Depois de, em 2021, a Escorpião Azul ter lançado a obra Vazio, de Carlos Páscoa, que acabou por ser muito bem recebida - e tendo até vencido o VINHETA D’OURO para Obra Revelação desse ano -, eis que a editora portuguesa publicou mais uma nova obra do autor. Desta feira, a Escorpião Azul traz-nos O Acordo, que foi lançado no passado Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja.
Se Vazio e O Acordo são livros lançados com pouco espaçamento temporal entre si, contando até com as mesmas personagens como protagonistas, há que dizer que há algumas diferenças substanciais entre ambas as obras.
Começa logo pelo formato que, no caso de O Acordo, utiliza o formato horizontal (italiano). Mas também ao nível de narrativa, há várias diferenças entre as duas obras. Se Vazio tem intuitos quase poéticos que muito apreciei, é inegável que a narrativa de O Acordo está mais bem tecida, de forma global. É uma obra mais down to earth.
Em termos de história, continuamos a acompanhar as personagens de Eric e Melina não havendo, porém, nenhuma ligação direta óbvia aos eventos de Vazio. O que quer dizer que, quer um livro, quer outro, pode ser lido de forma isolada. O universo de fantasia mantém-se, mas, ao contrário de Vazio que mesmo tendo passagens muito bonitas parecia mais uma divagação poética, em O Acordo Carlos Páscoa oferece-nos uma história com uma estrutura mais clássica na forma. Um conto com princípio, meio e fim.
Tudo começa quando uma horda de criaturas desconhecidas e, aparentemente, famintas da raça humana, começa a chegar a uma localidade, destruindo tudo à sua passagem. O que faz com que as populações locais abandonem casas e tentem fugir desta carnificina, da melhor forma que conseguem. E é neste ponto de situação, que vemos um pai completamente desesperado a suplicar a uma deusa que lhe traga o seu filho desaparecido. Eventualmente, e depois de um plot twist divertido/chocante, acaba por ser Melina a guardiã da pequena criança. Isto é o mote para uma aventura que, a partir deste ponto, arranca com Eric e Melina a tentarem cuidar de um bebé que não é deles. Mas a vida de uma criança é sempre um motivo de esperança para uma mudança (para melhor?) no mundo. E, no caso concreto, o mundo parece estar perdido. Portanto, os dois protagonistas tudo farão para assegurar que o bebé está a salvo. Mesmo que tenham que colocar a sua própria existência em causa.
Depois de encontrarem abrigo, aparece uma personagem – um velho solitário – que, com o seu carisma especial, dá profundidade à trama e à narrativa. Posso dizer que achei uma personagem muito boa, daquelas que tendem a ficar na nossa memória já depois de terminada a leitura. Depois deste muito interessante encontro, Eric procura um meio e um fim para a criança que protege numa localidade próxima, mas, infelizmente, volta a encontrar as forças do mal.
E é então que, depois de confrontos agitados, Carlos Páscoa coloca de forma algo abrupta um final a esta história. Mais do que achar que seriam necessárias mais páginas para fechar melhor a narrativa, eu considero que a história é constituída por vários acontecimentos que parecem algo aleatórios entre si. É claro que há um fio condutor que encaixa as várias peças, mas parece que esse fio é demasiado ténue, deixando no ar a ideia de que Carlos Páscoa não tinha muito presente para onde queria levar a sua história e que se foi deixando levar ao “sabor da maré”. Se nada de mal há nessa postura, acredito que se a história tivesse sido melhor estruturada, poderia ser mais impactante.
Apesar do que acabo de escrever, este O Acordo representa uma melhoria em relação a Vazio, pois, mesmo não sendo perfeito, já tem uma história menos aleatória, composta por bons diálogos, com uma excelente personagem secundária e que nos faz torcer pela nossa dupla de heróis. É verdade que a narrativa começa um pouco aos solavancos, demorando a arrancar verdadeiramente e, também no seu fim, a obra parece algo apressada e insuficientemente explanada, mas é no meio que está o verdadeiro néctar deste breve conto. Há boas ideias, aqui e ali, que me levam a crer que o autor ainda tem potencial para fazer uma melhor obra no futuro, mesmo que este O Acordo já seja um livro bastante bem conseguido.
Quanto à ilustração, Carlos Páscoa volta a demonstrar que é um autor com grande capacidade, técnica e inspiração. O seu traço semi-caricatural, a preto e branco, sabe dotar a obra de desenhos onde as personagens são expressivas. Refira-se ainda que a maneira como o autor planifica a obra, é bastante audaz e dá uma ótima sensação de urgência à trama. Facto esse que parece ser ainda melhor explorado neste formato italiano.
No desenho das cenas de ação e da própria força maléfica, não considero que o autor tenha conseguido um trabalho tão aliciante, mas, reitero que não deixa de ser muito capaz, moderno e dinâmico aquilo que Carlos Páscoa consegue fazer em termos de ilustrações. E mesmo que não existam desenhos tão eloquentes como os de Vazio, com aquele fantástico mar revolto que me conquistou totalmente, O Acordo é uma obra bastante bela em termos visuais e onde me parece existir um maior equilíbrio.
Aprecio especialmente o domínio do autor na técnica a preto e branco e das potencialidades da mesma, ao nível da luz e do espaço negativo.
Quanto à edição, o livro tem, como já referi, formato horizontal. A capa é mole, o papel é de qualidade aceitável e a encadernação e impressão são bem executadas. Nota muito positiva para a capa da obra que está muito bem conseguida. Quer ao nível do desenho, como ao nível da organização da informação e do sentimento que a mesma faz transparecer. Fantástica capa!
Em suma, se Vazio já nos havia mostrado o potencial de Carlos Páscoa, O Acordo continua a reiterar que o autor tem boas cartas para se afirmar ainda mais no espectro da banda desenhada nacional. Quem ainda não deu uma hipótese a Carlos Páscoa, não deveria perder mais tempo.
NOTA FINAL (1/10):
8.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Acordo
Autor: Carlos Páscoa
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 72, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 24 x 17 cm
Lançamento: Maio de 2023
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