Foi apenas há algumas semanas que a editora Devir surpreendeu com a aposta num mangá one shot, de Tatsuki Fujimoto, autor da célebre série, também editada em Portugal pela mesma editora, Chainsaw Man. E quando falo em "surpreendeu" digo-o com base no facto de este Look Back ser um livro mais maduro, mais introspetivo e, pelo menos para mim, apetecível do que outras propostas da editora que são direcionadas para um público mais adolescente.
Mesmo assim, esta aposta vem na senda de um novo enfoque da editora para obras apontadas a um público mais maduro, como são disso exemplo as belas obras, recomendadas, Monster, Sunny ou Boa Noite, Punpun.
Originalmente lançada em 2021, a história de Look Back gira em torno de duas jovens: Fujino e Kyomoto, ambas ilustradoras talentosas com personalidades muito diferentes.
Fujino é uma jovem extrovertida e confiante, que inicialmente se destaca na sua escola local com as suas curtas bandas desenhadas a serem publicadas ininterruptamente no jornal da escola. Por causa disso, Fujino é respeitada pelos seus pares. Por sua vez, Kyomoto é introvertida e vive reclusa na sua própria casa, com pavor de interagir com outras pessoas. No entanto, possui um talento artístico e técnico muito superior ao de Fujino.
Em primeira instância, quando aparece publicada no jornal da escola uma banda desenhada da autoria de Kyomoto e cujos desenhos são muito mais evoluídos do que os de Fujino, isto causa uma sensação de frustração nesta, pois a sua popularidade local parece - pelo menos aos olhos de Fujino - poder ser abalada por haver alguém naquela escola que desenha melhor do que ela. A rivalidade surge, então.
Porém, e apesar dessa rivalidade inicial, as duas raparigas acabam por desenvolver uma amizade profunda ao longo dos anos, impulsionada pelo amor em comum pela banda desenhada. As duas raparigas juntam esforços para criar uma série de mangá que reúne sucesso e fãs desde cedo.
No entanto, quando Kyomoto decide melhorar os seus conhecimentos académicos e técnicos, indo estudar para uma escola superior de desenho, a relação das duas jovens esmorece e elas afastam-se. Há depois um acontecimento trágico que envolve Kyomoto e que leva Fujino a uma profunda reflexão sobre a existência. Será que quando envolvemos uma pessoa na nossa vida, mesmo que seja com a melhor das intenções, poderemos estar ativamente a condená-la a uma tragédia?
As questões que o autor Tatsuki Fujimoto levanta são muito interessantes, fazendo com que reflitamos no poder que as nossas escolhas podem ter. A obra toca em questões filosóficas sobre o acaso e o destino. A ideia de que uma pequena mudança nas escolhas pode alterar drasticamente o curso da vida de uma pessoa é uma ideia algo recorrente, sim, mas em Look Back isso é feito com uma certa frescura, já que há outros níveis de reflexão a fazer.
Especialmente ao nível da relação complexa entre o artista e a arte que Tatsuki Fujimoto explora. A personagem Fujino começa a desenhar por e com paixão, mas depois de deixar de poder contar com o apoio e presença da sua amiga Kyomoto, questiona o próprio propósito de continuar a desenhar. A arte, que antes era uma forma de expressão e competição, torna-se, portanto, uma lembrança dolorosa, mas também uma forma de ligação ao legado da sua amiga.
O que faz parecer que há algo de biográfico neste livro. A forma sensível, emotiva e frágil como a feitura de banda desenhada é exposta nesta obra, permite que percebamos que há aqui muito que o autor expõe de si mesmo. Isso, claro, enriquece a experiência do leitor, especialmente se este for um habitual leitor de banda desenhada, pois nem sempre se lê banda desenhada que fala sobre a atividade de fazer banda desenhada. É, portanto, a banda desenhada a falar dela mesmo.
Sendo uma narrativa especialmente curta e comedida - especialmente se tivermos em conta o quão grandes costumam ser os mangás publicados em Portugal - Look Back consegue ser uma obra bela, serena na leitura, mas impactante na parte sensorial que passa para o leitor. Além disso, tem a valência de tanto poder ser lida por um jovem adolescente, como por um adulto. É adequada aos dois públicos.
Quanto aos desenhos deste Look Back, o autor utiliza um estilo de arte simples, mas eficaz, para contar esta história densamente emocional. O uso de várias ilustrações sem qualquer balão de fala ou legenda - especialmente na parte que sucede à tragédia relatada - é um exemplo da habilidade do autor para comunicar emoções complexas.
A edição da Devir é em capa mole brilhante, com papel decente no miolo e um bom trabalho de impressão e encadernação. O livro apresenta o formato 12,6 x 19 cm, mais utilizado nas coleções da Devir. Devo dizer que, dado o cariz mais sério da obra, julgo que teria sido bem-vindo um formato algo maior numa edição algo mais premium. Algo como a editora tem feito nas obras que mencionei logo no início deste texto.
De resto, relembro que, aquando da iniciativa do BD Censos do Vinheta 2020, que teve a participação de mais de 600 votantes, Goodbye Eri e Look Back (obras do mesmo autor) ocuparam, respetivamente, as duas primeiras posições na lista de obras one shot que os leitores portugueses mais gostariam de ver publicadas em Portugal. Não sei se isso teve algo que ver com esta aposta da Devir ou não, mas seja como for, é uma boa notícia que as editoras vão publicando as obras que os portugueses mais querem ver publicadas.
Em suma, Look Back é, em última análise, uma meditação sobre o que significa criar arte num mundo onde o inesperado pode mudar tudo num piscar de olhos, e a prova de que Tatsuki Fujimoto é um autor bastante versátil, com a capacidade para nos oferecer uma bela obra intimista e melancólica, que aborda temas universais como a amizade e a perda de um modo profundamente comovente. Um estilo de mangá mais adulto e menos "all over the place" que merece as minhas vénias pela aposta. Gostaria de ler mais obras deste género, nomeadamente o Goodbye Eri, do mesmo autor!
NOTA FINAL (1/10):
8.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Look Back
Autor: Tatsuki Fujimoto
Editora: Devir
Páginas: 148, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 12,6 x 19 cm
Lançamento: Setembro de 2024
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