nos fazemos valer dessas regras. Quando um indivíduo tem uma atitude de contestar pacífica e educadamente o regime estabelecido, eis que surge um comportamento desviante. Mas, lá está, mesmo por ser uma contestação pacífica e educada, é que o problema se torna maior. É fácil reprimir e castigar os comportamentos oriundos de uma postura agressiva antissistema, mas reprimir um comportamento pacífico e simples como a negação educada a um pedido, é algo bem mais difícil.
Imaginem o que era fazermos um pedido num restaurante e o empregado dizer-nos: “Preferiria não o fazer”. Ou o árbitro de futebol apitar para que um jogador marcasse um penálti e o jogador dizer: “Preferiria não o fazer”. Ou um músico subir ao palco de um concerto para dizer, simplesmente: “Preferiria não o fazer”. Ou termos que pagar por uma despesa e dizermos ao nosso cobrador: “Preferiria não o fazer”. Ou que o nosso chefe nos pedisse algo, que estivesse relacionado com o nosso trabalho, e nós simplesmente disséssemos: “Preferiria não o fazer”. Enfim, a frase pode ser dita por qualquer pessoa, em qualquer circunstância. E abrir o precedente para acabar com o livre arbítrio em oposição à possibilidade de dizer que não de um individuo é a abrir a caixa de Pandora do papel social e da liberdade de escolha. Porque a verdade é esta: em sociedade, só somos livres até certo ponto. Somos livres dentro da enclausura de um conjunto finito de oportunidades de escolha. É uma premissa fabulosa e é nela que assenta toda a história deste Bartleby, o Escriturário.
Focando-me na adaptação de José-Luis Munuera, considero que a ideia foi muito bem explanada e, em 72 páginas, o autor consegue captar muito bem a ideia base da obra original de Melville. É certo que nunca li o texto original e não posso afirmar com exatidão se esta adaptação para BD perdeu – ou não – muitas coisas da obra original. Decerto, perdeu algumas. Porém, e de acordo com todas as sinopses e textos que li sobre o conto original de Melville, creio ser justo afirmar que esta adaptação para banda desenhada reflete bem a ideia e reflexão base da obra original.
Do mesmo autor José-Luis Munuera, a Arte de Autor já tinha publicado o igualmente belo Um Conto de Natal, uma adaptação para banda desenhada do clássico de Charles Dickens. Nesse caso concreto, e talvez por - ao contrário do que se passa nesta situação - eu conhecer tão bem a obra original e as múltiplas adaptações da mesma, gostei muito, claro, mas não fiquei tão maravilhado como fiquei com este Bartleby que, de facto, ainda não tinha lido.
A história de Bartleby, o Escriturário é pertinente, inteligente e dá que pensar, sendo uma daquelas rábulas que todos devíamos ler uma vez na vida. Por sua vez, a banda desenhada, como um todo, funciona muitíssimo bem, com Munuera a revelar-se hábil na forma como combina a profundidade da história original com o dinamismo visual e emocional próprio da banda desenhada.
Pode-se, por isso, dizer que esta adaptação consegue manter fielmente a essência da história original, explorando temas profundos como a alienação, a busca de significado na vida e a própria natureza humana.
Quanto aos desenhos de Munuera, temos algo semelhante, no tom e no ambiente, ao que o autor nos deu em O Conto de Natal. Mantêm-se dois registos visuais diferentes que confluem entre si: na parte das personagens, o estilo é bastante "cartoonesco", assumindo similaridades com o universo Disney, por um lado, e remetendo-nos, por outro, para o estilo da escola Spirou que, aliás, o autor conhece bem enquanto autor de alguns álbuns da série; na parte dos ambientes e dos cenários, temos um estilo bem mais realista onde os efeitos de luz e cor chegam a apresentar uma certa poesia visual. Pode parecer uma junção algo forçada, mas que, tenho que admitir, acaba por funcionar muito bem e ser bastante original.
A arte de Munuera é simplesmente deslumbrante. As próprias cores utilizadas (pelo autor Sedyas) conseguem transportar-nos para o universo sombrio e introspetivo de Bartleby. A representação dos ambientes do escritório, com tons cinzentos e composições cuidadosamente elaboradas, é especialmente notável, pois reflete a monotonia e a alienação da vida corporativa.
A edição da Arte de Autor é em capa dura, com alguns detalhes da mesma a receberem aplicação de verniz. No miolo, o papel é baço e de boa qualidade. A impressão e a encadernação também apresentam boa qualidade. O livro é complementado por um prefácio de Philippe Delerm e um posfácio de Álex Romero que muito acrescentam à edição, pois permitem uma imersão ainda maior na temática da obra.
Em suma, este é um dos belos lançamentos do ano que a Arte de Autor, em boa hora, faz chegar aos leitores portugueses. Munuera consegue honrar o legado de Herman Melville ao mesmo tempo que imprime a sua própria marca, tornando este trabalho uma leitura obrigatória para amantes de banda desenhada e de literatura clássica.
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Bartleby, o Escriturário - Uma História de Wall Street
Autor: José-Luis Munuera
Editora: Arte de Autor
Páginas: 72, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Abril de 2023
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