Adoro a seguinte sensação que, volta e meia, me acontece quando leio banda desenhada: ser surpreendido - pela positiva! - por um(a) autor(a) que já conhecia e sobre o(a) qual havia formado opinião. Também é verdade que, por vezes, acontece o inverso: somos surpreendidos pela negativa e determinado autor brinda-nos com um novo livro que fica aquém das nossas expetativas. Felizmente, no caso deste A Companheira, o novo livro da autora argentina Agustina Guerrero, que a editora Dom Quixote publicou há algumas semanas, a sensação não poderia ser mais positiva.
Sim, eu já tinha gostado do outro livro - também por cá editado pela mesma editora, A Viagem - mas não tinha ficado tão maravilhado assim, por vários motivos que, na altura, quando escrevi a minha análise à obra, apontei. E tendo uma perceção positiva - mas não apaixonada - pelo estilo da autora, mergulhei para este A Companheira com uma curiosidade mediana.
E posso dizer que - agora, sim! - fiquei rendido! Tudo o que já era bom em A Viagem é igualmente bom aqui e as coisas que, nesse anterior livro, considero mais fracas - como o relato mais imberbe, os dramas mais superficiais e a própria bipolaridade entre uma crónica de viagem e um livro de cariz mais dramático - deixam de existir neste A Companheira. Aliás, o próprio conceito da obra, a sua honestidade e a sua relevância e sensibilidade são, quanto a mim, muito mais grandiosos do que no álbum anterior. Portanto, digo-vos de forma quase histérica: se estiverem indecisos entre A Viagem e A Companheira, não hesitem duas vezes: comecem por ler este A Companheira.
Enquanto que A Viagem, tal como o nome indica, se trata de um diário de viagem ao Japão, com a autora a ser acompanhada por uma amiga - e sendo, também uma viagem ao próprio âmago interno de Agustina Guerrero - este A Companheira é um relato muito mais profundo, em que a autora mergulha no seu passado. Nas suas memórias. As boas e as más. As que marcam uma vida. O conceito é tão simples que até me chega a irritar! Como é que eu não me lembrei disto antes? É daquelas ideias demasiado simples e, ao mesmo tempo, boas, que qualquer argumentista espera ter.
Com efeito, todos nós temos memórias que fizeram de nós aquilo que somos hoje. Os traumas de infância, juventude e idade adulta; as coisas tristes; as incapacidades; os falhanços; os medos; as glórias; os dias inesquecíveis; os sítios onde passámos férias; os momentos em que rimos até mais não e os momentos em que nos sentimos miseráveis perante tamanha tristeza. Portanto, é justo dizer que todos nós teríamos conteúdo para fazer um livro igual - na premissa e não no conteúdo, pois todos temos as nossas próprias vivências - a este A Companheira. No entanto, foi Agustina Guerrero que se lembrou de tal empreitada. E ainda bem que o fez.
Acaba por ser um livro altamente pessoal e onde a autora volta a abrir as portas da sua intimidade. Os seus medos, as suas inseguranças, os seus traumas, as suas alegrias, os seus feitos... são muitos os momentos que nos são revelados. Os cheiros da infância, os verões que nunca pareciam terminar, os primeiros romances, os dias em que experimentámos algo novo, as comidas das mães e das avós, os dias em que deixámos os nossos pais cheios de orgulho, os dias em que tivemos tardes fantásticas com os amigos... reparem que, neste momento, até deixei de falar sobre Agustina e passei a falar sobre mim mesmo. Porque, de facto, é esse o grande feito desta obra e da autora. É que, falando sobre si própria, Agustina Guerrero consegue apelar a todos nós. Achamos que somos todos diferentes e originais - e também somos, é certo - mas temos todos muito em comum uns com os outros. Ou, como canta Rui Veloso, "muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa". Só é pena que às vezes nos esqueçamos disso. De certa forma, a banda desenhada A Companheira consegue fazê-lo por nós.
E embora este livro se sedimente, em termos de argumento, num conjunto de memórias que a autora experienciou e que, corajosamente, partilha com os seus leitores, a verdade é que não estamos perante um livro de histórias curtas e avulsas, dividido por subcapítulos. Ao invés, a autora montou um engodo narrativo que é vivido no presente e que lhe permite, juntamente com a sua "companheira", viajar para dentro de si mesma, como se fosse uma viagem espiritual e iniciática. Esta bengala narrativa assume um tom algo onírico, que me fez temer pela consistência do relato, mas que acaba por funcionar bem e que até remete, com as devidas distâncias, para a forma como as sensações são explanadas no filme de animação da Disney Inside Out.
Quanto às ilustrações, Agustina Guerrero oferece-nos algo bastante identificável com aquilo que a autora nos deu na sua A Viagem. Daí que possa recuperar algumas das palavras que escrevi a esse propósito: "o estilo de desenho da autora é bastante “cartoonesco”, com uma planificação bastante livre e anárquica que raramente apresenta limites nas suas vinhetas. (...) Não são desenhos particularmente complexos, especialmente na caracterização das personagens, que apresentam expressões abonecadas, mas são ilustrações agradáveis à vista. (...) Por vezes, a autora dá-nos desenhos de página inteira que são marcados por uma bela e sedutora poesia visual e esses são os melhores momentos do livro. Mesmo não saindo do género “cartoonesco”, a autora consegue imprimir uma beleza visual ímpar (...) São belos momentos que conseguem tocar o autor."
Também neste cômputo, e desculpem-me se estou a ser repetitivo, A Companheira consegue superar A Viagem, não tendo os problemas de ter duas personagens demasiado parecidas, embora, ainda assim, continue a haver algum claustrofobismo visual nas páginas em que o texto é em maior quantidade e dimensão do que o desejável.
Mesmo assim, tenho que realçar que muito admiro a forma como, sendo simples, os desenhos de Guerrero conseguem transmitir tantas emoções.
A edição da Dom Quixote, por seu turno, volta a ser fantástica! O livro é em capa dura, em tecido, com detalhes a verniz que muito embelezam a capa. O resultado é extremamente apetecível e impactante. No interior, o papel é baço e de boa qualidade, e a impressão e encadernação são excelentes, também. Acaba por ser um objeto-livro lindíssimo só à conta da sua capa tão especial.
Em suma, A Companheira é uma excelente surpresa! Quem já tinha gostado de embarcar n'A Viagem da mesma autora, vai ficar maravilhado com este livro e aqueles que, como eu, não ficaram logo rendidos ao estilo da autora nesse primeiro livro por cá lançado, certamente darão a mão à palmatória: Agustina Guerrero é uma autora a seguir e este A Companheira entra para o lote - já denso - de melhores bandas desenhadas do ano. A não perder!
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Companheira
Autora: Agustina Guerrero
Editora: Dom Quixote
Páginas: 232, a cores
Encadernação: Capa dura em tecido
Formato: 205 x 247 mm
Lançamento: Junho de 2024
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