De Mark Twain, um autor incontornável da literatura mundial, com muitas obras que marcaram a minha vida, não conhecia, confesso, este O Homem que Corrompeu Hadleyburg, que o autor brasileiro Wander Antunes adaptou para banda desenhada e que a editora Levoir lançou, em parceria com o jornal Público, na sua mais recente Coleção de Novelas Gráficas.
Como tal, não farei aqui uma a análise tão direcionada à adaptação em si, mas antes à leitura, de um modo global, desta BD. E posso desde já dizer-vos que este é um livro que me agradou bastante.
Para o caso de haver mais gente que, como eu, não conhecia a obra original, permitam-me uma breve contextualização.
O Homem que Corrompeu Hadleyburg foi originalmente publicado em 1900 e narra-nos a história de Hadleyburg, uma cidade que se orgulha da integridade e virtude dos seus cidadãos, mas que acaba por ver essa reputação perfeita abalada por um astuto estranho que chega à cidade com sede de vingança perante algo que outrora lhe foi feito por um habitante daquela cidade. É uma sátira maravilhosa e incisiva sobre a moralidade e a hipocrisia da sociedade. Era relevante aquando da sua publicação original em 1900, é revelante hoje, em 2024, e será relevante até que a humanidade exista.
E a questão filosófica, bigger than life, que esta obra traz consigo é simples: até que ponto é que somos boas pessoas? Até que ponto pautamos o nosso caminho com ética e retidão? Se colocados à prova, será que somos tão bons seres humanos como achamos que somos? E se não o somos, porque é que alguns de nós têm a pretensão de se considerarem seres tão superiores assim? O autor explora a fragilidade da virtude humana, mostrando como, diante de tentações e desafios, mesmo os indivíduos mais respeitáveis podem falhar. Essa ideia remete-nos para a reflexão de que a corrupção é uma parte inerente da condição humana.
É este o exercício fabuloso que Mark Twain nos convida a fazer com esta história e que Wander Antunes capitaliza muito bem para o seu argumento de banda desenhada. Que foi, aliás, e como o próprio autor, de forma honesta, nos confidencia no texto introdutório ao livro, ajustado à sua realidade e de forma livre.
Hadleyburg, com a sua fachada de perfeição, representa as sociedades que se recusam a reconhecer as suas falhas e a estrutura do conto readaptado pelo autor brasileiro, é engenhosa. A narrativa combina humor e tragédia, levando o leitor a refletir sobre a ironia da situação. O uso de diálogos mordazes e descrições vívidas cria uma atmosfera tanto cómica como sombria.
Porque a adaptação da obra original é bastante livre, Wander Antunes não se coibiu de utilizar duas personagens emblemáticas de outras duas obras, por ventura mais famosas, de Mark Twain: Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Sem participar ativamente na trama, estas duas personagens acabam por servir a necessidade de ligar alguns dos pontos desta história, o que funciona bem. Não tão necessário é, na minha opinião, o aparecimento do próprio Mark Twain, enquanto personagem, no início da obra.
Readaptando o final do livro, encurtando-o, Wander Antunes também conseguiu cingir a história aos elementos fulcrais do conto original, colocando de parte alguma redundância, o que acaba por também funcionar bem. Acima de tudo, parece-me que o maior feito de Wander Antunes é que consegue preservar o tom irónico sobejamente conhecido e apreciado de Mark Twain.
Quanto aos desenhos, o trabalho do autor brasileiro cumpre bem os seus intentos. O traço rápido e confiante do autor cativou-me bastante por atribuir às personagens uma expressividade muito bem-vinda. Também fiquei bastante agradado com as cores, que dão um certo sentido de modernidade às ilustrações, e com as variadas opções narrativas visuais que o autor vai utilizando de forma a tornar dinâmica e fluída a leitura da obra.
Porém, e como ponto menos positivo, por vezes perceciona-se uma ligeira falta de consistência entre desenhos. E isso é especialmente mais sentido devido a uma opção - certamente pensada pelo autor - de usar traços diferentes para os desenhos de grande plano de personagens e todos os outros. Nos desenhos de grande plano, o traço é mais grosso e rude, ao passo que no desenho de planos médios ou de ambientes, o desenho apresenta um traço mais fino. Particularmente, fiquei agradado com os desenhos de traço mais fino, mais elegantes, e não tanto com os desenhos de traço mais grosso. Mas, concedo, é tudo uma questão subjetiva de gosto.
Quanto à edição da obra, temos as mesmas características que normalmente podemos esperar num livro inserido na Coleção de Novelas Gráficas, com uma exceção. Desta vez, a editora publicou o livro em duas edições diferentes: uma com a contracapa na cor preta e outra com a contracapa na cor azul. Não percebi o porquê desta opção - talvez fosse a editora a fazer algum tipo de experimento comercial - e também não considero que torne os livros suficientemente diferentes entre si de forma a justificar esta opção. Contudo, também não é nada que incomode minimamente. Fora isso, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior e boa encadernação e impressão. Uma boa edição, portanto.
Em suma, O Homem que Corrompeu Hadleyburg é (mais) uma bela entrada na mais recente Coleção de Novelas Gráficas e serve como um alerta sobre a fragilidade da moralidade e a inevitabilidade da corrupção. Como demonstrou primeiramente Twain - e como Wander Antunes consegue captar na sua bem conseguida adaptação para banda desenhada - em última análise somos todos suscetíveis à falha moral. Eis um livro que permanece relevante, desafiando as convenções sociais e estimulando uma reflexão crítica sobre a verdadeira natureza da virtude.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Homem que Corrompeu Hadleyburg
Autor: Wander Antunes
Adaptado a partir da obra original de: Mark Twain
Editora: Levoir
Páginas: 96, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 x 270 mm
Lançamento: Agosto de 2024
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