O lançamento de Elise e os Novos Partisans, pela editora Ala dos Livros, tem passado, infelizmente, fora do radar do mundo da banda desenhada em Portugal. Pelo menos, até agora. Fóruns de discussão, redes sociais e sites de referência, mal tenho visto uma menção a este lançamento de sobeja importância. Mas, com mais ou menos menções, com mais ou menos destaque, deixem-me que vos diga: Elise e os Novos Partisans é um dos grandes livros de 2023!
Dado o seu forte pendor político, não será um livro para todos. Também não está isento de alguns problemas – já lá irei -, mas é um trabalho de forte fulgor contestatário e, em última – ou primeira – análise, é uma obra que, sendo histórica, não poderia estar mais atual. Com efeito, se pensarmos na forte contestação político-social que se vive na França dos dias de hoje, em que os jornais e os telejornais se enchem de acontecimentos diários e coberturas em direto da forte luta contestatária das múltiplas comunidades estrangeiras que exigem respeito, aceitação e um regime de condições laborais e socias igualitário. É sobre todos esses temas que versa este Elise e os Novos Partisans, da autoria de Dominique Grange e Jacques Tardi.
Comecemos por este último. Dificilmente Jacques Tardi será um autor desconhecido para qualquer leitor amante de banda desenhada. O seu estilo próprio, único e diferenciado, tornou o trabalho do autor respeitado e idolatrado por muitos. É um daqueles autores em que basta um vislumbre de segundos de uma das suas pranchas para que saibamos, instantaneamente, que estamos perante um trabalho de Tardi. Como tal, este Elise e os Novos Partisans está em linha com os demais trabalhos do autor. Os que adoram, continuarão a adorar. Os que não gostam, talvez não mudem de opinião. Se isto talvez nos faça indagar se Jacques Tardi poderia – ou não – inovar mais, também nos permite objetar que, quando se chega a um certo nível de identidade gráfica, talvez não seja necessário mudar nada.
Portanto, sobre as ilustrações deste Elise e os Novos Partisans não tenho mais nada a declarar além de que se trata de um “clássico Tardi”. Temos toda aquela imagética, a preto e branco, a que o autor já nos habituou. Para os meus gostos, que bom isso é!
Mas se Tardi é um nome mais que consumado, a cantora de intervenção Dominique Grange não o será para alguns leitores, pelo menos. Dominique Grange tem uma longa história na cultura popular francesa que ganhou força a partir do movimento político de Maio de 68 onde a militância da cantora assumiu força na sociedade de então.
A Elise que protagoniza esta obra não é pois mais do que a própria Dominique, dado que este é um trabalho autobiográfico. E aquilo que nos é dado neste livro não é tanto a vida pessoal da cantora, mas sim, a vida político-social da mesma e de como é que Elise foi trilhando o seu caminho de ativismo político. Por vezes, a militância política é algo que se herda. Mas, no caso de Elise/Dominique, não parece ter sido isso que aconteceu. A consciência política da mesma foi-se dando aos poucos, de forma gradual, à medida que a mesma ia tomando contacto com a realidade que se vivia numa Paris em vias de implosão social.
Eram muitos os eventos que estavam a marcar a realidade do final dos anos 60: as fábricas francesas enchiam-se de greves gerais, com a luta proletária mais incisiva de sempre, os estudantes universitários procuravam uma mudança de valores, havia uma libertação sexual e, como pano de fundo mundial, ainda se vivia a dolorosa Guerra do Vietname. O poder instituído anulava e reprimia ferozmente todo e qualquer tipo de manifestação, com a utilização de uma forte repressão policial, o que causou muitas mortes, feridos e presos políticos.
Elise muda-se de Lyon para Partis, em 1958, para tentar a sua sorte no mundo das artes e do espetáculo, mas acaba por se ir aproximando das causas do povo e começa a ser ativa no mundo do protesto. Quando dá por si, coloca a sua música ao serviço do ativismo político. Primeiro, devido à guerra da Argélia e depois, devido a toda a luta popular que estava a ser desencadeada em catadupa. Aos poucos, Elise vai-se aproximando cada vez mais da extrema-esquerda maoista. Se a luta por um mundo mais justo é salutar, isso não invalida que, durante essa luta, Elise seja fortemente perseguida pelo regime, acabando por passar uma temporada na prisão. Tudo isso está aqui relatado.
Onde a obra não atinge o nível que eu gostaria é na forma como a história nos é dada. No “como”. Creio que, por vezes, os diálogos são excessivos, tal como são excessivas as referências ao que se vivia na altura. Compreendo que seja sempre pertinente que se situem alguns acontecimentos da altura, mas creio que a autora abusa desta opção. E, às tantas, a história é inundada por pequenos acontecimentos que iriam ocorrendo no dia a dia. Atenção, quando digo “pequenos”, digo-o olhando para a “bigger picture”. Não estou a minorar o esforço faseado e gradual da luta popular. Mas tanto detalhe acerca de todas as rebeliões da altura, com diálogos algo inconsequentes, pareceu-me excessivo, o que faz com que, por vezes, Elise e os Novos Partisans, perca o leitor. Possivelmente, o argumento foi tecido de forma a englobar a vida de Elise/Dominique da forma mais completa, mas acredito que, fazendo isso, se perdeu algum do fio condutor na construção do enredo, que teria enriquecido o livro. Mas os autores foram por outra opção, o que, obviamente, é totalmente legítimo.
No entanto, o livro prima bem por toda a sua postura contestatária e de denúncia perante o regime francês. O de outrora e a atual administração de Emmanuel Macron. Independentemente de ideologias políticas, considero digna de respeito a rejeição constante perante injustiça que ainda parece mover os autores Tardi e Grange. E, em especial, esta última. E o livro acaba por, mais do que ser um modelo a seguir para os dias de hoje, ser um testemunho de que uma revolta e uma mudança são sempre possíveis. Aja coragem para lutar por elas.
A edição da Ala dos Livros está muito bem feita. O livro tem capa dura baça, bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. Esta edição é complementada por um posfácio da autora. Há dois QR Codes para que se possam ouvir as músicas de Dominique Grange no Spotify ou no Youtube. Façam-no, pois isso enriquece o ambiente propício à leitura da obra. A última página do livro tem as traduções para português das muitas referências às músicas de Grange. Embora eu gostasse que estas traduções aparecessem junto ao respetivo texto em francês, compreendo que não seria possível fazê-lo, já que são excertos muito extensos.
Em suma, seria difícil encontrar um livro político mais atual do que este! Elise e os Novos Partisans é uma obra de forte relevância político-social. Não só como documento histórico, mas também, e especialmente, como manual de referência para o clima de instabilidade social e repressão policial da França atual. Um testemunho que todos deveriam conhecer. Excelente publicação por parte da Ala dos Livros!
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Elise e os Novos Partisans
Autores: Dominique Grange e Jacques Tardi
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 170, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Maio de 2023
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