terça-feira, 3 de setembro de 2024

Análise: A Corrida do Século

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
A Corrida do Século, de Kid Toussaint e José Luis Munuera

Lançado pela editora Arte de Autor há umas semanas, ainda durante a febre (infelizmente efémera) dos Jogos Olímpicos de Paris, este A Corrida do Século, da autoria de Kid Toussaint e José Luis Munuera, conta-nos a história da maratona de 1904, que ocorreu em Saint-Louis, no ano em que os Estados Unidos organizaram pela primeira vez os Jogos Olímpicos.

Se dito desta forma poderemos considerar que não haveria numa simples maratona suco suficiente para desenvolver um livro de banda desenhada, posso dizer-vos que foram tantas as peripécias a circundar esta maratona que seriam, por ventura, necessárias mais páginas para as melhor explanar!

Com efeito, esta foi - e não sou eu que o digo, pois é comummente aceite como tal - a pior maratona dos Jogos Olímpicos de sempre, com o pior tempo de corrida de sempre, onde tudo foi mal organizado, onde havia interesses políticos sombrios e onde a polémica e a batotice também fizeram a sua aparição.

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
Depois de, em 1900, os franceses terem organizado os Jogos Olímpicos e aí terem arrecadado o dobro das medalhas dos americanos - também, em parte, pelo facto dos franceses terem utilizado o seu próprio regulamento e as suas próprias medidas - os americanos estão, passados quatro anos, sedentos de uma vingança que sirva, acima de tudo, como estandarte político. Além disso, o responsável pela organização americana, James E. Sullivan, não só tem uma rivalidade sórdida com Pierre de Coubertin, Presidente do Comité Olímpico Internacional, como revela ter ideias racistas e supremacistas que procuram, de forma injusta, passar a ideia de que a raça branca - e a pátria americana em particular - é mais capaz no desporto do que as restantes raças e nações.

Logo desde o início, a organização destes Jogos Olímpicos se apresenta muito incapaz. Acontecendo em simultâneo com a Exposição Universal - que também ocorre na mesma cidade de Saint-Louis, o que, logicamente, envolve a alocação de muitos meios para esse enorme evento - a maratona revela-se extremamente desorganizada, acontecendo na pior hora do calor, sem quaisquer indicações sinaléticas para os atletas que terão que correr pelo meio das multidões das ruas movimentadas da cidade, atravessar passagens de nível e tentar, pelo seu sentido de orientação, perceber para que lado hão de correr.

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
A obra não se centra especialmente numa só personagem que corre a maratona, mas em várias: em Thomas Hicks, o homem que não queria ficar em segundo lugar; em Fred Lorz, o homem que, acima de tudo, gostava de fama; em Andarín Carvajal, o homem que, mesmo tendo um enorme potencial para a corrida, não recusava uma sesta, mesmo que essa sesta ocorresse durante a própria maratona(!); e em Jan Mashiani e Len Taunyane, dois negros que tinham uma enorme rivalidade entre si. No total, os atletas que iniciaram a partida desta maratona eram 32, mas só 14 atletas conseguiram terminá-la.

As peripécias são, portanto, muitas. Sem querer referi-las a todas, digo-vos apenas que há batota, doping, um atleta que corre com uma perna de pau ou dois corredores que participaram na maratona sem sequer serem atletas, mas sim figurantes na Exposição Universal. 

Se esta história não fosse baseada em factos verídicos, poderíamos dizer que o argumentista, Kid Toussaint estava a "navegar em demasia na maionese". Porém, e por mais rocambolesco que possa ser o relato, há aqui um fundo de verdade que, já depois de concluída a leitura da banda desenhada, é desenvolvido e explicado no muito interessante dossier de extras que acompanha esta edição. Confesso que só depois de ler este dossier é que atribuí mais relevância, em retrospetiva, à história que tinha acabado de ler.

É verdade que o argumento traçado por Toussaint é bastante leve, o que pode dar a ideia de menos seriedade na concepção da obra, no entanto, também é verdade que esta leveza e simplicidade tornam a leitura divertida e, ao mesmo tempo, informativo-histórica.

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
Quanto às ilustrações do espanhol José Luis Munuera, estamos novamente perante um belíssimo trabalho! Sou um confesso amante do estilo de desenho do autor, que parece resultar de um casamento feliz entre a escola franco-belga - com destaque para Spirou - e os filmes de animação clássica da Disney. Por conseguinte, os desenhos de Munuera são extremamente expressivos, o que causa uma espontânea empatia com os leitores. É daqueles tipos de ilustração em que se torna fácil a sua apresentação/sugestão a alguém que normalmente não lê banda desenhada desenhada.

Desde Um Conto de Natal, e passando também por Bartleby, o Escriturário, que Munuera tem cruzado o desenho de fundos e ambientes mais realistas com personagens de estilo mais "cartoonesco". Podendo parecer, quiçá à primeira vista, um casamento algo forçado, não deixa de ser verdade que Munuera tem vindo a apurar o seu estilo e neste A Corrida do Século revela-se ainda mais confiante na junção destes dois tipos de desenho. O mais caricatural e o mais realista. Devo até dizer que, neste cômputo, Munuera até consegue melhorar face aos anteriores livros supramencionados que já eram muito bonitos em termos visuais.

A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
Nota ainda, muito positiva, para a utilização de cores, com tons sépia, que não só acrescentam mais um pouco de beleza à componente gráfica do livro, como ainda funcionam bem para nos remeterem para a época do início do século XX. Os efeitos de grão e ruído visual até fazem uma referência aos filmes mudos a preto e branco da mesma altura.

Em termos de edição, o livro apresenta uma bonita capa dura, com uma igualmente e original contracapa que simula uma capa de jornal. No interior, o livro oferece-nos bom papel baço e um excelente trabalho de impressão e encadernação. Nota ainda para as já mencionadas 8 páginas de extras onde, de uma forma não demasiado exaustiva, mas cativante, podemos saber mais sobre os factos que a história nos oferece. É um daqueles cadernos de extras que valorizam, em muito, a própria história, pois, na ausência do mesmo, o livro seria mais pobre e menos credível para os desconhecedores dos factos vivenciados nesta (louca) corrida de 1904.

Em suma, A Corrida do Século é uma divertida, interessante e, por vezes, incrível história e apresenta belíssimos desenhos de um José Luis Munuera que continua muito inspirado. Com todas as peripécias mirabolantes que a obra nos dá, diria que estamos perante uma leitura leve e que se faz de um só trago. Uma boa aposta da Arte de Autor, que merece ser lida.


NOTA FINAL (1/10):
9.1



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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A Corrida do Século, de Kid Toussant e José Luis Munuera - Arte de Autor
Ficha técnica
A Corrida do Século
Autores: Kid Toussaint e José Luis Munuera
Editora: Arte de Autor
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Julho de 2024

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