A editora Ala dos Livros editou há poucos dias o novo livro de Steve Cuzor, de quem a editora já havia publicado, no ano passado, o belíssimo Uma Estrela de Algodão Preto. Como tal, estava muito desejoso de ler este livro. E, assim que o recebi, não perdi tempo e mergulhei na leitura.
Inspirado em The Red Badge of Courage, um dos grandes clássicos da literatura americana, da autoria de Stephen Crane, esta é uma obra que se tornou especialmente célebre pelo tratamento inovador que dá ao tema da guerra, narrando de forma psicológica a experiência de um soldado comum no campo de batalha, em detrimento de outras obras ou relatos que, até então, falavam da guerra como algo grandioso e que elevava o espírito. A história é ambientada durante a Guerra Civil Americana e segue a jornada de Henry Fleming, um jovem soldado que lida com os dilemas internos e o medo da sua própria cobardia.
O que é curioso é que, inicialmente, Henry Fleming até tem uma visão romântica e idealizada da guerra. Por conseguinte, toma a iniciativa de se alistar com a esperança de alcançar glória e heroísmo. Porém, não passa muito tempo até que seja confrontado com o horror e o caos da guerra e alarmado perante a violência da mesma, Henry não hesita e foge da frente de combate. Todavia, mesmo depois deste ato desesperado, Henry capitula face à sua escolha devido a ficar consumido pela culpa e pela vergonha. Afinal de contas, em termos de guerra, pior que o inimigo são os dissidentes que são olhados pelos demais como cobardes, fracos e traidores. Henry tenta, então, superar-se e encontrar algum tipo de redenção através de um ato que confirme a sua coragem. Para si mesmo e para os outros.
A própria "insígnia vermelha de coragem", referida no título original da obra, poderá ser vista como uma metáfora para as feridas de guerra, que simbolizam para Henry a prova da sua bravura. A obra explora, pois, e em profundidade, o medo, a vergonha e a busca por redenção do protagonista. E ao contrário de muitas narrativas que glorificam a guerra, aqui é-nos dada uma visão realista e quase anti-heroica do conflito bélico, mostrando-o como uma experiência desumanizante, cheia de caos e terror, mais ligada ao instinto de sobrevivência do que a qualquer sentido nobre de dever patriótico.
Henry Fleming, mesmo podendo parecer uma personagem fraca e vulnerável, é um espelho daquilo que, certamente, muitos de nós faríamos se estivéssemos em pleno campo de batalha. E é, por ventura, por essa mesma razão, que esta é uma obra tão marcante e verossímil.
Entretanto, com a forma como os eventos se vão desenrolando, o próprio Henry Fleming vai mudando de opinião e de estado de espírito, num frenesim tal, que começa a veicular todas as suas forças para o campo de batalha, passando de cobarde a herói. No entanto, é importante notar que a sua coragem surge mais de um instinto de autopreservação e desespero do que de uma motivação altruísta ou nobre. A obra questiona, assim, a própria natureza do heroísmo, sugerindo que a coragem muitas vezes está ligada ao medo e ao desejo de aceitação social.
O trabalho de ilustração de Steve Cuzor é verdadeiramente poético! Da mesma forma que Stephen Crane utiliza descrições intensas, carregadas de um grande nível sensorial para descrever a confusão vivida num campo de batalha, também Steve Cuzor, através das suas ilustrações, desenha esse mesmo caos, levando-nos a senti-lo, a mergulhar nele. Por vezes, em longas cenas sem qualquer legenda. O trabalho acaba, pois, por ser verdadeiramente sublime.
Cuzor adapta fielmente o enredo de Crane, oferecendo uma nova dimensão à obra e enriquecendo a experiência da mesma com visuais impactantes que nos ficam na retina mesmo depois de finda a leitura do livro. O autor utiliza uma arte rica e detalhada para capturar a brutalidade e a confusão da guerra. Fiquei especialmente bem impressionado com a forma como Cuzor ilustra os destroços e os disparos das batalhas. Sentimo-nos imersos no caos e calor da batalha, com cenas dinâmicas que muitas vezes transmitem mais do que aquilo que as palavras poderiam fazer.
A utilização de cores também desempenha um papel importante nesta adaptação. Os tons sombrios predominam, refletindo o ambiente árido e desolador da guerra. Esta bicromia pode remeter-nos para dois livros de Manu Larcenet, lançados também, curiosamente, pela Ala dos Livros: O Relatório de Brodeck e A Estrada. A paleta de cores transmite a melancolia e a tensão presentes no conflito, acentuando o estado emocional de Henry Fleming e a atmosfera opressiva da narrativa. Cuzor usa com habilidade as expressões faciais e a linguagem corporal para transmitir o conflito interno do protagonista.
Embora haja cor nesta obra - onde imperam os tons amarelados e esverdeados, consoante a cena em questão - é o preto que tem mais primazia na concepção das ilustrações, com o autor a executar as sombras - e todo o espaço negativo que das mesmas advém - com uma técnica, uma precisão e um dramatismo que são fascinantes e raros de encontrar em banda desenhada.
Como ponto menos positivo, é verdade que este é um livro que se torna pesado no tema e que pode causar uma certa sensação de repetição no leitor, pois as imagens que nos são dadas são sempre do campo de batalha. Às tantas, quando a meio do livro viramos uma nova página, pode dar a ideia de que já vimos desenhos iguais ou muito parecidos com aqueles. Denota-se que não é "defeito", é "feitio", pois foi certamente algo pensado pelo autor e que não foi deixado ao acaso. No entanto, acho que a sensação de repetição prejudica um pouco a leitura. Quase sempre digo que vários livros deveriam ter mais páginas para melhor explanar uma ideia. No caso deste O Combate de Henry Fleming, talvez algumas páginas a menos fizessem bem ao livro.
Em termos de edição, o trabalho da Ala dos Livros é imaculado. O livro apresenta capa dura baça, bom papel brilhante e encadernação e impressão de alto nível. No final, há um interessante texto de José-Louis Bocquet sobre a obra original escrita por Stephen Crane.
Em conclusão, O Combate de Henry Fleming é uma obra profundamente introspectiva, que desafia as concepções tradicionais de guerra e heroísmo, através de um realismo que nos remete para os dilemas morais enfrentados por um soldado em pleno campo de batalha. A par disso, apresenta um trabalho de ilustração belíssimo por parte de Steve Cuzor, altamente recomendado e que todos deviam conhecer!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Combate de Henry Fleming
Autor: Steve Cuzor
Baseado na obra original de Stephen Crane
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 152, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Agosto de 2024
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